Perfeitamente
assustador. Coitado do Álvaro de Campos, mas esse ao menos era génio para se
reconhecer como tal! Coitados destes nossos filhos de hoje, filhos de pais que
uma convulsão transtornou, pais de filhos cada vez mais mal entregues, numa sociedade
tão extraordinariamente permissiva e cega e indiferente e… nada! Coitada! Coitados!
E não dá para reconstruir, na vacuidade e no caos a que chegámos, onde um ou
outro Diogo Queirós de Andrade vai sobressaindo aqui e além, a avisar. E,
ao menos coremos de vergonha se é que isso ainda existe no nosso amorfismo parolo
de imprevidentes e de coitadinhos.
As negociatas dos
finalistas
Diogo Queiroz de Andrade
Público, 12 de Abril de 2017
Há
um negócio que se especializa em subverter actos eleitorais em escolas cheias
de menores através de ofertas em dinheiro e em géneros. Esse negócio
concretiza-se em viagens mais ou menos selvagens onde o álcool corre à farta e
o descontrolo é assegurado pelas mesmas empresas que promoveram o evento. Há dinheiro
a passar de mão em mão, mas facturas nem vê-las. Há “famosos” de terceira e
quarta categorias a animar festas de listas a associações de estudantes, que já
negoceiam a vitória nas eleições em troca de pacotes de viagens de finalistas.
Há estudantes angariados para angariar negócio junto dos colegas, num esquema
em pirâmide que funciona enquanto todos ganham. E há ameaças sérias de
violência num negócio em que os territórios são disputados palmo a
palmo.
O
melhor é que ninguém sabe de nada: não sabe o Ministério da Educação, que
supostamente tutela as escolas e o que nelas se passa; não sabem os pais, que
nem se informam sobre como é gerido o esquema que enfia os filhos em camionetas
que os deixam à porta de um qualquer destino soalheiro; não sabe o Ministério
das Finanças, que nem se interessa pelas muitas centenas de milhares de euros
que são trocados de mão em mão sem quaisquer documentos; e não sabem as
juventudes partidárias, que têm a sua acção de base nestas associações de
estudantes que são tudo menos sérias.
O
que menos interessa desta história toda é o que se passa durante a viagem: sim,
há mais dinheiro a circular, muito álcool nas mãos de menores e rédea solta
para os exageros. Hotéis, agências, pais e filhos contam com isso.
É
o que menos interessa na história e só serve para títulos mais ou menos indignados.
O
que conta aqui é a forma como tudo isto acontece e os resultados que tem: se a
primeira experiência democrática que estas gerações vivem está corrompida por
famosos e viagens a destinos mais ou menos paradisíacos, é difícil associar a
política a algo nobre ou o exercício de cargos públicos a uma expressão de
cidadania.
Talvez
nada disto seja, em si mesmo, ilegal. Mas é certamente amoral — e tem
consequências. Da próxima vez que lerem uma notícia sobre as pequenas e grandes
negociatas, a violência no desporto, a prepotência de quem tem poder ou a
candidatura a uma câmara de um ex-autarca condenado por corrupção poderão
encontrar uma linha recta que conduz a esta notícia.
Álvaro de Campos
Cruzou por mim, veio
ter comigo, numa rua da Baixa
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se
lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante,
dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde
trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto urna simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar
lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão
para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior
para ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e
isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta
gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso
acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido
translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco,
àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se
importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e
vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha
alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido. Merda! Sou lúcido.
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