A primeira,
de Vasco Pulido Valente, demonstrando como um povo, fossilizado de longa data
numa condição de primitivismo e marginalização relativamente aos outros povos
europeus, em ignara tacanhez intelectual, ajudada a construir pelas classes superiores,
a quem convinha tal status de atonia, para melhor lhe explorarem os
serviços sem reclamação, jamais apanhou o comboio do progresso com recurso exclusivo
a si próprio e só mediante ajuda externa. De facto, até na época gloriosa dos
Descobrimentos Marítimos, o fruto do esforço do povo que navegou com “lágrimas
de Portugal” perceptível no “sal do mar”, não se verificou em resultados
visíveis de desenvolvimento equilibrado da nação, por falta da criação de
estruturas a ele propícias, ouros e especiarias, trazidos das paragens
longínquas, gastos para a criação de igrejas e palácios glorificadores, além
de serem canalizados para países que em troca nos abasteceriam de cereais e
outras comidas aqui faltosas, pelo êxodo rural empobrecedor da nação. Ontem como hoje.
Esse povo
repete hoje os erros de outras épocas, deixando-se estupidamente conduzir a um
poço de dívida insolvente, ofuscado pelo fulgor de um ouro que lhe caiu do céu
sem custo, deixando-se facilmente corromper na avidez gulosa e deslumbrada que
poderia ter orientado para uma formação cultural, ao invés da ganância pela
matéria vil que lhe faculta a revestidura exterior para a projecção social. E a
conivência de esforços entre as classes do poder, quer sejam as dos
governantes, quer as dos banqueiros, dos empresários, do patronato de elevado
gabarito, criou a rede de corrupção aliciando uma justiça facilmente subjugada,
e que deixou de existir.
Lembro o
tempo dos vencimentos antigos, ordenados de escassez, que de repente dão um
salto valente para aliciar o milho miúdo, o tal povinho dos empregados estatais
ou privados, a quem foram concedidos empréstimos de facilidade para a casa dos
sonhos de quem sempre vivera em casa alugada. Tudo quis ser proprietário,
hipotecando o futuro, é certo, e o país construiu que se fartou, para
distribuir as felicidades remediadas, reservando para a rede do poder a felicidade
do poder material absoluto.
Um dia,
foram-lhe pedidas contas. E o governo que as quis e tem que saldar, não olhou
a meios. Exigiu devoluções, a esse povo que passara dos ordenados somíticos
para ordenados aparentemente superiores, mas a quem, afinal, a inflação
concomitante com a alta dos vencimentos mal contribuíra para retirar a sarna das
misérias de outrora, de povo habituado a “lavar no rio” e a “talhar
com seu machado as tábuas do seu caixão”.
Todos os
governos, ao longo destes 39 anos, não só consentiram no despenhadeiro, como favoreceram os hábitos ruins de
um gastar sem nexo.
E agora que
um governo se propõe pagar, todos lhe saltam em cima, porque estávamos habituados
a usar e abusar de proventos não conquistados por nós e, naturalmente, tal
facto vai contribuir para a infelicidade sobretudo dos que perderam os empregos.
Eis a
primeira página - De Vasco Pulido Valente, (Público, 11/5/2013):
«Uma
história Portuguesa»
«Nunca
desde o começo desta democracia os políticos portugueses tentaram descobrir
como Portugal se “desenvolveu” na segunda metade do século XIX. Talvez
calculassem a razão por que não se “desenvolveu” na primeira metade: invasões,
golpes do exército, duas guerras civis e uma agitação política constante. Mas
depois da Regeneração cai o silêncio e não por acaso. Quase de repente vieram
estradas, pontes, comboios, correios, polícia, uma administração pública e um
sistema de justiça que cobriam uma boa parte do território e funcionavam com
alguma regularidade. Em 1855, o cidadão comum ainda se queixava da enorme
aventura que era apanhar um comboio para o Carregado. Em 1875, andar de comboio
não impressionava ninguém e a facilidade de transportes serviu para
comercializar uma agricultura que, tirando uma ou outra excepção, sufocava nos
mercados locais.
Mas como
se arranjou dinheiro para esta transformação, que os sábios da altura
declaravam deletéria e fantasiosa? Muito simplesmente: contraindo uma enorme
dívida soberana, que aumentava de ano em ano com benemérito propósito de
sustentar, como se dizia, a “marcha do progresso”, de que nem no Parlamento,
nem na maioria dos jornais se discutia o método e as condições. Por isso, evidentemente,
os partidos “rotativos” (o “bloco central” da época) se habitualmente se
descompunham por trivialidades, não se distinguiam no governo. E como não se
distinguiam, criaram uma fama, aliás merecida, de promotores da vigarice e da
corrupção que pouco a pouco tomavam conta do país.
