A Maria João Avillez anda muito comichosa e tem
razões para isso, devido aos desencontros das opiniões que se escrevem duma
maneira e logo admitem o seu contrário, que pode sê-lo ou não o ser na
totalidade, porque quem diz que é explica porquê ao passo que o que diz que
acha que não é bem assim, em defesa própria, não usa definição, só acha, isto
é, boicota a justificação elucidativa, o que provoca as comichões de Maria João. E
aqui estamos nós, no domínio de uma filosofia de trazer por casa, bem distante
da radicalidade do «ser e não ser» de que outros trataram com o rigor do
saber. Mas estamos em democracia, aberta às opiniões, que são sempre várias, com
sinuosidades e tergiversações, mais conformes com as subjectividades de cada
um, embora só depois do 25 de abril se tenha acordado para a transparência, era
o que se exigia a plenos pulmões na altura. De facto, descambámos. Pelo menos os
pruridos de Maria João Avillez o denunciam, com muita pinta:
Erupção cutânea
12/4/2017
Quem
não ganha uma erupção cutânea nas estranhas circunstâncias políticas de hoje?
Este meu último surto foi provocado pela oficialização do “não é bem assim”.
1. Ando impaciente. Pensava que o
ter já visto muito, que a prática aturada – e apurada – que tenho da natureza
humana ou que a idade me podiam ter precavido contra estes excessos de
impaciência, mas não. Cai-me mal que façam de mim parva a este ponto, ou a
qualquer outro ponto. E nem a quadra Pascal e o que ela me recomenda amenizaram
esta espécie de irritação, como uma erupção cutânea. Podem estranhar a
palavra, não acho outra melhor: quem não fica assim nas circunstâncias que são
hoje as nossas estranhas circunstâncias políticas?
Este
último surto – não é a primeira vez que sou atacada – foi provocado pela oficialização
do “não é bem assim”. Passou a ser totalmente natural uma coisa ser
propagandeada como sendo ”assim” e a realidade mostrar-nos que afinal “não é
bem assim”. Uma novidade. Como se tivéssemos entrado numa nova era, um novo
regime de vida, uma decididamente nova modalidade de fazer política.
Senão,
repare-se nisto:
a) o Presidente da nossa cansada
República vai em pessoa inaugurar o novo nome de um aeroporto a uma ilha. Acto
já de si singular e a provocar estranheza, mas eis que a bizarria se torna
aguda: o primeiro-ministro também vai. Vão os dois? Voam de Lisboa ao Funchal,
com o mesmo (leve) propósito? Sim, voam. Não havendo explicação racional nem
plausibilidade política, resta uma intuição que embora original deve ser
verdadeira: ambos são um passatempo (barato) um para o outro. Nenhum deles
aliás esconde a felicidade causada pela cumplicidade que os atacou, como a mim
a erupção cutânea. O nome do aeroporto glorificando um futebolista (genial
é certo…) casa aliás às mil maravilhas com o ar deste tempo de facebooks e instagrams,
mas, that’s the point, afinal o nome “não é bem assim”, porque pode não “ser
bem este”.
Pode
ser, não se sabe, talvez seja. Já lá está uma placa e um irrisório e letal
busto assinado por um “autodidacta”, mas o nome do aeroporto ainda não está oficializado.
Ou seja: não foi bem assim como ”eles” disseram, mas que importância tem? A
media amplificou a tournée regional do extraordinário trio das duas altas
individualidades nacionais e do futebolista, o país parou, o país gostou (mesmo
que não tenha sido “bem assim”).
b) O caso da ida – que não foi
ida – do ministro das Finanças para o Eurogrupo também “não foi bem assim”.
Até ao dia em que escrevo (segunda-feira) nenhum alto responsável europeu
“certificou” a ideia, não consta que tenha havido “conversações”, não se
conhecem iniciativas que comprovem o desejo de ver Centeno liderar aquela
função. Admito evidentemente que num elevador ou diante de uma bica no
intervalo de uma sessão, alguém tenho dito ao ministro que “ele é que, etc.”,
mas que garantia de credibilidade haveria nisso? Além de que seria no mínimo
estranho – mas posso estar enganada – que o resto do Eurogrupo anuísse em ter como
novo líder alguém vindo do país que com mais empenho, maior veemência e notável
ruído pediu a demissão de Dijsselbloem, frente ao quase silêncio do resto do
“sul”. É certo que Dijsselbloem pode partir antes do final do mandato se
deixar as Finanças – caso provável após a derrota socialista nas eleições
holandesas –, já que tradicionalmente o Eurogrupo é liderado por um ministro
das Finanças. Será porém esse fracasso partidário e não o primarismo infeliz
das suas recentes investidas contra o sul que lhe darão – ou não – uma guia de
marcha. (Sul por Sul, o que me dizem nas portas onde bati para o meu
trabalho de casa é que a escolha pode recair no espanhol Guindos.) O que
interessa nesta história é o que interessa ao poder: ganho para a geringonça.
