Mais uma
achega reveladora de saber e coragem na defesa de um ponto de vista geralmente
menosprezado neste país, definido, por João César das Neves, como tendo vivido
uma realidade de bem-estar artificial, para a qual chegou a hora do ajustamento
tenebroso, em que chafurdamos, umas forças da sombra fazendo por se impor e
opor os seus desígnios maliciosos a quaisquer tentativas de conserto, as forças
da zona sol tendo embarcado para paragens de maior eficácia e êxito pessoal,
todos colaborando energicamente, por acções directas de ataques ou meandros
sinuosos, ou indirectas de troça desprestigiante em skatches do nosso humorismo
incisivo, no esfrangalhar do país, aceitando, como ponto de honra, uma segunda
mentira – a da viabilidade de consertação por quaisquer outros partidos –
os da solidariedade que, pelo que se sabe, tanto fizeram e fazem para a sua
destruição.
«A
SEGUNDA MENTIRA»
«Portugal
viveu durante muitos anos uma ilusão de facilidade artificial, paga com
dinheiro externo. Como em todas as mentiras, um dia a realidade bateu à porta.
Seguem-se anos de brutal ajustamento, para eliminar as tolices insustentáveis e
colocar a sociedade numa trajectória robusta. Trata-se de um caso clássico na
história económica, muito frequente, muito estudado, sempre doloroso.
Confrontada
com a tarefa hercúlea, a sociedade divide-se em duas partes bem distintas. Como
nas praças de touros, existe uma zona de sol e outra de sombra. A distinção não
tem nada a ver ricos e pobres, mas com o nível de segurança económica. O
rendimento social de inserção ou a pensão mínima faz sombra, enquanto os fundos
de investimento milionários estão ao sol. Ora quando começa a trovoada, a
diferença entre as duas áreas é nítida.
Os
sectores que estão ao sol (neste caso à chuva) têm de ajustar rapidamente. As
empresas vão à falência, os trabalhadores perdem o emprego e são forçados a
mudar de vida. Convertem a actividade, emigram, encontram alternativas. Como
esta crise bateu em 2008, há muito que a zona sol ajustou. Aquilo que se
arrasta longa e demoradamente é a adaptação da zona à sombra. Aí regista-se uma
luta terrível à volta dos poucos lugares protegidos, e que aliás se vão
reduzindo à medida que a tempestade desgasta as coberturas.
A
consequência disto é a criação de uma segunda mentira, tão ou mais dramática
que a primeira. O fragor desta luta enche totalmente o debate mediático,
fingindo que o bem público e o futuro do País dependem crucialmente do que não
passa do interesse particular de um grupo. Basta abrir a televisão ou os
jornais para encontrar alguém a gemer ruidosamente, afirmando que a dignidade
nacional e o progresso lusitano só sobrevivem se for mantido o subsídio,
assegurado o apoio, defendida a despesa. Os propósitos são muito variados; o
único elemento comum é a fúria avassaladora contra o Governo do momento,
acusado da incompetência mais gritante ou dos propósitos mais sinistros,
simplesmente porque lhes tira o guarda-chuva.
Está a
ser muito interessante ver a vastidão do poder das forças instaladas em
Portugal, e a capacidade de manipulação da realidade a seu favor. Os serviços
colectivos, dos ministérios às câmaras municipais, da electricidade às
estradas, dos juízes aos diplomatas, por se localizarem bem dentro da zona
sombra, conseguem prosseguir como se nada fosse, mantendo hábitos ruinosos. Vêm
depois os sectores protegidos, da construção aos advogados, grandes grupos e
elites sociais, mais próximos da margem, que manobram nos bastidores. Os
bancos, que andaram décadas a financiar projectos tolos, ocultam os esqueletos
no armário e asseguram ser indispensáveis ao futuro nacional, precisamente na
altura em que o prejudicam. Finalmente, a região entre a sombra e o sol faz
manifestações e gritaria. Estes são os sindicatos, funcionários, profissões
liberais e empresas subsidiadas.
O
resultado de tudo isto é ir-se adiando o ajustamento, que sempre foi
inevitável, e que a economia real há muito fez. Desta luta depende a crise
demorar cinco ou trinta anos. Ou até, como se vê na Grécia e no Japão, acabar
por quebrar o sistema, que nunca volta a ser o mesmo. Neste campo pode dizer-se
que Portugal até se tem comportado muito bem, mantendo a paz social, enquanto
avança com algumas reformas.
O mais
importante nesta fase é desmistificar o essencial da segunda mentira, a ideia
de que há um caminho mais fácil e existe alternativa à austeridade. Este é o
embuste alimentado pelas partes ameaçadas da zona sombra, tentando
desesperadamente manter as benesses em risco. Mas a única opção real ao
ajustamento é o caos, porque a tempestade é inelutável e o tecto tem limites.
Urgente é mudar corajosamente os hábitos e abandonar regalias injustificadas,
usando os poucos recursos, não para protecção a privilegiados mas para defender
os pobres e sobretudo investir em actividades realmente produtivas, abandonando
as ilusões que nos enfiaram na crise.»
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