É
um pouco bater no ceguinho, mais uma vez voltar a um tema sem solução à vista,
pelo menos no que nos toca a nós, pois que os desacertos em França bem podem
concertar-se, num sentido da responsabilidade exigível num povo onde a corrente
racionalista teve a sua origem disseminadora de novas teorias ao nível das
diversas ciências, incluindo a da Ética. Tal não nos acontece a nós, onde o
desacerto a que se refere o texto de Maria João Avillez é de nível pessoal, com
características já de definitivo, pois, tal como dizia Sá de Miranda, “tudo
o mais renova. Isto é sem cura.” E não se trata da velhice no Homem, que
aponta Sá de Miranda em contraste com a renovação anual da natureza, trata-se
do carácter, da maneira de ser, da idiossincrasia, neste caso de um homem que
se assumiu como Presidente de todos os Portugueses, ser melado, aparentemente
cordial, mas definitivamente desejoso, acima de tudo, de exibir uma
omnipotência de presença, no exibicionismo, deseducativo, de afectos que o não são
de todo, a não ser pela sua própria imagem.
Mas leiamos Maria João Avillez e as suas opiniões bem esclarecedoras, que a
ironia atravessa aqui e ali.
Desacertos
OBSERVADOR,26/4/2017
Quase
se ouve um suspiro de alívio universal. Não começou a desintegração, a Europa
continuará a coxear mas hoje não caiu no chão, e apesar do tecido político
francês estar num farrapo, o resultado eleitoral que podia ser indecente, não o
foi. Estranho porém a tranquilidade
optimista que de forma geral registo nos écrans portugueses e constato nas
televisões europeias. Nem o homem é a pérola escondida que surgiu de dentro da
concha, nem as circunstâncias (as suas muito particulares circunstâncias
políticas) aconselham óculos cor-de-rosa sobre o futuro, a curto e médio prazo,
em França.
Já
se sabe que gente de direita (como eu, por exemplo) não pratica o optimismo com
leveza — não dá jeito, tolda a visão das coisas — mas qualquer ser normalmente
constituído não pode esperar o melhor das próximas legislativas em França e
serão exclusivamente elas que formatarão a futura França política e desenharão
o novo mapa partidário. Emmanuel Macron, sozinho em casa, nada fará, a
arquitectura da V República não deixa. O desacerto entre a sua solidão política
e a complexidade do cenário onde vai ter que actuar não convida ao triunfo,
mesmo que seja compreensível confundi-lo com o puro alívio face aos resultados
de hoje. E mesmo que este momento seja (evidentemente) de glória para um jovem
de 39 anos de quem poucos haviam ouvido falar há meia dúzia de anos, que
mobilizou meio país sem se comprometer com quase nada, sinal dos tempos.
(Sim,
excluo que a segunda vencedora desta noite, Marine Le Pen, entre — desta vez –
no Eliseu. Talvez por isso aquelas habituais contabilidades, típicas de uma
segunda volta, sobre para quem irão os votos de quem, não me interpelem
tanto.Logo se verá. A vitória de Marine Le Pen foi outra, já lá irei)).
Segunda-feira.
As
bolsas subiram, os chefes europeus rejubilaram, bebeu-se muito champagne. E no
entanto… há o tal desacerto, Macron está só, rodeado de
multidões felizes. Chamam-lhe “outsider”, não é. É verdade que não foi maire”
nem nunca chefiou a secção de nenhum partido, mas não será isso que lhe
permitirá usar os (sempre) almejados galões de “alguém fora do sistema”, tão
aliás do exuberante agrado do próprio Macron. Está no centro do sistema, foi
“enarca”, estudou Sciences Po, é um produto das elites e apesar do
entre-parentesis na Banca, o que tem feito é político e “política”. O
próximo Presidente destoa e desacerta porque os presidentes franceses, na V
República, aterram munidos de forte amparo partidário que eles chefiam e de
onde recebem legitimidade e força. É o chão deles. Macron não tem chão próprio
debaixo dos pés e vai ter que ter. Como? Eis o ponto. Uma coisa é o apoio dos
ex-candidatos Fillon e Benoit Hamon, que só os comprometem a eles, outra, os
partidos a que pertencem. Veja-se o sibilino “silêncio” de ontem de Nicolas
Sarkozy, líder dos Les Republicans e escute-se o tão audível ressentimento de
Alain Juppé. E observem-se os estilhaços do partido socialista, apesar de
Hamon. E apesar de Valls, do defunto Hollande, dos barões e das baronesas.
