Nem sempre
as opiniões de Vasco Pulido Valente primam pela coerência, pois, se informa
objectivamente que “a fúria, a raiva e até o ódio crescem em Portugal,
sobretudo contra o regime e o seu pessoal”, segundo a crónica intitulada “Eleições”,
(Público, 4 de Maio), na crónica seguinte, de 5 de Maio, “Usos da História”
faz afirmações que pecam pelo excessivo de um panegírico abjecto e falso, como
a seguinte com que a inicia: “O Dr. Mário Soares, que Portugal inteiro
respeita e admira, ganhou o direito de dizer o que achar por bem sobre o
governo de Passos Coelho ou sobre outro qualquer de que ele não goste ou ache
prejudicial ao país.”
De facto,
não se contesta o direito de qualquer cidadão à expressão da sua própria
opinião – política ou outra - ele está contido no artigo 2º da “Declaração
Universal dos Direitos Humanos”, leio na Internet, Declaração essa
sucedânea a momentos de terror e miséria que envolveram o mundo graças a um – e
não só – homem que calcaria todos os direitos humanos, na sua desvairada e
criminosa ambição de domínio. Mas discordo desse tom louvaminheiro inicial, quando
seguidamente demonstra, com os dados da sua erudição, que na realidade as
opiniões de Mário Soares são índice da sua ignorância e arrogância, como sempre
foram, de senilidade como agora são.
Leiamos o
texto de Vasco Pulido Valente, «Usos da História»:
«O dr. Mário Soares, que Portugal inteiro respeita e admira,
ganhou o direito de dizer o que achar por bem sobre o Governo de Passos Coelho
ou sobre outro qualquer de que ele não goste ou ache prejudicial ao país.
Mas devia tomar algum cuidado com o uso que faz de lendas políticas, que não
assentam na realidade ou que a distorcem. Tudo começou com uma citação de
Afonso Costa que prometia ao rei o cadafalso de Luís XVI. Como de facto D.
Carlos foi assassinado, parece à primeira vista que a profecia se realizou. Mas
não realizou. A frase de Afonso Costa vinha a propósito das dívidas (de resto
inteiramente justificadas) do rei ao Estado e não produziu grande agitação. Os
republicanos mataram D. Carlos porque, depois de uma revolução falhada, o
Governo do dia prendeu e decretou o exílio das principais figuras supostamente
comprometidas no caso. Que se saiba, Passos Coelho ainda não prendeu ou
degredou alguém. A comparação não se aplica.
E a comparação num artigo de sexta-feira com Hitler e Mussolini
também não se aplica. Soares declara que este Governo é teoricamente legítimo,
já que o elegeram, mas que Hitler e Mussolini chegaram ao poder, como Passos
Coelho, pelo voto. Ora isto é falso. Hitler perdeu uma eleição presidencial (em
duas voltas) contra Hindenburgo e o máximo que o partido nazi conseguiu em
eleições livres não passou de 37,4%. Pior ainda: pouco tempo antes de o fazerem
chanceler, o voto em Hitler, na última eleição livre da República de Weimar,
desceu para 33,1%. Sem aliados, nem dinheiro, o homem estaria perdido.
Infelizmente, a direita ultranacionalista, incluindo a maioria do exército,
acabou por lhe dar apoio e uma dúzia de industriais os marcos de que ele
precisava. Em última análise, esta gente é que levou o futuro Führer ao poder,
convencida de que iria mandar nele. Passos Coelho contava desde o princípio com
a aliança com o CDS, e “subiu” a S. Bento sem nenhuma ajuda do exército e, que se
visse, muito pouca do “capital”.
Quanto a Mussolini, não concorreu sozinho a qualquer eleição e,
para meter 35 deputados no Parlamento de 535 lugares, teve de aceitar um mesquinho
papel no “bloco da direita”, que o desprezava. O terror dos “fáscios de
combate”, no sentido original da palavra, e a famigerada “marcha sobre Roma”
(obviamente ilegal), com a ajuda e a concordância do exército, é que forçaram o
rei a nomear o homem primeiro ministro, com o propósito de sufocar ou atenuar a
guerra civil, que se estabelecera em Itália. Passos Coelho nunca andou metido
em crimes deste género. O uso da História para “provar” argumentos políticos
costuma levar ao fracasso. E o dr. Soares é suficientemente claro, sem estas
contorções.»
Começou, pois, com panegírico, a crónica de Vasco Pulido
Valente, e depois de destruir os argumentos de Mário Soares quando desancou
Passos Coelho em rebuscadas e mentirosas comparações historiográficas, termina
o seu texto em técnica circular, voltando ao elogio, embora com a palmatoada
devida aos pedantes contorcionismos argumentativos daquele, querendo presumir
sobre a personalidade “criminosa” de Passos Coelho já entrevista na história
aterradora do passado.
Não me importa que tenha ferido os brios de Mário Soares
denunciando-lhe o erro e a presunção maldosa que vem confirmar a opinião que
sempre tive dele. Só não entendo o motivo por que o endeusa com uma frase de
retórica empolada totalmente falsa.
De facto, apesar dos jornalistas que
igualmente se lhe prostram aos pés, entrevistando-o, dando-lhe relevo, escutando-o
com enlevo, dando-lhe dinheiro a ganhar com os seus artigos de opinião sensaborona
e unilateral, não creio que Portugal inteiro o respeite e admire assim tanto.
Muitos, sim, que continuam agarrados ao slogan de “libertador da pátria” que
ele não foi, apenas tendo comido do prato que outros lhe apresentaram já
atascado – e não de lentilhas - colaborando, isso sim, de consciência serena,
na desvinculação dos pedaços territoriais do seu país, semeados pelo mundo.
Esse facto o promoveu para sempre, mesmo no
espírito perspicaz de Pulido Valente. Mas parece-me isso incoerente e
controverso, e tenho pena. Até porque Mário Soares provavelmente já nem usa
botas para serem lambidas, pois, com o envelhecimento, os calos requerem pantufas.
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