terça-feira, 18 de abril de 2017

Óbolo a prestações



No mesmo Público de 11 de Abril, de que consegui transpor directamente o texto de Bagão Félix, já não consigo transferir nenhum mais. E, no entanto, outros gostaria de guardar, como estes que tratam do vulto de Maria Helena da Rocha Pereira,   - “A mulher que aprendeu com os gregos que a beleza é difícil” (em Obituário e Biografia por Lucinda Canelas), e «Clássica mas muito moderna», por António Guerreiro, de homenagem póstuma.
Conheci-a nos meus tempos de Coimbra como espécie de génio nas clássicas e dela tenho a tradução de «AS Bacantes» de Eurípedes, do volume EURÍPEDES I», de que escreveu o Prefácio. Limito-me a respigar algumas frases-síntese do artigo de António Guerreiro -«Clássica mas muito moderna» : “Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017 (10/4) foi durante décadas o rosto dos Estudos Clássicos em Portugal. Deixa uma obra vastíssima e um exemplo de determinação e rigor.”. “As competências linguísticas e gramaticais foram sempre para ela, um instrumento para aceder à riqueza cultural e literária dos textos da Antiguidade. Coube-lhe também o papel pioneiro de ter entrado, isolada, num mundo estritamente masculino”.
E vou reler a sua tradução de “As Bacantes” de Eurípedes, com a respectiva Introdução - forma de recordar alguém de quem ouvia falar com admiração, numa altura em que tinha ainda fresco o conhecimento do grego ministrado pelo excelente professor Francisco Maria Martins, no liceu Salazar de Lourenço Marques.
Mas os gregos passaram para nós, salvo para alguns que se dedicam ainda a traduzi-los, como faz Frederico Lourenço que, todavia, é dos que aderiu ao Acordo Ortográfico de 90, o que bem me amofina, como traição inesperada a uma espécie de “Juramento de Hipócrates” das Letras, que faz que jamais se desdenhe a racionalidade da ortografia que assenta em bases clássicas. E Frederico Lourenço traduziu a sua Bíblia respeitosamente do Grego para a sua língua portuguesa “foulée aux pieds”.
Mas o agora negócio é outro, deixemos Maria Helena Rocha Pereira nos Campos Elísios da sua beatitude final, «revenons à nos moutons” e retomemos o próprio chão terreal, enquanto não chegar a altura do óbolo ao barqueiro, que provavelmente ficaremos a dever. Divertamo-nos um pouco com Bagão Félix e os seus problemas, que são também os nossos, brilhantemente tratados, milénios depois desses tais gregos que escreveram sobre outros casos do foro trágico e cómico, bem humano, afinal - menos, todavia, do que o nosso, de hoje.

Tudo menos Economia
Bagão Félix, Francisco Louçã e Ricardo Cabral
Público, 11 de Abril de 2017
A dívida é sagrada, Deus lhe pague!
Números devastadores, os que o Banco de Portugal tornou públicos sobre o total de imparidades entre 2008 e 2016 nos bancos. Quase 50 mil milhões de euros, o que equivale a 28% da riqueza anual do país.
Embora não haja a discriminação deste valor agregado, ele é constituído por crédito às empresas e dado como perdido (a maioria do valor total, com destaque para imobiliário e construção), particulares (consumo, muito mais do que habitação), activos financeiros detidos pelos bancos (obrigações e outros títulos), efeito de “bola de neve” de uns bancos para os outros sobre activos sindicados, empréstimos puramente financeiros (por ex., para tomar posições dominantes noutros bancos), etc.
muitas causas para esta situação, a começar na crise económica e financeira global e nacional. Há, evidentemente, uma maior exigência na valorimetria e contabilização das perdas. Mas há, também, uma insofismável má gestão do crédito concedido em todas as suas vertentes. Há, por fim, casos de polícia que erodiram a ética do negócio bancário.
Em termos globais, porém, o rácio de transformação (depósitos/crédito) que era de 151 em 2010, é de 96 no final de 2016 e os empréstimos passaram, em valor absoluto, de 344 mil milhões (2010) para 237 mil milhões (2016), uma descida de 31%.
Em 2018, a contabilização dos créditos malparados será mais exigente. Além das perdas objectivamente incorridas, vai-se ter em conta o valor das perdas expectáveis. Uma exigência e uma prudência, que já há muito faz parte da actividade seguradora.
Enfim, somos um país de dívidas. Dívida pública, sempre a inchar, dívida da banca ao BCE, dívida das empresas e das famílias, dívida nacional ao exterior. Ora o endividamento é o principal garrote ao crescimento e um factor de empobrecimento estrutural.
O calote é assim e cada vez mais uma instituição nacional. Ao invés, a poupança é um filho enjeitado. A solidariedade geracional é uma treta. Por isso, há quem pense que o melhor é gastar, mesmo que gastar signifique endividar-se. Para o que é útil e necessário, mas também para o que se revela desnecessário, fútil, senão mesmo inútil. Um fartote!
O crédito é um instrumento fundamental para as empresas investirem e o sistema fiscal, até o favorece, erradamente, em detrimento dos capitais próprios. O investimento tanto pode ser trigo, como joio, mas muitas vezes se confunde trigo com joio. Temos mais capitalistas de dívidas do que de capitais.
Muito do valor total das imparidades concentra-se em fartos créditos a entidades de óbvio risco concentrado e acrescido. No fim, a responsabilidade vai dissolver-se no nevoeiro do tempo. Os “senhores do crédito” não desapareceram. Alguns metamorfosearam-se, tão-só.
Neste país, parece que vale a pena incumprir. O grande caloteiro assobia para o lado. Às vezes, a empresa faliu, mas os seus mandantes vivem “na melhor”. Como dizia George Herbert “quem se livra das dívidas enriquece!” De facto, a infeliz e injusta regra dos devedores aí está em pleno: se se é pequeno devedor, o problema é dele; se se é grande devedor, o problema é do credor. Quem tem uma grande e contumaz dívida não se preocupa, o credor preocupa-se por ele.
É como no sistema fiscal, recorrentemente. Ainda agora se viu: grandes devedores e grandes empresas pagaram tarde e foram premiadas. Quem paga no fim este “almoço”? Os contribuidores cumpridores, tal como no sistema financeiro.
A vida prossegue. Rapidamente voltaremos à bola e a mais umas minudências para entretenimento. E certas “máximas” continuam: [o] dever acima de tudo.  E a dívida é sagrada, Deus lhe pague!

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