Quando
em 1891-92 chegou a catástrofe que toda a gente há trinta anos previa, a
Monarquia abanou e até ao fim não seria capaz de voltar à estabilidade do
passado. A festa não durara muito tempo. Menos de quarenta anos, da
“Regeneração” à bancarrota. Só que, nessa altura, existia um partido
revolucionário (como o PC já não é; e o Bloco sé retoricamente foi) e esse
partido, o Partido Republicano, acabou por conseguir liquidar a Monarquia e, no
mesmo dia, estabelecer a República. A dívida soberana e dívida dos particulares
continuaram; e Portugal caiu numa pobreza que só quem viveu antes de 1950 pode
imaginar. O que espanta é que nenhum partido e nenhum governo tenham aprendido
nada com esta história cautelar e que tenham repetido exactamente com a
“modernização” a melancólica aventura da “marcha do progresso”. Se a história, em
princípio, não permite comparações, não quer isso dizer que a memória não faça
falta.»
Segue-se um
texto de Ricardo de Araújo Pereira, que me foi enviado por email. Um texto
sarcástico, de um arreganhar de dentes só na aparência bem disposto, no tom brincalhão
de uma capacidade crítica superior, na construção de um pensamento de ironia perfeitamente
subversiva.
Tem razão,
Ricardo Araújo Pereira, na inquietação que traduz o seu texto de enormidades
argumentativas. Só que, no seu pensamento de esquerda, revela a mesma indiferença
de todos pelo forçado de uma acção governativa que provavelmente não poderia
ser diferente. Apesar do que grita hoje a maioria do povo, porque “estão
mexendo no seu bolso”.
É
necessário pagar, essa é a verdade, e pela primeira vez sinto que podemos
chegar a algum lado, no sentido de uma futura reconstrução, embora com a
colaboração europeia, reconquistada a confiança dos povos graças às provas de
decência no pagamento da dívida.
Eu estou a
pagar como todos e não me revolto com isso, apesar da falta que me faz esse
dinheiro. Sou reformada e sei quanto hoje represento um peso para os que trabalham,
em progressiva sequência de dificuldades, pela diminuição da natalidade no nosso
país e aumento de tempo de vida. Por isso compreendo a necessidade de corte, só
lamentando que os dinheiros dispersos por quem tanto os dispersou não voltem ao
solo pátrio nem sejam responsabilizados aqueles que os dispersaram. Além dos ganhos
estapafúrdios permitidos ainda por este governo a esses banqueiros da nossa
desgovernação.
Mas
pague-se a dívida, sim, e recomecemos, sob novos auspícios. Seria um bom
milagre da Senhora de Fátima, para juntarmos a nossa fé à do Dr. Cavaco Silva.
Eis
a segunda página - de Ricardo
Araújo Pereira:
«Carta aos 19%»
«Caro
desempregado,
«Em
nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo para o sucesso
económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho exemplar, e o
ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria possível sem a tua
presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a ser feito um
enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados e, pelos
vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes trabalhar. O teu desemprego,
embora possa ser ligeiramente desagradável para ti, é medicinal para a nossa
economia. Os investidores não apostam no nosso país se souberem que tu
arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a pessoas desempregadas.
«Antigamente,
estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a
viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades.
Começamos a perceber que as nossas necessidades estão acima das nossas
possibilidades. A tua necessidade de arranjar um emprego está muito acima das
tuas possibilidades. É possível que a tua necessidade de comer também esteja.
Tens de pagar impostos acima das tuas possibilidades para poderes viver abaixo
das tuas necessidades. Viver mal é caríssimo.
«Não
estás sozinho. O governo prepara-se para propor rescisões amigáveis a milhares
de funcionários públicos. Vais ter companhia. Segundo o primeiro-ministro, as
rescisões não são despedimentos, são janelas de oportunidade. O melhor é
agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas janelas de oportunidade
que se torna difícil evitar as correntes de ar de oportunidade. Há quem sinta a
tentação de se abeirar de uma destas janelas de oportunidade e de se atirar cá
para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme para pagar, e a melhor
maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos trabalhadores possa
produzir. Aceita a tua função neste processo e não esperneies.
«Tem
calma. E não te preocupes. O teu desemprego está dentro das previsões do
governo. Que diabo, isso tem de te tranquilizar de algum modo. Felizmente, a
tua miséria não apanhou ninguém de surpresa, o que é excelente. A miséria
previsível é a preferida de toda a gente. Repara como o governo te preparou
para a crise. Se acontecer a Portugal o mesmo que ao Chipre, é deixá-los ir à
tua conta bancária confiscar uma parcela dos teus depósitos. Já não tens lá
nada para ser confiscado. Podes ficar tranquilo. E não tens nada que agradecer.»
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