domingo, 30 de abril de 2017

“Tudo menos ter razão”



O primeiro artigo que segue, de Alberto Gonçalves, é sobre o conceito de liberalismo, em função da imposição de leis que retiram ao homem o livre arbítrio, o segundo, sobre umas críticas, que também ouvi ontem, de Passos Coelho ao Governo e suas manipulações “orientadoras” do “rebanho” de que tratou o primeiro, rebanho essencialmente vocacionado para acatar que outros decidam por ele, desde que lhes não falte o pasto. Quanto ao significado de liberalismo, o melhor é deixar correr, deveres não são connosco, preferimos salientar os direitos de homens livres, mesmo que os distúrbios que provocamos com isso, na liberdade que nos resta como único entendimento do conceito de liberalismo, prejudiquem os vizinhos e, num sentido mais genérico, a nação inteira. E há sempre os chefes sindicais que impõem as regras com muita autoridade, e esses pertencem aos partidos que falaram muito em liberdade do povo que até tem mais força numérica, ruidosa e agressiva, e isso lhes basta como teoria de liberdade ou de liberalismo que vem tudo a dar no mesmo. Aliás, já o dizia Álvaro de Campos à “pequena suja” da sua “Tabacaria”, mandando-a comer chocolates: “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”, “Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria”.
Alberto Gonçalves bem o sabe e reconhece que a lição foi de mestre quando afirma que “Os portugueses querem levar a vidinha sem sobressaltos, maçadas e vergonha na cara”. Pelo menos assim não sofrem os horrores espirituais por que passou Álvaro de Campos com a sua “consciência de estar existindo”:
«Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.» (Tabacaria)
Quanto à preocupação de Passos Coelho, que culmina na informação de que as reservas do Banco de Portugal vão ser dilapidadas - as tais que Salazar, previdente, nos deixou, creio que em barras de ouro - “o povo é sereno”, já o disse um almirante, desde que lhe não falte o pasto, não se preocupa com tais ninharias, o Bloco de Esquerda também não, ouvi ontem a uma das Mortáguas. Ou talvez antes à Catarina Martins, que quer dar chocolates ao povo, com que lhe saciarão - ela mais o governo e não sei se o PC - os ímpetos libertários. Mas Costa nega essa coisa do uso das reservas, não vale a pena denegrir, antes que "consummatum sit".




