Enviou-me
João Sena o seguinte email, que, naturalmente me deixou agradecida e feliz, por
tão belo retrato do nosso país de trambolhões nas suas políticas, nos seus
endividamentos, no exíguo da sua educação, manifesto sobretudo na taxa ainda
elevada de analfabetismo relativamente aos demais países europeus. E no
entanto, também concordo com a teoria da advogada brasileira Ruth Manus de que «o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido
com Portugal», o país dos diminutivos,
da indecisão, mas do “bom rapazismo”, da sã camaradagem, da entreajuda que já Nicolau
Tolentino apontava na sua Sátira “A Função” «Em que as vizinhas vão /
Pedir às vizinhas lume» e Guerra Junqueiro traduzia essas
características de harmonia e bondade do povo simples no seu encantador poema d’
«Os Simples», “A Moleirinha”, que outrora se lia nos
primeiros anos escolares e mais tarde foi musicada:
Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma
velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a
reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc,
toc
A velhinha atrás, o
jumentinho adiante!...
Toc, toc, a velha vai para o
moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito
rol!...
E contudo alegre como um
passarinho,
Toc, toc, e fresca como o
branco linho,
De manhã nas relvas a corar
ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade
franca,
O jerico ruço duma linda
cor;
Nunca foi ferrado, nunca
usou retranca,
Tange-o, toc, toc,
moleirinha branca
Com o galho verde duma
giesta em flor.
Vendo
esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.
Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...
Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’rà fazer cristã!
Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!
Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...
Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...
Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
Guerra Junqueiro (1850 -1923)
É
certo que hoje já dificilmente o quadro da moleirinha penetrará nas
sensibilidades de uma juventude de estardalhaço e outros condimentos
deformadores dos sentimentos tradicionais, substituídos quantas vezes por uma
maior grosseria nos costumes. Mas a frieza e solenidade altiva de outros povos
mais condimentados intelectualmente, como diz Ruth Manus, talvez não perdessem,
se olhassem para este povo do sul que, na sua história conturbada, afinal
sempre se regeu por sentimentos valorosos de destemor e amor também - por
esfarrapado que fosse. E hoje, é certo temos uma grande dívida, mas foi enorme
o progresso, - prova de que mesmo os governantes que vamos progressivamente condenando
ou defendendo, bastante esforço fizeram para o concretizarem.
Assunto: Opinião de uma moça advogada do Brasil,
sobre Portugal
Coisas que o mundo inteiro deveria
aprender com Portugal
26/11/2016
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e
é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um
pouquinho mais parecido com Portugal.
Dentre as coisas que mais detesto, duas podem ser
destacadas: ingratidão e pessimismo. Sou incuravelmente grata e otimista e,
comemorando quase 2 anos em Lisboa, sinto que devo a Portugal o reconhecimento
de coisas incríveis que existem aqui- embora pareça-me que muitos nem percebam.
Não estou dizendo que Portugal seja perfeito. Nenhum lugar é. Nem os portugueses são, nem os
brasileiros, nem os alemães, nem ninguém. Mas para olharmos defeitos e pontos negativos
basta abrir qualquer jornal, como fazemos diariamente. Mas acredito que
Portugal tenha certas características nas quais o mundo inteiro deveria
inspirar-se.
Para começo de conversa, o mundo deveria aprender a
cozinhar com os portugueses. Os franceses aprenderiam que aqueles pratos com
porções minúsculas não alegram ninguém. Os alemães descobririam outros
acompanhamentos além da batata. Os ingleses aprenderiam tudo do zero. Bacalhau
e pastel de nata? Não. Estamos falando de muito mais. Arroz de pato, arroz de
polvo, alheira, peixe fresco grelhado, ameijoas, plumas de porco preto, grelos
salteados, arroz de tomate, baba de camelo, arroz doce, bolo de bolacha, ovos
moles.
Mais do que isso, o mundo deveria aprender a se relacionar
com a terra como os portugueses se relacionam. Conhecer a época das cerejas,
das castanhas e da vindima. Saber que o porco é alentejano, que o vinho é do Douro.
Talvez o pequeno território permita que os portugueses conheçam melhor o
trajeto dos alimentos até a sua mesa, diferente do que ocorre, por exemplo, no
Brasil.
O mundo deveria saber ligar a terra à família e à história
como os portugueses. A história da quinta do avô, as origens trasmontanas da
família, as receitas típicas da aldeia onde nasceu a avó. O mundo não deveria
deixar o passado escoar tão rapidamente por entre os dedos. E se alguns dizem
que Portugal vive do passado, eu tenho certeza de que é isso o que os faz ter
raízes tão fundas e fortes.
O mundo deveria ter o balanço entre a rigidez e a afeto que
têm os portugueses.
De nada adiantam a simpatia e o carisma brasileiros se eles
nos impedem de agir com a seriedade e a firmeza que determinados assuntos
exigem. O deputado Jair Bolsonaro, que defende ideias piores que as de Donald
Trump, emergiu como piada e hoje se fortalece como descuido no nosso cenário
político. Nem Bolsonaro nem Trump passariam em Portugal. Os portugueses- de
direita ou de esquerda- não riem desse tipo de figura, nem permitem que elas
floresçam.
Ao mesmo tempo, de nada adianta o rigor japonês que acaba
em suicídio, nem a frieza nórdica que resulta na ausência de vínculos. Os
portugueses são dos poucos povos que sabem dosar rigidez e afeto, acidez e
doçura, buscando sempre a medida correta de cada elemento, ainda que de forma
inconsciente.
Todo país do mundo deveria ter uma data como o 25 de abril
para celebrar. Se o Brasil tivesse definido uma data para celebrar o fim da
ditadura, talvez não observássemos com tanta dor a fragilidade da nossa
democracia. Todo país deveria fixar o que é passado e o que é futuro através de
datas como essa.
Todo idioma deveria carregar afeto nas palavras
corriqueiras como o português de Portugal carrega. Gosto de ser chamada de
miúda. Gosto de ver os meninos brincando e ouvir seus pais chama-los
carinhosamente de putos. Gosto do uso constante de diminutivos. Gosto de ouvir
“magoei-te?” quando alguém pisa no meu pé. Gosto do uso das palavras de forma
doce.
O mundo deveria aprender a ter modéstia como os portugueses
-embora os portugueses devessem ter mais orgulho desse país do que costumam
ter. Portugal usa suas melhores características para aproximar as pessoas, não
para afastá-las. A arrogância que impera em tantos países europeus, passa bem
longe dos portugueses.
O mundo deveria saber olhar para dentro e para fora como
Portugal sabe. Portugal não vive centrado em si próprio como fazem os franceses
e os norte americanos. Por outro lado, não ignora importantes questões
internas, priorizando o que vem de fora, como ocorre com tantos países
colonizados.
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e
é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um
pouquinho mais parecido com Portugal. Essa sorte, pelo menos, nós brasileiros
tivemos.
Ruth Manus
é advogada e professora universitária e assina um blogue no Estado de São
Paulo,

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