Sendo
o Homem o definidor mas o reflexo também
do ideal de perfeição em que consiste um qualquer conceito, já desde Platão e
passando por Cristo, e havendo tantos espécimes humanos, qualquer ideologia
torna-se, necessariamente, irrealizável, na sua adulteração, descambando para a
posição de utopia. Deu-se isso através
dos tempos, na constante reformulação das noções para melhorar o mundo, e
originando, mau grado o ideal que as ditou, constantes transformações e
guerras, de que a Revolução Francesa foi exemplo máximo. Criar a igualdade de
oportunidades, considerar todos os homens seres livres e com iguais direitos, o
lema da Revolução Francesa, que os seus filósofos definiram, marcou para sempre
o mundo, mas logo foi mergulhado em terror, e prosseguido na ânsia de posse de
um ambicioso invasor europeu, um Napoleão indiferente a esses justos conceitos
igualitários, tornado momentaneamente imperador da Europa. Depois da Segunda
Guerra, ditada por uma utopia maníaca e criminosa, a ideia de uma união
económica que protegesse alguns países europeus, surgiu, não só como defesa
contra uma guerra fria, mas com intenções de enriquecimento e protecção comuns.
A ideia estendeu-se “fraternalmente” ou democraticamente a outros países,
incluindo o nosso, o que originou, entre nós, uma modernização das estruturas
nacionais, mas simultaneamente uma quebra de regras de disciplina ética que os
países mentores não quiseram - ou não puderam - impor mais cedo. Deseducados
que éramos, mais ainda nos tornámos, achando por bem utilizar dinheiros alheios
como se os tais povos donos deles
tivessem a obrigação de nos sustentar. É esse aspecto que repugna, no seu
oportunismo sem valores nem consciência.
Por isso, não admira que uma união de interapoio defensivo, entre países de
diferentes mentalidades, tivesse forçosamente um carisma de irrealidade e utopia,
os povos do Norte resguardados nos seus princípios, esforço e prosperidade, e
provavelmente orgulho sectário contra aqueles que desprezarão, talvez, por não
enfileirarem nas mesmas regras de cumprimento. E nós por aqui vamos mantendo a
nossa “aura” já antiga e humilhante, de carências básicas e complexos que se
nos colam à pele, quando tomamos consciência desses desequilíbrios entre nós e
os outros.
Daí,
estes discursos negativistas de Vasco Pulido Valente e tantos
outros que poderiam servir de exemplo construtivo, mas que permanecem nos
registos do papel ou da cibernética e na ignorância ou indiferença de quase
toda a gente.
De
António Sérgio, por exemplo, extraio, em apoio, o retrato seguinte
de “Cartas do Terceiro Homem” : «XVIII: Meu caro amigo: o que mais
dificulta (ao que me parece) que a boa semente democrática germine neste solo
lusíada - é a terrível falta constante de autodomínio e de “assessego”, de
esforço para a objectividade e para a ordenação do espírito. Expressam-se os
Portugueses de maneira cálida e explosiva, com muita impetuosidade e em voz
alta, sem querer ouvir quem lhes fala, sem rebates de consciência quanto à
exactidão do que afirmam. Discutem muito dos homens (como é mau Fulano; como é
tolo Sicrano; como é vil Beltrano) e quase nada de ideias, de problemáticas, do
maior bem do comum, de trabalhos. Todos se aterram sobre nugas, que não chegam
a valer coisa alguma: e é acerca de divergências sobre o que não vale coisa
alguma que empreendem as batalhas em que se acaloram mais. Quando com alguém
não concordam (caso entre nós frequentíssimo, por mero capricho ou malquerença)
é pecha sua o lançarem-se, ao terem de apreciar actos de outrem, em delírios de
interpretação e em suposições arbitrárias, acoimando os criticados de todas as
protérvias que inventam, de ultrafantásticas intenções, de muito imaginários
delitos: e de aí se origina o merecer o Português vitupério por certos modos de
proceder que tradicionalmente o deslustram como sejam o impulsivismo, a
maledicência, a sinuosidade no trato, a intriguice…
Topam-se
na História todos esses achaques da estirpe, testemunhados repetidamente pelos
nossos escritores e guerreiros, por missionários, estudiosos, aventureiros do
mar, estadistas…
Seguem-se
três exemplos saborosos, expurgados da “Peregrinação” de F. Mendes
Pinto, sobre a nossa impulsividade descontrolada e estreiteza de
pensamento, que punham em fuga de espanto os próprios asiáticos educados no
respeito, e António Sérgio continua a sua análise, terminando com o seu
ideal democrático necessariamente utópico:
«Percebe-se
como se relaciona com tais baldas nossas o vezo de formarmos da liberdade
humana uma concepção passional, naturalista, desorganizadora e romântica, de
mero instinto e centrífuga, de cega expansão emotiva, - e oposta, portanto, à
boa noção racional: a austera, a estruturante, a concentradora, a centrípeta, -
a única das noções em que poderá firmar-se (creio) um regime democrático que na
realidade o seja. A concentração das almas nos cidadãos activos é que torna
indispensável a concentração no Estado.»
