Precisamente como a língua de Santo António - que
curou a cegueira, e alumiou, como o peixe do Tobias, domou, como a Rémora,
as paixões humanas da Soberba, da Vingança, da Cobiça e da
Sensualidade, convertidas em naus alegóricas, fez tremer os pescadores,
como o Torpedo, mostrou, como o Quatro -Olhos, que havia Céu e
Inferno para onde olhar - assim é o exemplo do actual Santo António, acrescido
de Costa, de iguais virtudes às do verdadeiro Santo António sem Costa,
conquanto igualmente português e genuíno alfacinha, como o de agora. Daí o seu
fascínio, que João Miguel Tavares justifica como provindo do próprio
fascínio que o nosso Santo António Costa manifesta por si próprio, tendo inúmeras
razões para isso, em minha opinião, vistas as grã cruzes com que tem sido galardoado na sua vida
de sucessos.
Leiamos João Miguel Tavares, que não tem papas
na língua quando descreve os efeitos da língua do nosso actual Santo
António Costa sobre os seus devotos e concluamos, como ele, que «a
melhor receita para perpetuar um estado de graça é viver sob a permanente
ameaça de desgraça», aforismo que não acudiu ao nosso Padre António
Vieira no seu “Sermão de Santo António aos Peixes”:
Os devotos de Santo António Costa
João Miguel Tavares
Público, 25/3/17
A
grande conquista de António Costa em 2016 não foi o défice de 2,1% – foi ter
despertado em muita gente o desejo genuíno de acreditar que aquele défice
corresponde a uma melhoria do estado do país. A maior parte dos portugueses
quer crer que os 2,1% são sustentados, reais, inteiramente merecidos, uma
vitória extraordinária da estratégia económica socialista e a prova definitiva
de que o país está no caminho certo. Quer crer que o verdadeiro diabo foi
Passos Coelho e que António Costa conseguiu melhores resultados com menos
enxofre. Quer ter fé no primeiro-ministro. Essa é, sem dúvida, a maior das
suas vitórias.
A
Europa, os mercados e as agências de rating continuam a não ter qualquer confiança
em Portugal – mas os portugueses, que não têm um matemático de jeito desde
Pedro Nunes, confiam nas contas do primeiro-ministro. Confiam, por exemplo, na
sua palavra quando ele garante, em resposta ao cepticismo de Wolfgang Schäuble:
“Os números são simples: 2,1% de défice, o melhor em 42 anos de democracia,
2% de saldo primário positivo, diminuição de um ponto da dívida líquida,
estabilização da dívida bruta e começo da redução, estabilização do sistema
financeiro, criação de 118 mil postos de trabalho líquidos. Estes são os
números. E contra factos não há argumentos.”
Mas
será que os números são só estes e que não há argumentos contra tais factos?
Peguemos num excerto de um artigo do economista João Duque no Expresso da
semana passada, dedicado a tentar compreender por que mistério a diferença
nas taxas de juro a 10 anos entre Portugal e a Alemanha era de 1,85% quanto
Costa tomou posse, e hoje é de 3,85%: “A atividade económica medida
através do PIB cresceu menos em 2016 (1,4%) do que em 2015 (1,6%). O consumo
interno, apesar de um esforço grande do Governo para o promover, cresceu menos
em 2016 (2,3%) do que em 2015 (2,6%). O investimento caiu em 2016 (-0,3%),
quando em 2015 tinha subido (4,5%). As exportações cresceram menos em 2016 (4,4%)
do que em 2015 (6,1%). O aumento da dívida pública (aproximadamente 7 mil
milhões de euros em 2016) foi superior ao défice orçamental do ano (4,2 mil
milhões de euros), mostrando que além do adiamento de despesa ainda houve muita
que não passou pelo Orçamento.”
Dir-se-á:
há números para todos os gostos, que permitem sustentar as teses dos dois
lados. Certo. Mas será tão simples assim? É verdade que cada um pega nos
números que mais lhe interessam, conforme as suas convicções ideológicas. A
esquerda agarra-se ao défice. A direita atira-se à dívida. Mas este não é um
simples jogo de soma zero. Nos anos pré-crise, todos reconheciam que Portugal
precisava de reformas profundíssimas, em virtude do descalabro demográfico e de
várias décadas de políticas públicas insustentáveis. Ora, a discussão sobre
esta visão de futuro pura e simplesmente desapareceu, triturada por uma
obsessão pelo presente. Muito por culpa da desastrada estratégia de Passos
Coelho, cada mês de vida deste governo dá direito a bolo e soprar de velas. Por
cada número que supera as expectativas, há fogo de artifício. Costa precisa de
muito pouco para fazer a festa e – má notícia para a direita – muitos
portugueses querem festejar com ele. Daí este clima ridículo de foguetório na
frente interna quando comparado com o absoluto cepticismo na frente externa.
Lição de política que nenhum de nós deve esquecer: a melhor receita para
perpetuar um estado de graça é viver sob a permanente ameaça de desgraça.
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