Parece que causavam males nas terras, vestígios
maléficos do domínio mourisco, que levou séculos a esvair-se. Mas havia quem
por elas se apaixonasse, há gostos para tudo. No caso da ópera alemã, o turco
mau revelou-se bom, para que um final feliz viesse a suceder aos bons amantes,
como nas histórias de encantar, pois Mozart era bem jovem e brincalhão, para aceitar
um desfecho trágico. N’O Mercador de Veneza, também o judeu agiota Shylock
bem que se tramou no seu ódio pelo mercador cristão António, ao exigir como
fiança do dinheiro que este lhe pediu emprestado para ajudar um amigo enrascado,
Bassanio, ao exigir, digo, caso não lhe fosse devolvido o dinheiro, uma libra
da sua própria carne cristã. E não fosse a artimanha de Pórcia, mulher de
Bassanio e advogado travesti, exigindo que a libra de carne fosse limpa de
sangue, o pobre António não escaparia ao ódio do semita. Tudo pois, gente da má
vontade cristã, sejam turcos mouros ou judeus, e com razões para isso. Já o
génio shakespeariano explorava os temas anti-semíticos e tantos outros com
inimitável arte e incomparável escrita. Até hoje ainda, como afirma Manuel Villaverde Cabral, «só
por ironia se pode perguntar se alguma vez, em lugar algum, o islamismo foi
compatível com a democracia. Nem na Turquia nem, infelizmente, em nenhum outro
país islâmico.» Só que hoje o ódio - talvez recíproco - mete mais gente
ao barulho, embora sem a arte e a fantasia do dramaturgo inglês, e com muito sangue
e lágrimas no meio. E suor também, naturalmente. Aguarde-se.
O rapto do serralho
OBSERVADOR,
16/4/17
Há
apenas 235 anos, perto do final do século XVIII, Mozart ainda evocava na
primeira ópera que estreou em Viena (O rapto do serralho, 1782) a
memória da presença turca na Europa, que só há menos de um século começara a
afastar-se definitivamente da Áustria, da Hungria e da Europa oriental, até
ficar reduzida ao enclave que hoje detém no lado de cá do Bósforo. Hoje, no
momento em que começo a escrever esta crónica dominical, as urnas do referendo
que teve lugar este domingo na Turquia – a fim de decidir se o país se afastava
de novo da Europa e se rendia de novo a uma ditadura islâmica – fecharam
há menos de quatro horas.
Apesar
da recuperação final do “Não” nas maiores cidades do país, em particular
Istambul e Esmirna, ambas sobre o Mediterrâneo, com perto de 97% dos votos
contados está virtualmente garantido o “Sim” à nova Constituição proposta pelo
Presidente Erdogan. Quanto aos votos da «diáspora turca» na Europa, já foram
contados e, como era de recear por parte dos emigrantes, vão no sentido do “Sim”.
Entretanto, a oposição impugna os resultados. Seja como for, tudo
leva a crer que, embora o “Sim” e o “Não” estejam separados por pouquíssimos
pontos percentuais, como já sucedeu com o «Brexit» no democrático Reino Unido e
poderá acontecer algo política e culturalmente equivalente na democrática
França dentro de três semanas, a nova Constituição turca concluirá a bem ou a
mal o processo ditatorial em curso.
Este
processo já estava, aliás, claramente delineado pelo golpe ou contra-golpe que
Erdogan e os seus seguidores acabaram por mover, há menos de um ano, contra os
últimos resistentes de uma ordem minimamente pluralista, hoje assassinados,
encarcerados ou expulsos dos empregos às dezenas de milhar. Os
paralelos remotos de Mussolini e Hitler confirmam aliás que os ditadores podem
muito bem começar por ser eleitos… E se, por milagre, o resultado final do
referendo ainda se alterasse, o processo em curso não se deteria perante uma
repressão brutal, seja sobre os militares, juízes e outros funcionários
públicos da oposição, seja sobre os «media» e o professorado, até à implantação
da ditadura com todas as suas características de dominação total.
Isso
afastará de vez a Turquia da Europa, à qual na realidade só pertenceu por
oportunismo de uns e outros, incluindo a NATO, facto este que os Estados
Unidos, sob a actual presidência, terão a maior dificuldade em gerir, assim
como a União Europeia terá o maior embaraço em resolver o chamado «problema dos
refugiados» provenientes de um Médio Oriente virado do avesso, seja lá por
responsabilidade de quem. Os anteriores dirigentes norte-americanos e
britânicos terão, seguramente, muito mais responsabilidades nisso do que os
europeus!
Como
todos os actuais processos de mudança em que temos estado envolvidos nos últimos
tempos à escala internacional, também o processo ditatorial turco fractura o
país rigorosamente a meio, opondo frente a frente a metade mais moderna à mais
conservadora. A clivagem, porém, não passa tanto ou não só pela arcaica
divisão entre a esquerda e a direita dos manuais partidários, como tantas vezes
se crê, mas sim por uma espécie de regressão cultural perante as mudanças e
desigualdades de tipo novo originadas pelo êxito contraditório da globalização
económica e financeira, bem como mediática e tecnológica, nas últimas décadas.
Por
seu turno, estas novas fracturas causadas pela globalização remeteram
concretamente uma grande parte da população em todo o universo globalizado, sem
que as oligarquias políticas reinantes se apercebessem disso, para as
convicções ideológicas mais primárias, ou seja, para a política como religião
pela qual sempre se regeram, aliás, tanto as ditaduras de direita como as de
esquerda. Em contextos como estes, a ideologia acaba sempre por se refugiar num
misto demagógico entre nacionalismo e religião ou qualquer substituto desta que
dão origem, por sua vez, à multiplicidade de «populismos» que hoje brotam de um
dia para o outro.
No
caso preciso da Turquia, só por ironia se pode perguntar, como fazia ainda agora Teresa de Sousa, se alguma
vez, em lugar algum, o islamismo foi compatível com a democracia? Nem
na Turquia nem, infelizmente, em nenhum outro país islâmico, por motivos que
não são, afinal, tão difíceis de entender. Só na nossa área geocultural,
basta pensar no tempo que a democracia levou a implantar-se, em geral
fragilmente, nos países católicos e ortodoxos, por óbvio contraste com os
países protestantes.
Possivelmente,
o que está a suceder hoje é que as sociedades emergentes de décadas de
globalização, incluindo as que consideram estar no «centro» do processo, como
os Estados Unidos e a UE, estão fracturadas por divisões e perspectivas
inéditas para as quais as democracias tradicionais, especialmente as de baixa
intensidade como sempre foi a nossa, não foram concebidas e mostram ter muita
dificuldade em se adaptar. Foi por isso que a liberdade individual adquiriu
um valor único como critério democrático – exactamente aquele que uma pequena
maioria de turcos deitou hoje a perder.
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