Desacertos por entre cinzas.
E
depois, mobilizada pelos talvez 40 por cento de votos que a sua candidata
deverá obter a 7 Maio, há a Frente Nacional. De quem vai ser preciso
fazer caso politicamente no hemiciclo da Assembleia, porque o partido existe,
porque cresceu, porque se sente forte e está unido. E com quem vai ser preciso
discutir, negociar e interagir.
E
se ainda ignoramos se Emmanuel Macron ficará assente em dois pés partidários –
uma novidade complicada – ou se “inventará” uma maioria dele, há algo que o
próprio mundo sabe : a França é o país mais instalado
que se conhece. Mudanças sim, desde que não a incomodem muito.E se incomodarem,
faz o que sempre fez até hoje: avança para a rua com a determinação das
divisões de Napoleão. A rua sempre fez recuar qualquer reforma ou deixou-as
desfiguradas ou mesmo irreconhecíveis, enquanto de caminho, a mesmíssima rua
obtinha como bónus, a pele de ministros e primeiros-ministros a quem enxotava
para fora dos governos. Reformar em França é proibição ou pecado e eis o mais
temível dos desacertos: entre a vital necessidade de reformar e a realidade da
sua impossibilidade. Quase se chega a ter pena de Macron. O que ele obviamente
dispensará e nem sequer merece. Mesmo que as coisas sejam o que são( muito
complicadas) e mesmo que se olhe para ele como já tendo mudado alguma coisa só
pelo simples facto de existir.
Terça-feira.
No
remanso do Oeste, o 25 de Abril chega-me por entre a brisa maritima e o doce
silêncio da casa. Não que aqui se deixe passar a lembrança pois segundo me
informa o Jornal das Caldas, “nas Gaieiras e em A-dos-Negros há 25 de Abril”.
Não pude aperceber-me se o festejo era condigno ou se o cansaço de 43 anos em
cima das pernas da efeméride, terá abrandado os ânimos e reduzido a
participação mas havia “lanche”. A passada de Marcelo, com ou sem lanche, é que
certamente não abrandou.
Falei
em desacertos, lembrei-me dele. À hora a que escrevo deve desdobrar-se nas suas
habituais profissões de fé pois teme sair do único modelo que o securiza: dizer
bem. Celebrará o dia por obrigação muito mais que por devoção; o país que não o
aflige; a geringonça que tanto ama. Celebrará tudo. E a ele próprio, sempre na
senda do recorde de presidente “popular”.
Desacerto
porquê?, perguntarão os devotos que encontro nos jantares burgueses
ou os portugueses das selfies. Perguntarão desconfiados, claro, porque acham
que a minha reserva “é pessoal”. Fazem mal. Ignorando que Marcelo Rebelo de
Sousa foi das pessoas com quem melhor trabalhei e com quem certamente melhor ri
e sabe-se como o riso — o de boa colheita — tece sólidas cumplicidades entre as
pessoas. Sucede que a radiografia é demasiado nítida para ser mal lida:
desacerto entre a exigência da função e a inconsequente leveza da actuação: um
estonteamento de “idas” e “saídas” onde se equivalem a trivialidade e a
tragédia, numa total falta de critério; a obsessão da “proximidade” e do
“contacto”,tratados como valores em si mesmos. O norte e o mote permanecem
imutáveis: sair. Quantas mais aparições melhor. Ao pé disto Nossa Senhora foi
mais cauta. (Por este andar mais valia alugar o Palácio de Belém onde o
Presidente nunca está, sempre dava algum dinheiro à geringonça que tanto
precisa dele embora nós saibamos que Centeno vela.)
Sejamos
sérios: actuar assim é exibir perante o país que nunca por nunca ser, o seu
Presidente tem em mãos um assunto, uma reflexão, uma ponderação, cuja
complexidade o impeça de sair porta fora, ao primeiro impulso.
Que a sua disponibilidade para aprofundar o estudo das questões é preguiçosa,
que preferirá sempre o movimento ao assento. A leveza à substância.
E
partir daquele imorredoiro desabafo do “ia a passar por aqui”, dito
presidencialmente há dias em Tires, após a trágica queda da avioneta, como
(assombrosa) justificação de lá estar dez minutos depois do acidente,
legitimam-me em absoluto: não posso ser acusada de nada pelo uso da palavra
desacerto.
Uma
pena. Com os dias contados, mas uma pena
à mesma.
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