Dois artigos publicados em momentos pouco
distantes entre si - o primeiro de Teresa de Sousa, de 15/3 sobre as dissidências entre uma Turquia desejosa de se infiltrar na
Europa e que, contrariando a atitude xenófoba da extrema-direita holandesa
dirigida por Geert Wilders, (como nos esclarece também o título do
artigo de João
Ruela Ribeiro, na mesmo página,
sobre o ataque verbal de Erdogan contra a Holanda: «Fascistas, nazis e agora
genocidas. Da Turquia a Holanda já ouviu tudo») - e o artigo de OPINIÃO, em «À esquina do Mundo” de Vicente Jorge Silva, de
19/3, sobre a não consolidação da vitória de G. Wilders, nas eleições
holandesas, mas a constatação de que «A
Europa se mostra hoje muito menos tolerante à recepção dos imigrantes e receia
pela segurança das suas fronteiras e das suas sociedades.»
Dois artigos, pois, esclarecedores sobre este
nosso mundo, mas já recuados, afinal, e menos preocupantes ainda, do que as
notícias sobre Trump e a guerra possível envolvendo o mundo do nuclear que cada
dia que passa se torna mais instante.
Em todo o caso, abençoados
jornais e jornalistas que nos vão esclarecendo, com os seus saberes e alertando…
Erdogan
passou os limites e a Europa ainda não sabe o que fazer »
Teresa
de Sousa
Público, 15 de Março de
2017
1. As relações entre a União
Europeia e a Turquia têm sido uma história de enganos e desencontros. Dura há
décadas. Intensificou-se quando a Europa decidiu finalmente aceitá-la como
candidata (1999) e abriu as negociações de adesão (2005).
Para Ancara, a Europa era o principal objectivo estratégico.
Curiosamente, foi o partido islamista moderado de Recep Tayyip Erdogan que
acelerou as reformas políticas em matéria de democracia, do Estado de Direito e
do respeito pelas minorias, exigidas por Bruxelas. Muita gente
argumentava que o verdadeiro Erdogan não era aquele, lembrando o seu passado de
presidente da Câmara de Istambul. Ganhou três mandatos sucessivos. Foi eleito
Presidente em 2014, com uma Constituição que lhe dava poucos poderes.
Decidiu mudá-la e vai agora sujeitá-la a referendo em Abril. O seu objectivo é
concentrar o máximo de poder nas suas mãos, alterando a natureza do regime.
Iniciou uma deriva autoritária já sem qualquer disfarce. Reprimiu
manifestações e (quase) suprimiu a liberdade de imprensa. O golpe falhado (ou
forjado) do Verão passado deu-lhe o pretexto para eliminar os redutos do
secularismo ou das instituições democráticas, enviando para a cadeia milhares
de funcionários públicos, jornalistas, juízes e militares. A União Europeia
já avisou que a nova Constituição e o seu comportamento depois do golpe não são
compatíveis com os critérios exigidos para a adesão.
Abriu
agora uma guerra sem quartel com a Europa, cujo alvo imediato é a Holanda,
com uma comunidade turca de 400 mil pessoas, mas também a Alemanha, onde
vivem um milhão e meio de turcos. Precisa de todos os votos possíveis,
incluindo os da imigração, para vencer o referendo. Utilizou uma linguagem à
qual nem a chanceler nem os seus pares europeus podiam ficar indiferentes.
Depois de ter acusado o Governo alemão de “práticas nazis”, generalizou o
insulto ao Governo da Haia, tocando numa ferida que não se cura nunca - a ocupação
nazi. A escalada de tensão ainda não aliviou. Erdogan continua a subir a
parada. Este conflito pode ser uma bênção.
2.
A Holanda vota esta quarta-feira num clima de incerteza sobre os resultados. A
probabilidade de o partido mais votado ser o de Geert Wilders, ferozmente
anti-islâmico, ainda existe. Seria um choque. O primeiro-ministro Mark Rutte,
liberal, resolveu fazer uma campanha ambígua, quase tocando a linguagem
xenófoba, para tirar votos a Wilders. Analistas holandeses dizem que a forma
dura como geriu a crise com a Turquia visa o mesmo efeito, mostrando aos
eleitores que sabe como reagir às ofensas do líder de um país islâmico. O
primeiro-ministro sabe que as sanções prometidas por Ancara serão provavelmente
benignas. A Holanda é o maior investidor estrangeiro na Turquia.
Bruxelas já advertiu sobre os limites das suas diatribes contra a Europa. Logo
à noite se verá se a estratégia dos liberais teve algum efeito.
3. A Europa também tem
culpas no cartório. Nunca se entendeu sobre o que fazer com a Turquia. A
questão nunca foi pacífica nas opiniões públicas europeias, que não vêem com
bons olhos a entrada de um país muçulmano de 70 milhões de pessoas e um
desenvolvimento económico bastante inferior. A chegada de Merkel e de
Sarkozy ao poder alterou a política europeia. Ambos eram a favor de uma “parceria
privilegiada” rejeitando uma adesão plena. Ancara reagiu mal mas as
negociações prosseguiram. Durante as Primaveras Árabes, a Turquia ainda era
apontada como um exemplo de compatibilidade entre islamismo e democracia.
Tudo se perdeu na radicalização do poder turco e nas eternas hesitações
europeias.
4. A Europa, mergulhada numa profunda crise, deixou-se
encurralar pelas suas próprias contradições. A entrada em força na cena
política de partidos populistas e nacionalistas retirou a xenofobia e a
intolerância das margens para o centro do debate político. Para Rutte,
como escreve a Economist, qualquer pequeníssima
vantagem sobre Wilders é preciosa. As sondagens dizem que 86% dos holandeses
apoiam a forma como está a lidar com a Turquia. Curiosamente, o líder
populista abandonou os liberais quando o partido aprovou, em 2004, o início das
negociações com Ancara. A Holanda há muito que deixou de ser o que era.
Não apenas na relação com os imigrantes islâmicos (ou polacos) mas na própria
forma como vê a Europa. De país federalista passou a alimentar cada vez
mais reservas sobre a integração europeia. Ao lado da França, rejeitou a
Constituição europeia num referendo em 2005. Hoje, reduzir os poderes de Bruxelas
ou rejeitar mais integração aproxima-a, por vezes, mais de Londres do que de
Berlim. Wilders faz campanha a exigir um referendo sobre o "Nexit".
Opinião
O contágio do populismo
não acabou
Público, 19 de Março de 2017
O
populismo perdeu nas legislativas holandesas, como já antes tinha perdido nas
presidenciais austríacas, contrariando uma grande parte dos prognósticos feitos
até às vésperas dos dois sufrágios. Mas nem por isso a ameaça
desapareceu nem desaparecerá, mesmo que Le Pen seja derrotada em França e a
extrema-direita permaneça com um estatuto minoritário na Alemanha. Se a
grande mobilização do eleitorado holandês foi decisiva para impedir Wilders de
conquistar o primeiro lugar nas urnas, é também um facto que o discurso
populista e xenófobo contagiou a mensagem do vencedor das eleições, o
primeiro-ministro Mark Rutte, e dos partidos de direita e do centro que deverão
constituir a base da futura coligação governativa.
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