1º Texto:
Não me levem a mal, mas não haverá revolução liberal
OBSERVADOR, 29/4/2017
Os portugueses querem levar a vidinha sem sobressaltos, maçadas e vergonha na cara, promessas em que, por exemplo à imagem de Salazar, a esquerda é exímia. Falar-lhes de liberalismo é um luxo inútil.
À revelia dos meus princípios (é verdade, tenho dois ou três), há oito dias participei num encontro público. Em primeiro lugar, porque se realizou a escassos minutos de minha casa e a minha preguiça tem limites. Em segundo lugar, porque os organizadores são pessoas que estimo e detestaria desapontá-las. Em terceiro lugar, porque o tema era a conversão dos portugueses ao liberalismo e sou um devoto de causas perdidas e esotéricas.
Apareceram dezenas de curiosos, dos 17 aos – faço uma estimativa – 77 anos, talvez metade dos liberais disponíveis no país. Discutiu-se imenso. Não se chegou a conclusão nenhuma. Sobretudo, não saiu dali a sombra de um partido, um movimento, uma comissão, uma “iniciativa” sequer. É escusado acrescentar que a coisa correu maravilhosamente.
Apesar da retórica oficial e oficiosa em sentido contrário, gostar da liberdade não é para todos. Por cá, de resto, é para muito poucos. Há séculos que filósofos, pensadores e génios diversos tentam capturar, com rede ou zagalote, a “identidade” pátria. Eu descobri-a numa reportagem de “telejornal” sobre a eventual proibição de fumar em carros particulares na presença de menores. Inquirido a propósito, enquanto fumava ao volante com o filho no banco de trás, um indivíduo declarou-se irredutivelmente a favor da putativa lei. Ou seja, aquele portento de cidadão apenas esperava que o Estado o impedisse de cometer um comportamento que ele próprio achava condenável. E ele próprio não via nada de condenável nisso.
É natural. Inúmeros compatriotas esperam pelo Estado para quase tudo: a regulação de condutas, um “apoio”, um “jeitinho”, um abrigo, um ralhete, uma norma, um conforto, um emprego, o que calhar. Sem aval superior, nós – e por “nós” entenda-se a população quase em peso – não existimos. Pior ainda, desconfiamos que não somos dignos de existir. Não me canso de repetir, ou, para ser sincero, canso-me bastante: os portugueses são crianças, genuinamente desprovidas de um pingo de autonomia e para cúmulo satisfeitas com a situação. Às vezes resmungam? Claro que sim, já que é dever das crianças resmungar até que as devolvam à ordem ou lhes ofereçam o Cornetto de morango.
Esta semana, os dois principais animadores do encontro acima referido, o Telmo Azevedo Fernandes e o Vítor Cunha, assinaram no Observador artigos acerca da possibilidade de um liberalismo português. Começo pelo artigo do Telmo, que admiro pela inteligência e de que discordo pelo optimismo. Resumindo demasiado, o Telmo defende “a superioridade moral da defesa das liberdades individuais por contraponto a qualquer das alternativas ideológicas existentes”. Aqui, está evidentemente certo. Em simultâneo, defende ser possível convencer as gentes dessa superioridade. E aqui está infelizmente errado.
Os portugueses não são avessos à liberdade por desconhecerem os respectivos benefícios. Os portugueses são avessos à liberdade por conhecerem as respectivas desvantagens – e as vantagens da atitude oposta. Na medida em que deposita o destino nas mãos de cada um, a liberdade implica responsabilidade, risco e uma trabalheira desgraçada, em suma exactamente aquilo que o português evita, ou procura evitar, ao roçar-se diligentemente no Estado.
Menos esperançado que o Telmo, e para o final de um texto tipicamente admirável, o Vítor nota o ponto: “não basta o ‘argumento da superioridade moral do individualismo’”. Mais esperançado que eu, supõe que “a demografia envelhecida e a falência do Estado obeso farão mais pela necessidade de mudança que qualquer acção que os liberais possam directamente promover.”
É raríssimo divergir do Vítor. Logo, aproveito a oportunidade. Mesmo velhos e falidos, duvido que os portugueses culpem o socialismo mitigado ou demolidor em que intermitentemente vivemos. A culpa da derrocada final, se não for do Espírito Santo, será como sempre atribuída a outra força externa qualquer, empenhada por razões obscuras no enxovalho deste valoroso povo. Em parte, aceita-se: quem não se sente capaz de cuidar de si, não se sente forçado a assumir desvarios. O que não se devia aceitar é que os principais culpados, os manhosos senhores que instigam a dependência para reinar sobre multidões submissas, permaneçam invariavelmente impunes.
Ignoro se os portugueses são subordinados cá dentro porque Portugal o é lá fora ou se Portugal é subordinado lá fora porque os portugueses o são cá dentro. Também ignoro se a ancestral pobreza de espírito advém da ancestral pobreza material ou se acontece o inverso. Porém, acredito que, privados de um vestígio de emancipação, somos presa fácil de pantomineiros vários. Acredito que os pantomineiros de hoje desceram a um descaramento inédito. E acredito que o descaramento dos que mandam é proporcional à vassalagem dos que obedecem. Quando, no dia seguinte a fingir comemorar a liberdade, a criatura que passa por primeiro-ministro informa o parlamento de que não lhe deve satisfações e a proeza não implica consequências, o nosso futuro é previsível.
Salvo os irremediavelmente patetas, os portugueses sabem que a liberdade de “Abril” é, no mínimo, um bocadinho fraudulenta. E sabem que a “justiça social” é um eufemismo para o controlo da economia por uns tantos. E sabem que a retórica das “causas” é um projecto de lavagem cerebral. E sabem que o regime é propriedade de grupos, grupúsculos e “personalidades”. Simplesmente não querem saber. Os portugueses querem levar a vidinha sem sobressaltos, maçadas e vergonha na cara, promessas em que, por exemplo à semelhança de Salazar, a esquerda é exímia. Falar-lhes de liberalismo é um luxo inútil, uma excentricidade similar a descrever os méritos do casamento aberto a um membro do Estado Islâmico. O tipo olha-nos com desprezo, vira costas e regressa à rotina de cortar cabeças. Os portugueses não cortam cabeças, mas não têm a sua em grande conta.

2º Texto:
Passos denuncia que democracia “está a definhar” com prática política da esquerda
Líder da oposição acusa esquerda de "atacar instituições independentes" e com isso "enfraquecer a democracia". Diz que Governo não assinou relatório de dívida para não ter "negativa" de Bruxelas.
O líder do PSD alertou este sábado que “a cada dia que passa” Portugal vive uma “democracia cada vez mais limitada”. Na apresentação do candidato do PSD à câmara de Arganil, Passos Coelho denuncia que a “democracia definha” porque a maioria de esquerda segue “uma prática política” de “atacar, desqualificar e ameaçar” as “instituições independentes que não têm o mesmo ponto de vista do Governo”.
O líder da oposição diz que este ataque socialista é dirigido aos “reguladores, ao Conselho de Finanças Públicas, à própria Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO)” e a todos os que “não fazem coro a defender o Governo“.
Passos Coelho diz que o “narcisismo socialista” está a “tornar-se ridículoe acusa bloquistas, comunistas e socialistas de conviverem mal com a crítica. O presidente do PSD defende que “só há uma democracia forte com instituições independentes fortes” e assinala a incoerência entre a prática dos partidos de esquerda e o facto de se sentirem “donos do 25 de Abril.
O líder do PSD falou ainda sobre o relatório do PS e do Bloco de Esquerda sobre a dívida pública, lembrando que “andaram anos a seringar toda a gente que tinha de se reestruturar a dívida e as final as soluções que apresentam não são para reestruturar a dívida, mas para gerir a dívida“. Passos ridicularizou o facto de pedirem que a dívida fosse paga a 45 anos e a juros baixos e atirou:
Percebe-se que o Governo não queira assinar o relatório, para não cair no enxovalho de levar negativa de Bruxelas.”
Passos considera as propostas do relatório “negativas” e próximas “do que José Sócrates fez”. Acusou ainda a esquerda de querer “deitar a mão às reservas do Banco de Portugal, não para pagar dívida, mas para suportar o orçamento do Governo. Querem rapar o fundo ao tacho!”.


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