« O Homem é a medida de todas as coisas»,
não há que duvidar, e as verdades absolutas, baseadas na razão e na
experiência e até no bom senso, deixaram de servir, excluindo as do cálculo
matemático, pois o que vemos entre nós é subjectividade e gritaria, e cada
pessoa virando senhor da razão, da sua
razão. Daí esse livro de Cavaco Silva, que, oportunista e grotesco, pequeno num
país pequeno, decidiu “esclarecer” esse país pequeno sobre factos e relações
com esse outro homem oportunista e sem escrúpulos com quem actuou politicamente
e não se atreveu a acusar na altura. “Não havia necessidade”, diria o
diácono Remédios, dizem todos os que se desgostam destas figuras nacionais que
Vasco Pulido Valente compara a tantas personagens queirosianas, retratadas
segundo a medida genial do um escritor arguto, e que a cada passo retomamos,
sem dó nem piedade, nem reconhecimento sequer por algum trabalho bom que esse
governante tenha realizado. Também sinto vergonha por Cavaco Silva, não havia
necessidade. Mas como estamos no ranking de lixo, matematicamente demonstrado, que
afinal se enquadra na nossa perpétua condição de pequenez, é só mais um exemplo
a acrescentar.
Não há que negar.
Nem às quintas-feiras nem aos outros dias
OBSERVADOR, 25/2/2017
… hopes expire of a low dishonest
decade… W. H. Auden
Cavaco é um homem exemplar: bom filho,
trabalhador, responsável, óptimo marido (em 50 anos de casado só não dormiu na
mesma cama da mulher 1 por cento das noites, uma façanha pela qual a nação
inteira o admira), perfeito pai, honesto, imparcial e dedicado. Não admira que os portugueses tenham
feito dele ministro, primeiro-ministro e Presidente da República, embora seja
um “intruso” na política, sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo, odeie o
ruído à volta do seu nome e a curiosidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu
com as posições a que foi elevado. Quando está em Lisboa, vive num apartamento
modesto (suponho que alugado) e, no Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim
poeticamente chamada em homenagem a uma espécie de poema que Vasco Graça Moura
lhe fez, não sei com que intenções, e que também tem, benefício da arte, um
painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de paz,
Cavaco não odeia ninguém, excepto, claro, a gente que não o acha tão admirável
como ele se acha, que lhe atrapalhou a vida, que não lhe obedeceu ou por puro
desvario disse mal dele.
Essa longa lista começa com Mário Soares (a grande força de “bloqueio”)
que em Belém intrigava contra ele, que assistia sonolentamente às reuniões de
quinta-feira e que no fundo (coisa que não escapou a Cavaco) o desprezava.
Mas Vítor Constâncio (governador do Banco de Portugal) vem a seguir com
a maioria dos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um aldrabão,
um ignorante e um obstinado, dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra tudo
e contra todos. De qualquer maneira, e tirando estes parceiros da cena
política, o inimigo principal de Cavaco eram os “media”, que merecem um
parágrafo à parte.
Tanto como primeiro-ministro, como
Presidente da República, ele execrou visceralmente “os media”. A
concepção de política que o guiava era uma concepção de director-geral: o chefe
bem informado e ajudado por especialistas, despachava no seu gabinete, longe do
ruído da rua, a bem “do superior interesse da nação”; o governo e o parlamento
aprovavam e a populaça fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar
gostava de fazer as coisas, com alguns ornamentos democráticos para disfarçar.
Ora, os “media” criticavam, acusavam, distorciam. Um ou outro, como “O
Independente”, até nem se coibiam de inventar notícias ou conspirações. Mais do
que isso faziam dele uma figura do contínuo espectáculo da política indígena e
ele não gosta de escândalos como o escândalo das “escutas”, que vários peritos
dizem que ele próprio inventou. Fosse como fosse, apesar de alguns
percalços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo, sem um acto decisivo que
impedisse ou moderasse a crise em que o país caiu.
O que ele gostava naquele lugar do Estado
era da proeminência que a situação lhe dava e da sensação de pertencer aos
regentes do mundo. Com todo o cuidado apresenta no livro a prova fotográfica
dos seus encontros com as celebridades que viu e ele julga que lhe dão lustre e
por reflexo provam a sua importância pessoal: presidentes, primeiros-ministros,
papas e similares. A
vaidade paroquial do homem não tem medida; com os seus três papas, em
particular, quase que se baba.
Em contrapartida, o que mais lhe custava eram as reuniões com Sócrates (118
contou ele com o zelo com que contava a sua assiduidade ao leito conjugal).
Em primeiro lugar, ele achava que Sócrates não passava de um mentiroso sempre
pronto para o enganar. E, depois, Sócrates não percebia o que lhe diziam, se o
que lhe diziam não concordava com os seus planos. Cavaco tomava notas numa
estenografia secreta (que ele inventara na Faculdade) para se precaver de
Sócrates e tentou até ao fim meter naquela cabeça irascível meia dúzia de
noções elementares de economia e de finanças. Sem resultado.
A conclusão deste melodrama foi que os
portugueses acabaram por sofrer uma crise, que o Presidente e o
primeiro-ministro podiam adiar e com certeza atenuar. Cavaco previu o que ia acontecer
desde pelo menos 2008. Mas não achou necessário prevenir os portugueses ou
dissolver a Assembleia, porque a Constituição não lhe permitia interferir na
política do governo. E, em matéria de lei, ele como qualquer director-geral era
um devoto.
A comparação é fácil, mas ao ler estas
500 e tal páginas sem uma ideia, sem um pensamento sobre a situação e o futuro
de Portugal, sem uma crítica ao sistema político, mas saturadas de uma
satisfação incompreensível , não consegui esquecer Eça e os seus políticos: o
conde de Abranhos, o conde de Gouvarinho, o genial Pacheco e o conselheiro
Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. Só que esta banalidade tem a vantagem
de ser verdadeira.
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