sexta-feira, 21 de abril de 2017

E tudo o vento arrasará



Perfeitamente assustador. Coitado do Álvaro de Campos, mas esse ao menos era génio para se reconhecer como tal! Coitados destes nossos filhos de hoje, filhos de pais que uma convulsão transtornou, pais de filhos cada vez mais mal entregues, numa sociedade tão extraordinariamente permissiva e cega e indiferente e… nada! Coitada! Coitados! E não dá para reconstruir, na vacuidade e no caos a que chegámos, onde um ou outro Diogo Queirós de Andrade vai sobressaindo aqui e além, a avisar. E, ao menos coremos de vergonha se é que isso ainda existe no nosso amorfismo parolo de imprevidentes e de coitadinhos.
As negociatas dos finalistas
Diogo Queiroz de Andrade
Público, 12 de Abril de 2017
Há um negócio que se especializa em subverter actos eleitorais em escolas cheias de menores através de ofertas em dinheiro e em géneros. Esse negócio concretiza-se em viagens mais ou menos selvagens onde o álcool corre à farta e o descontrolo é assegurado pelas mesmas empresas que promoveram o evento. Há dinheiro a passar de mão em mão, mas facturas nem vê-las. Há “famosos” de terceira e quarta categorias a animar festas de listas a associações de estudantes, que já negoceiam a vitória nas eleições em troca de pacotes de viagens de finalistas. Há estudantes angariados para angariar negócio junto dos colegas, num esquema em pirâmide que funciona enquanto todos ganham. E há ameaças sérias de violência num negócio em que os territórios são disputados palmo a palmo.
O melhor é que ninguém sabe de nada: não sabe o Ministério da Educação, que supostamente tutela as escolas e o que nelas se passa; não sabem os pais, que nem se informam sobre como é gerido o esquema que enfia os filhos em camionetas que os deixam à porta de um qualquer destino soalheiro; não sabe o Ministério das Finanças, que nem se interessa pelas muitas centenas de milhares de euros que são trocados de mão em mão sem quaisquer documentos; e não sabem as juventudes partidárias, que têm a sua acção de base nestas associações de estudantes que são tudo menos sérias.
O que menos interessa desta história toda é o que se passa durante a viagem: sim, há mais dinheiro a circular, muito álcool nas mãos de menores e rédea solta para os exageros. Hotéis, agências, pais e filhos contam com isso.
É o que menos interessa na história e só serve para títulos mais ou menos indignados.
O que conta aqui é a forma como tudo isto acontece e os resultados que tem: se a primeira experiência democrática que estas gerações vivem está corrompida por famosos e viagens a destinos mais ou menos paradisíacos, é difícil associar a política a algo nobre ou o exercício de cargos públicos a uma expressão de cidadania.
Talvez nada disto seja, em si mesmo, ilegal. Mas é certamente amoral — e tem consequências. Da próxima vez que lerem uma notícia sobre as pequenas e grandes negociatas, a violência no desporto, a prepotência de quem tem poder ou a candidatura a uma câmara de um ex-autarca condenado por corrupção poderão encontrar uma linha recta que conduz a esta notícia. 
Álvaro de Campos
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto urna simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.            Merda! Sou lúcido.

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