sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Sem papas na língua



Quando, por alturas de 77, discutia com colega recentemente amiga, dona de uma intelectualidade apoiada nesses modelos comunistas, adepta naturalmente das descolonizações que fizeram a tantos retornar a um lugar donde os seus antepassados haviam partido, difundindo com maior ou menor êxito por lá as luzes de uma cultura necessariamente superior à dos povos que encontraram - essa pessoa amiga perguntou-me se eu era daqueles que entendia que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno almoço, e eu respondi imediatamente que sim, que achava que comiam. Eram esses comunistas da altura, de formação recente, fundada mais nos “ouï-dire” do estardalhaço ameaçador em moda, do que em verdadeiro conhecimento das fontes ideológicas - quando muito apoiada nos escritos literários dos escritores que as difundiam, (cá em Portugal através dum neo-realismo monocordicamente confrangedor na sua pequenez ideológica de enfoque maniqueísta, entre opressores e oprimidos, entre ricos e pobres, entre poderosos e humilhados) -  e cujos adeptos enfileiravam, na sua maioria, no grupo dos adaptáveis ao novo modelo, como se viu então, por conveniência ou cobardia, excluído o grupo intelectual das leituras marxistas da moda.
António Barreto, ao pegar no tema, já em parte afastado dos vitupérios ou ameaças  nacionais que uma ditadura de esquerda então produzia, resume, na liberdade que a democracia proporcionou, a história da Rússia comunista, feita de crimes que não parecem atormentar minimamente as consciências dos que se aferram a defendê-la, indiferentes aos Gulags e matanças e conquistas de povos livres que proporcionou, criando adeptos e originando medos. E no entanto, toda essa ditadura do terror, um homem russo a fez dissipar - Gorbatchov - que a mim surge como um gigante de extraordinária dimensão, pela sua força de alma, coragem e bondade, a quem a humanidade deve tanto sem se dar conta. O centenário da Revolução Russa trará muitas loas, certamente, mas por cá, os do “apoio beato” da expressão de António Barreto,  irão omiti-lo, pois que Gorbatchov lhes trocou as voltas, mergulhados que são naqueles mundos de uma falsa justiça aparentemente em favor dos oprimidos, com o ódio como contrapartida (contra os bem sucedidos), no utópico igualitarismo social que pretendem, mas de que eles próprios se afastam na construção do seu próprio bem-estar que o decurso da vida lhes proporciona, segundo a ordem natural de uma evolução normal.
Um bravo a António Barreto, pela sua coragem denunciante do “embuste”.

O Grande Embuste
António Barreto
DN,  17 de fevereiro de 2017  Sem Emenda

Dentro de dias, começa um curioso ano de comemoração: os cem anos da Revolução Russa. Será um desfilar de colóquios, filmes, livros e programas de televisão. Teremos de tudo e não faltará o elogio beato.
De Fevereiro (que, na Rússia de 1917, era em Março) a Outubro (já em Novembro), será quase um ano em que teremos a oportunidade de recordar e estudar aquele que foi o "maior embuste da história do século XX", na expressão de Mário Soares. Após aquele ano de "revolução", houve outros cinco, ditos de "guerra civil", revolução para todos os efeitos. Depois, mais vinte de depuração, deportação, limpeza étnica, colectivização e trabalhos forçados aos milhões. Sem esquecer milhares de julgamentos e execuções de políticos, generais, médicos, sindicalistas e escritores! Lenine morre em 1924 e Estaline em 1953. Até à derrota final, em 1989, entre lutas intestinas e saneamentos, sucedem-lhes vários como Kruchtchev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev.
O centenário vai servir para muitas tentativas de branqueamento. Com certeza. Mas também para novos balanços, seja porque a distância ajuda, seja porque os estados-maiores comunistas já não têm muito poder nem controlam o pensamento, seja porque, finalmente, de Moscovo a Praga, os arquivos se vão abrindo e revelando todos os dias factos novos, por vezes surpreendentes.
Que nos deixou o comunismo como legado de liberdade? Praticamente nada! Como luta de resistência dos comunistas, para bem dos seus direitos, muito! É mesmo do domínio do heroísmo. Mas, para bem da liberdade dos outros, de todos, praticamente nada. Pelo contrário: deixa um dos piores legados modernos de supressão das liberdades, de repressão exercida sobre os cidadãos, de negação radical do Estado democrático, de violação permanente dos direitos humanos e dos mais desumanos métodos de manutenção da ordem, com tortura, assassinato, deportação, rapto e prisão em números que se elevam a muitos milhões. Em todos os países em que um partido comunista dominou o poder, o resultado foi sempre o mesmo: nem liberdade nem Estado de direito.
Que nos deixou o comunismo como legado de independência e autonomia dos povos, outra das suas bandeiras? Por um lado, apoio aos movimentos subversivos e revolucionários do mundo inteiro, desde que em luta contra as metrópoles coloniais, contra as democracias e contra os países do mundo ocidental. Por outro lado, a mais feroz submissão dos Estados, países, nacionalidades, minorias e regiões vizinhas, com o resultado visível da constituição de um dos maiores impérios da história, feito e regulado à força, por intermédio dos métodos mais bárbaros, incluindo deportações massivas, fomes programadas, genocídio e pura opressão. A implosão da União, após a queda do comunismo, é o mais rigoroso certificado de existência do imperialismo soviético. E da sua bondade.
Que nos deixou o comunismo como legado social e económico, tecnológico e científico? Uma enorme ficção daquele que poderia ser, com os seus colossais recursos, um dos mais ricos países na Terra e que acabou por só ser poderoso militarmente, mas incapaz de progredir economicamente e de permitir a prosperidade dos seus cidadãos, impotente para o desenvolvimento tecnológico e científico, áreas em que esteve sempre atrás dos países ocidentais e com atrasos crescentes até ao desmoronamento final.
É um dos mais seguros sinais do atraso de Portugal: a persistência do Partido Comunista, das suas ideias e do seu programa. Os principais partidos comunistas do mundo democrático desapareceram por entre fumarolas! Parece que apenas dois Estados têm qualquer coisa de parecido com o comunismo soviético: Cuba e Coreia do Norte! Que bela companhia para os comunistas portugueses!

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