Ficcionou-se abusiva e abusadoramente a projecção internacional de Mário
Centeno, o governo fez oportunisticamente de conta que em Bruxelas somos gente,
o país engoliu a história sem se interrogar porque deixou de se interrogar ou
se importar. Que interessa aos portugueses que nada disto tenha sido “assim”,
desde que o ministro lhes “devolva” ou “distribua” ou “dê” mais dinheiro (que
não é nosso), prometendo-lhes além disso que não os maça?
c) A história de que a venda do
Novo Banco não vai desaguar nos nossos pobres bolsos também “não é bem assim”.
Qualquer político sério o sabe, qualquer bom economista o corrobora. A
diferença, justamente pouco séria, é que o Governo também sabe mas não o diz.
Diz “de momento”, ardilosa expressão. Sim, talvez os custos da aventura não
aterrem já em cima do nosso fim de mês mas lá mais para diante ou lá mais para
o ano, não se sabe. Ou melhor, sabe-se. Mas o que interessa é fingir que
não, andar para frente, cada dia é um dia, e a geringonça vive disso mesmo,
cada dia é mais um dia “seu”.
d) Paulo Macedo foi durante
quatro pesados anos o (assim chamado) “coveiro” do Serviço Nacional de Saúde. Sucedeu-lhe
um (suposto) salvador do mesmo Serviço Nacional de Saúde. Anunciado como
preparado, experiente, competente, dedicado. Afinal parece que “não é bem
assim.” Salvo a dedicação, que ignoro se existe, nem a preparação, nem a
competência, nem experiência parecem condizer com o actual estado de saúde
desta área governativa. As dívidas dos hospitais roçam o astronómico; há muito
que não se verificavam listas de espera deste tamanho, as urgências (um cavalo
de batalha do actual ministro que prometeu agilizá-las ao máximo) estão
atulhadas. As ordens e instruções para trocar o investimento por salários e
benesses não podia acabar bem.
Ignoro
se a ordem veio de cima ou da cabeça do ministro – o que não ignoro é que foi
isto que aconteceu. Como a comunicação social misteriosamente se desinteressou
das reportagens incandescentes que fazia, desistindo dos alarmes que acendia e
das campainhas que tocava na Saúde, parece que está tudo bem. Está como quase
tudo o resto, está “não é bem assim”. (Só não está pior graças ao sentido de
responsabilidade e à capacidade de serviço da muita gente séria e boa que lá
trabalha.)
No
tempo do (falso) coveiro do SNS e apesar de austeridades, troikas e Gaspares,
abriram-se os hospitais Beatriz Ângelo (Loures) os de Amarante, Guarda, Lamego
e o novo de Vila Franca de Xira, (para citar os que me lembro agora). E houve-
por exemplo -. investimento de vulto em instituições de saúde tão vitais como o
IPO de Lisboa e do Porto. Não me parecem maus exemplos de boa gestão.
2. Os casos a que aludi acima –
propositadamente distintos entre si – mostram como o “é assim” que nos impingem
tem sido recorrentemente falso, substituído com publicidade e sem vergonha pelo
“não é bem assim”.
Não,
não é uma questão linguística, nem de interpretação, nem sequer um problema que
se resuma à conjugação do verbo mentir. É uma nova modalidade de prática
política e de acção governamental. Não a conhecíamos, mas vai-se sempre a
tempo.
O
próprio tempo é que pode não dar tempo ao tempo.
3. De modo que é isto. E um dos mais
felizes com “isto” é o Presidente (o muito amado) pois só lhe falta andar pelos
telhados do país para anunciar ainda mais alto tantas boas novas. Peço
desculpa, mas hei-de lembrar esta estonteante felicidade presidencial sempre
que vier a propósito. Qualquer dia também ela deixará obviamente de ser “bem
assim”. Mas até lá e para que daqui a um, dois, cinco, dez anos, a felicidade
não fique sepultada no tão português esquecimento das coisas, não subestimarei
o extraordinário entendimento que o actual presidente tem das suas funções e
de como “acha” que deve exercê-las.
4. A matança dos cristãos coptas
no Egipto no último domingo (chamado o de Ramos na liturgia católica) foi a
porta de entrada para a Paixão de Cristo que se revive e celebra por estes
dias. Dolorosa entrada a selar a Semana Maior. Mas a grande, ou melhor, a única
grande questão que esse gesto brutal e demencial suscita é perguntarmo-nos que
vamos nós fazer com ele. Que significado lhe dar, que peso lhe reconhecer, que
fronteira perceber que ele passou, que limite lhe conceder?
Muitos
semi-ignoraram o assassinato, uma coisa lá longe, praticada sobre um povo
“diferente”; outros, espantosamente, parece que já se habituaram a matanças
assim, uma trivialidade, como quem vai pôr gasolina ou comprar tabaco; para
outros ainda, a esmagadora maioria, o tal povo longínquo, só conta e é notícia
se estiver nas praças das primaveras árabes em vez de numa igreja minoritária a
rezar mesmo que seja assassinado a seguir.
Mas
– insisto – só há uma pergunta: que fazer com o que sucedeu a partir do momento
em que não podemos disfarçar a responsabilidade de pertencer à civilização
ocidental e de sermos filhos da matriz cristã onde foi forjado o chão de onde
somos?
Que
compromisso nos irá merecer a memória do sangue dos que, no último domingo, não
puderam chegar ao fim das suas orações numa igreja do Egipto?
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