Está tudo certo. E tem um
humor muito especial, em estilo característico, feito de sequências,
enumerações, argumentos reveladores de sensibilidade e poder de observação, nem
é preciso sublinhar, escaldados que andamos com a perpetração de crimes, coisa
nunca dantes vista, ou, pelo menos, menos conhecida. A mulher não podia fazer
frente, escassa de direitos, educada que era nos princípios machistas. É certo
que as mulheres também sabem muito, sempre souberam, espertas que são, e às
vezes impõem-se. Nunca me esqueço, por exemplo, do livro de John Erskine, “A
vida privada de Helena de Tróia”, que mostra uma Helena regressada de
Tróia, depois de ter sido levada para lá por Páris, e conservando o mesmo poder
sedutor acrescido de experiência e filosofia de vida que tanto atraía os
homens, dos quais o marido Menelau, que, quando ia para a matar pelo seu
adultério, ocorrido dez anos antes, ela lhe facilitou o serviço mostrando-lhe
os seios irresistíveis, o que enfraqueceu o ímpeto vingador de Menelau, que
preferiu desistir da vingança e levá-la de volta ao seu trono de Esparta e ao seu leito conjugal. Mas são
casos raros e, para todos os efeitos, as mulheres pertencem ao sexo fraco, em
termos de medição de forças ficam a perder, tirante os conhecidos das Medeias
míticas que as tramam pela calada, ou as Messalinas históricas, cheias de
potencial erótico, e, modernamente, as jovens actrizes de filmes, que aprendem karaté
com o actor nipoamericano de pera e olhos cerrados de espiritualidade,
Noryyuki, o qual ensina também comportamentos de nobreza, num mundo como devia
ser, a rapariga sensível vencendo o rapaz brutal e cobarde. Nós por cá também tivemos a
padeira de Aljubarrota e a Maria da Fonte, além da sucessora menos bem
sucedida, Catarina Eufêmia, no século passado, mas são casos raros, embora
depressa se tivessem tornado simbólicos, o que nos ergue o orgulho, não só o
masculino como o feminino, pese embora o fraco nível físico e espiritual das
figurantes, universo que melhor nos quadra, em termos de simbologia. E é nesse
universo destituído de rigor educativo, que o nosso homem latino se enquadra
agora, matando a companheira, tresloucadamente, ou maltratando-a cobardemente,
numa demência de frustração, agora que as leis impõem paralelismo de
liberdades, que não temos o savoir faire de companheirismo necessário
para aceitar.
Leiamos o impecável artigo de António
Barreto, literato e humanista comme il faut:
Mulheres batidas
António Barreto
D.N., 2/4/17 -
Sem
Emenda
Há termos em voga: assédio sexual e violência
doméstica, por exemplo. Nenhum é falso. Mas ambos escondem qualquer coisa: a
violência masculina! É sobretudo disso que se trata.
Pode haver estudos e análises. Consultas e exames.
Nunca se chegará bem a saber o que leva um homem a espancar a mulher, a bater
na mãe, a desancar a namorada, a surrar a amante e a sovar a filha! Mas
sobretudo a mulher, a mãe dos seus filhos, a pessoa que se ocupa dele, lhe faz
as refeições e trata da casa! Ou simplesmente a pessoa que com ele vive e
dorme.
É uma das piores baixezas da humanidade! A violência
masculina tem razões estranhas: sexo, ciúme, insegurança, impotência,
desconfiança, exibicionismo, ignorância, vingança, álcool, prepotência... Não é
de esquerda nem de direita. Não é do Norte, nem do Sul. Não é do crente, nem do
ateu. Não é do rico, nem do pobre. Não é do doutor, nem do analfabeto. Não é do
inteligente, nem do estúpido. Não é do velho, nem do novo. Não é do português,
nem do estrangeiro. Não é do rústico, nem do citadino.
Que animal é este, difícil de compreender, impossível
de entender? Podemos recorrer a psicólogos, médicos, psicanalistas, sociólogos,
polícias e juristas: nenhum satisfaz a necessidade de compreender.
São anualmente cinco a dez mil mulheres as que, após
violência continuada, apresentam queixa. Mas são cinquenta a cem mil as que
nunca apresentaram queixa, não se sabe bem porquê, mas suspeita-se com certeza.
Por medo e pavor. Por timidez e vergonha. Ou por pobreza e miséria. E são cerca
de cinquenta as que, anualmente, já não apresentam queixa, pela simples razão
de que foram assassinadas. Isso mesmo, assassinadas! Há homens assim, que
assassinam a mãe dos seus filhos! Nem animais!
O homem bate-lhe porque tem ciúmes, porque ela olhou
para outro, no restaurante, porque ela sorriu para outro, no emprego, porque
ela falou com outro, ao telemóvel, porque ela ouviu as histórias do outro, no
autocarro.
Bate-lhe porque o patrão se zangou, porque o chefe o
censurou, porque teve má avaliação no emprego e, ao chegar a casa, bateu em
quem tinha à mão.
Bate-lhe porque deu uma nega, porque esteve impotente
com a amante, porque não conseguiu sair com uma namorada.
Bate-lhe porque ela não obedeceu a uma ordem dele,
porque respondeu ou resmungou, porque ela lhe disse que estava cansada, que
precisava de dormir ou porque não quis fazer amor com ele.
Bate-lhe porque ela lhe disse que ele bem podia ajudar
em casa, com os filhos, com os pais ou os sogros, nas compras, na louça, nos
pagamentos e no lixo.
Bate-lhe porque, no golfe, as coisas não correram bem,
porque as acções na bolsa baixaram 5% num só dia ou porque o banco exigiu o
pagamento da dívida.
Bate-lhe porque bebeu uns copos a mais, porque o seu
clube de futebol perdeu e um amigo lhe estragou o carro.
Bate-lhe porque ela lhe disse que ele bebia de mais,
que podia passar um pouco menos de tempo diante da televisão, ou no escritório,
à noite, ou no café, com os amigos.
Bate-lhe porque é como o Sebastião, que come tudo,
tudo, tudo, que come tudo sem colher, que fica todo barrigudo e depois dá
pancada na mulher.
Bate-lhe porque o peixe estava queimado e a carne
estava crua, porque a mesa não estava posta a horas, porque ele chegou tarde e
o jantar estava frio.
Bate-lhe porque ela esteve a ler livros que não devia
ler, a ver filmes que não devia ver e a ouvir música que não devia ouvir.
Bate-lhe porque é o seu direito, porque é a sua
mulher, para lhe lembrar que quem manda é ele, porque ela não sabe cuidar dos
filhos, porque os filhos têm más notas, porque é frustrado e traumatizado, já o
pai dele batia na mãe e consta que o avô batia na avó.
Bate-lhe porque ela estava mesmo a pedi-las, com
aquela maneira de se vestir e de se comportar diante de toda a gente.
Bate-lhe porque ela disse que se queria separar ou
pedir o divórcio.
Bate-lhe porque uns tabefes nunca fizeram mal a
ninguém.
Bate-lhe porque ela gosta.
Bate-lhe porque ela está ali.
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