quarta-feira, 26 de abril de 2017

Breves aparas de contentamento



Enviou-me João Sena o seguinte email, que, naturalmente me deixou agradecida e feliz, por tão belo retrato do nosso país de trambolhões nas suas políticas, nos seus endividamentos, no exíguo da sua educação, manifesto sobretudo na taxa ainda elevada de analfabetismo relativamente aos demais países europeus. E no entanto, também concordo com a teoria da advogada brasileira Ruth Manus de que «o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido com Portugal», o país dos diminutivos, da indecisão, mas do “bom rapazismo”, da sã camaradagem, da entreajuda que já Nicolau Tolentino apontava na sua Sátira “A Função” «Em que as vizinhas vão / Pedir às vizinhas lume» e Guerra Junqueiro traduzia essas características de harmonia e bondade do povo simples no seu encantador poema d’ «Os Simples», “A Moleirinha”, que outrora se lia nos primeiros anos escolares e mais tarde foi musicada:
Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toc, toc, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toc, toc, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toc, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toc, toc, toc, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toc, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’rà fazer cristã!

Toc, toc, toc, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toc, toc, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toc, toc, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
 Guerra Junqueiro (1850 -1923)

É certo que hoje já dificilmente o quadro da moleirinha penetrará nas sensibilidades de uma juventude de estardalhaço e outros condimentos deformadores dos sentimentos tradicionais, substituídos quantas vezes por uma maior grosseria nos costumes. Mas a frieza e solenidade altiva de outros povos mais condimentados intelectualmente, como diz Ruth Manus, talvez não perdessem, se olhassem para este povo do sul que, na sua história conturbada, afinal sempre se regeu por sentimentos valorosos de destemor e amor também - por esfarrapado que fosse. E hoje, é certo temos uma grande dívida, mas foi enorme o progresso, - prova de que mesmo os governantes que vamos progressivamente condenando ou defendendo, bastante esforço fizeram para o concretizarem.

Assunto:  Opinião de uma moça advogada do Brasil, sobre Portugal
Coisas que o mundo inteiro deveria aprender com Portugal
26/11/2016
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido com Portugal.
Dentre as coisas que mais detesto, duas podem ser destacadas: ingratidão e pessimismo. Sou incuravelmente grata e otimista e, comemorando quase 2 anos em Lisboa, sinto que devo a Portugal o reconhecimento de coisas incríveis que existem aqui- embora pareça-me que muitos nem percebam.
Não estou dizendo que Portugal seja perfeito. Nenhum lugar é. Nem os portugueses são, nem os brasileiros, nem os alemães, nem ninguém. Mas para olharmos defeitos e pontos negativos basta abrir qualquer jornal, como fazemos diariamente. Mas acredito que Portugal tenha certas características nas quais o mundo inteiro deveria inspirar-se.
Para começo de conversa, o mundo deveria aprender a cozinhar com os portugueses. Os franceses aprenderiam que aqueles pratos com porções minúsculas não alegram ninguém. Os alemães descobririam outros acompanhamentos além da batata. Os ingleses aprenderiam tudo do zero. Bacalhau e pastel de nata? Não. Estamos falando de muito mais. Arroz de pato, arroz de polvo, alheira, peixe fresco grelhado, ameijoas, plumas de porco preto, grelos salteados, arroz de tomate, baba de camelo, arroz doce, bolo de bolacha, ovos moles.
Mais do que isso, o mundo deveria aprender a se relacionar com a terra como os portugueses se relacionam. Conhecer a época das cerejas, das castanhas e da vindima. Saber que o porco é alentejano, que o vinho é do Douro. Talvez o pequeno território permita que os portugueses conheçam melhor o trajeto dos alimentos até a sua mesa, diferente do que ocorre, por exemplo, no Brasil.
O mundo deveria saber ligar a terra à família e à história como os portugueses. A história da quinta do avô, as origens trasmontanas da família, as receitas típicas da aldeia onde nasceu a avó. O mundo não deveria deixar o passado escoar tão rapidamente por entre os dedos. E se alguns dizem que Portugal vive do passado, eu tenho certeza de que é isso o que os faz ter raízes tão fundas e fortes.
O mundo deveria ter o balanço entre a rigidez e a afeto que têm os portugueses.
De nada adiantam a simpatia e o carisma brasileiros se eles nos impedem de agir com a seriedade e a firmeza que determinados assuntos exigem. O deputado Jair Bolsonaro, que defende ideias piores que as de Donald Trump, emergiu como piada e hoje se fortalece como descuido no nosso cenário político. Nem Bolsonaro nem Trump passariam em Portugal. Os portugueses- de direita ou de esquerda- não riem desse tipo de figura, nem permitem que elas floresçam.
Ao mesmo tempo, de nada adianta o rigor japonês que acaba em suicídio, nem a frieza nórdica que resulta na ausência de vínculos. Os portugueses são dos poucos povos que sabem dosar rigidez e afeto, acidez e doçura, buscando sempre a medida correta de cada elemento, ainda que de forma inconsciente.
Todo país do mundo deveria ter uma data como o 25 de abril para celebrar. Se o Brasil tivesse definido uma data para celebrar o fim da ditadura, talvez não observássemos com tanta dor a fragilidade da nossa democracia. Todo país deveria fixar o que é passado e o que é futuro através de datas como essa.
Todo idioma deveria carregar afeto nas palavras corriqueiras como o português de Portugal carrega. Gosto de ser chamada de miúda. Gosto de ver os meninos brincando e ouvir seus pais chama-los carinhosamente de putos. Gosto do uso constante de diminutivos. Gosto de ouvir “magoei-te?” quando alguém pisa no meu pé. Gosto do uso das palavras de forma doce.
O mundo deveria aprender a ter modéstia como os portugueses -embora os portugueses devessem ter mais orgulho desse país do que costumam ter. Portugal usa suas melhores características para aproximar as pessoas, não para afastá-las. A arrogância que impera em tantos países europeus, passa bem longe dos portugueses.
O mundo deveria saber olhar para dentro e para fora como Portugal sabe. Portugal não vive centrado em si próprio como fazem os franceses e os norte americanos. Por outro lado, não ignora importantes questões internas, priorizando o que vem de fora, como ocorre com tantos países colonizados.
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido com Portugal. Essa sorte, pelo menos, nós brasileiros tivemos.

Ruth Manus é advogada e professora universitária e assina um blogue no Estado de São Paulo,
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