Mas
as conclusões de Vasco Pulido Valente, de tão drásticas, amarfanham-nos a alma.
Talvez não seja assim tanto como ele diz. O melhor é não levantar a lebre.
Afinal, se o Reino Unido nos abandonou e talvez outros se lhe sigam, virados
para outras bandas, esta ideia de uma Europa como um bloco, mesmo desgarrado,
de união e interapoio, não deixa de ser simpática, pese embora a utopia. Porque
nós, os pobrezinhos, sempre nas margens de uma ocidental praia, sentimo-nos
mais europeus agora, mais arejados intelectualmente, mas podendo levar lá para
fora, também, muito do que construímos em beleza, de que é exemplo igualmente, a
maravilhosa beleza da nossa terra e dos nossos cantos. Eu estarei sempre grata
à UE que nos ajudou um pouco a erguer-nos do nosso remansoso ou indigno marasmo.
Diário de Vasco Pulido Valente
A utopia da “Europa”
OBSEVADOR,
12/2/2017
… hopes expire of a low dishonest
decade… W. H. Auden
No
fim de Janeiro, Portugal, na pessoa do primeiro-ministro, teve a honra de
receber seis países do sul da Europa: a Itália, a Espanha, a França, a Grécia,
Malta e metade da ilha de Chipre. Apesar do atraso este encontro merece alguns
comentários. Primeiro, é duvidoso que Chipre e Malta se possam apresentar ao
mundo como “países”. Segundo, o que distingue os membros deste
subconjunto da União é precisamente não fazerem parte da Europa. A
Espanha não tem um papel no continente desde o século XVII, a França desde o
princípio do século XIX e o resto do grupo não existia até há muito pouco tempo
e nunca contou para nada. Todos vieram agora aqui dizer meia dúzia de piedades,
que o mundo inteiro conhece e, no fundo, como disse o inefável Tsipras,
reforçar a “solidariedade”, ou seja, convencer a Alemanha a abrir um bocadinho
mais a bolsa.
Desde
o princípio que os críticos da “Europa” mostraram a dificuldade de integrar
económica, política e culturalmente num organismo único o que se chama, por
abuso vocabular, a “Europa” do sul e a “Europa” do leste. A verdadeira Europa
sempre começou na Suécia e acabou no norte de Itália e no centro de França.
Para Metternich, o Oriente começava às portas de Viena e basta assistir ao que
se passa hoje na Roménia, na Hungria e na Polónia para lhe dar razão.
Quanto ao sul, embora desejasse melancolicamente ser Europa, não conseguiu
ao fim de centenas de anos ser mais do que uma cópia primitiva e deformada de
um modelo para ela incompreensível. Basta ler Eça e, por exemplo, Elena
Ferrante. O último capítulo de Os Maias, a passagem mais trágica da
literatura portuguesa moderna (fim do século XIX) ou o Quarteto de Nápoles
(princípio do século XXI), para medir a distância que separa o norte da nossa
mediterrânica tristeza.
A
“Europa” foi uma utopia que, como o nome indica, não tinha lugar no mundo real.
Neste momento, em que ela não passa de uma ruína, ou do anúncio de uma ruína, e
em que a fragilidade dos seus fundamentos é pública e notória, convinha
perceber o que sucedeu e não perder tempo com gestos vazios para prolongar uma
vida condenada, a benefício dos pobrezinhos que se tomam pelo que não são.
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