Foi André
Gide que, na sua novela “A porta estreita”, título inspirado no tema da
meditação do pastor da capelinha, segundo o Evangelho de S. Lucas, 13 – “Esforçai-vos
por entrar pela porta estreita” das palavras de Cristo aos seus seguidores das
cidades e aldeias, a caminho de Jerusalém – narra os intensos amores de
Jerónimo e de Alissa, de impossível realização, devido a uma estrita e desumana
obediência, sobretudo da jovem, a um ideal de espiritualidade incompatível,
apesar do sofrimento, com a concretização desses amores.
Em Destaque
do “Público” de Domingo, 11 de Agosto, na Secção “Emprego” lê-se, na extensa
reportagem de Paulo Moura sobre os Call Centers, intitulado “Os Call Centers
vão salvar a economia portuguesa?”, que uma das propostas feitas pelos supervisores
aos empregados de arribação eventualmente queixosos na pressão a que são
sujeitos de prestação de boas performances, apesar da vilipendiosa exploração a
que são sujeitos: “Se não estás satisfeito, a porta de saída é ali”.
E é,
certamente, uma porta larga, para o corrupio constante da entrada de
novos empregados e da sua breve saída como desempregados, gente geralmente
jovem, que outro meio de vida não encontra, na miserável crise de desemprego
que se atravessa, senão uma colocação temporária nesta falcatrua gerada por um
alucinado Sócrates, criador do monstro, que apoia a sua rentabilidade e a
riqueza dos seus patrões nos baixos salários próprios de um país
subdesenvolvido, em contraposição com a exigência de boas prestações. A
exploração em toda a magnitude da crueldade encartada e ditatorial, aceite impunemente
por todo um país que lutou – é certo que apenas em gritaria florida e esbanjadora
– contra a ditadura anterior, bem menos desumana, contudo, e com uma justiça
funcionando melhor.
Leia-se:
“O
edifício da Teleperformance da Expo-Oceanário, com o seu ambiente uniformizado
e asséptico, jovem e poliglota, disciplinado, eficaz e dócil, garantido por
regras austeras, precariedade contratual, horários intensivos e salários
baixos, pode de facto ser a imagem do futuro. Do futuro em Portugal.
“O
segredo (do êxito) parece ser esse: um bom cocktail formado por salários
baixos, competências linguísticas, boa estrutura tecnológica, boa localização
geográfica. “O governo Sócrates fez um grande investimento em tecnologias
de informação e redes comunicacionais. A nossa rede de fibra, por exemplo,
praticamente não tem concorrentes no mundo inteiro. O Governo Sócrates deixou
um bom legado nesse capítulo”, explica Ramos Pereira.»
«A
situação parece poder resumir-se assim: um país pobre com uma boa rede de
fibra. E talvez esta seja a fórmula suficiente para atrair os grandes call-centers
mundiais.»
Outras
magnificências se apontam justificativas da satisfação pelo êxito obtido,
seguidas das provas de desrespeito e desprezo dos superiores para com os operadores
que se esforçam por cumprir, ainda que blandiciosamente “instruídos para
enganar os clientes”, na ameaça constante do despedimento.-
Transcrevo:
«A pressão é enorme, e a instabilidade também. Há pessoas a chorar nos
intervalos, que não aguentam, diz Carlos, que trabalha no call-center da PT em
Coimbra.»
A porta dos
call-centers ampla, para o recrutamento constante, para o despedimento
arrogante e sem piedade.
Mas, de
facto, ninguém pode pôr cobro a tal situação, num país habituado a esbanjar
iniquidade.
A “porta
estreita” de Gide, na sua intriga sobre o aperfeiçoamento interior pela
renúncia a quaisquer tentações de felicidade terrena, é uma metáfora aplicada
ao livre arbítrio do homem. A “porta larga” dos call-centers lembra antes a porta do Inferno de
Dante com os dizeres apostos de advertência aos danados: “Lasciate ogni
speranza, voi ch’entrate.”
E assim
vivemos, na desesperança e na danação de todas as permissividades. Plenos de
fibra, muito embora.
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