Eu tinha 39
anos quando escrevi um texto sobre Urbano Tavares Rodrigues, que incluí
na obra ”Cravos Roxos”, sob o tema “Literatura da Resistência”
(Livro II). Vivia no sentimento da revolta contra a hediondez de um
movimento que esfacelara a pátria, mas trouxera os meus cinco filhos comigo, e
aqui nos instalámos, nesta velha casa que os meus pais foram pagando, quando
regressados eles próprios da mesma África de palmeiras e liberdade sadia.
Organizei a minha vida, dando aulas não oficiais, frequentei um seminário em
Coimbra, acompanhei os filhos com a ajuda da minha mãe – o meu pai trabalhava ainda,
tinha 73 anos e uma tosse que o atormentaria até o seu final de apenas mais cinco
anos. Entretanto, o regresso do meu marido, na avalanche dos restantes, que
tendo combatido naqueles espaços de grandeza era renitente a uma descolonização
que chegaria nesse ano de 75, fez-nos mudar uma vez mais, aplicando-nos a
seguir em frente, como a todos aconteceria, com maior ou menor coragem. O
comboio que semanalmente me levava de manhã a Coimbra e de lá me fazia
regressar à noite, representava para mim o símbolo de uma travessia feita de
vontade e resolução. Durante o resto da semana aplicava-me, entre os outros
trabalhos, a ler e a escrever sobre as obras dos autores dessa literatura da
resistência que a professora Andrée Crabbé Rocha escolhera para tema do seu
Seminário.
Urbano
Tavares Rodrigues
foi um dos escritores estudados e não foi muito favorável a minha opinião sobre
ele, não por preconceito, por ser escritor de esquerda pois o meu conceito de
liberdade e democracia não provinha de qualquer alquimia arrivista, mas era consequência
de uma genuína educação que sempre se habituara a respeitar e a distinguir,
segundo padrões humanistas. Outros escritores analisei na altura, “O Malhadinhas”
de Aquilino, Gedeão, Torga para breve confronto, e apreciei-os por
sensibilidade à sua arte, apesar do seu estatuto político idêntico ao do
primeiro.
Urbano
Tavares Rodrigues
morreu no dia 9 de Agosto, com cerca de noventa anos, e naturalmente os espaços
mediáticos e as personalidades gradas e da mesma linha ideológica pronunciaram
as condolências da praxe, lembrando vagamente o amigo, o combatente, o escritor
multifacetado, para além do homem de inteireza de carácter, como é do uso
nestes casos.
Tenho na
minha frente o jornal “Público” com fotos e episódios da sua vida e
apreciações de críticos vários, todos pela positiva, escassas as análises da
obra em si.
O texto que
escrevi aos 39 anos, também não prima pelo rigor de análise propriamente
literária, circunscrito aos poucos livros que mão fraterna então me emprestara,
para além de alguma ingenuidade nos juízos de valor sobre a expressão do erotismo
em Tavares Rodrigues, hoje apenas merecedores de chufas, mas ao relê-lo, observo
que pelo menos pretende enquadrar-se numa análise sobre a temática explorada
por Urbano Tavares Rodrigues - a da pecha manipuladora e anquilosante da
criatividade neo-realista, que a exigência de orientação social
intervencionista limitaria na profundidade da intriga ou na densidade dos caracteres.
Exceptuam-se obras como “Uma abelha na chuva”, de Carlos de Oliveira, “O
Barão” de Branquinho da Fonseca, em que se fundem valores de simbolismo ou
de atmosfera irreal no relevo narrativo. Ou “A Curva da Estrada” de
Ferreira de Castro que me impressionou, ainda estudante, entre outras preferências
do meu pai, como “A Selva”, Terra Fria”, “A Lã e a Neve”. “O Malhadinhas” será
também um conto a imortalizar o seu autor, Aquilino Ribeiro, “O Cavalo
Espantado” de Alves Redol, além de outras obras suas, como “A Barca dos
Sete Lemes” e “Barranco dos Cegos”, ocupam lugar à parte na ficção
portuguesa, sem esquecer o livro maravilhoso de Torga “Bichos”, que fugindo
ao contexto neo-realista, é um encantador livro de contos em que a ternura pelo
bicho-homem ou pelo-bicho animal se harmoniza com os extraordinários efeitos
evocativos de uma linguagem poética.
Eis o texto
sobre Urbano Tavares Rodrigues, escrito em 1975:
«Urbano
Tavares Rodrigues tem uma abundante obra literária, distribuída por “ficção”,
“viagens e crónica” e “ensaio e crítica”. Referir-nos-emos apenas às obras de
ficção lidas – “Bastardos do Sol”(1ª Ed. 1959), “As Aves da Madrugada” (1959),
“Imitação da Felicidade”(1966), prémio literário e “Dissolução” (1974).
Da
leitura destas obras ficámos com a impressão de um escritor sem dúvida com
domínio da língua, mas com certa indigência criativa, que quase se limita a uma
análise crítica da sociedade em que vive e o reflexo desta sobre o seu
temperamento de revoltado e insatisfeito.
O último
livro em causa apelidou-o de romance, não percebemos bem porquê, nem ele
tampouco, pois no prefácio que o introduz sublinha a designação “romance” com
um ponto de interrogação dubitativo e subitamente considera-o um misto de
poema, crónica, romance e ensaio. A parte poética propriamente dita torna-se
difícil de destrinçar, a não ser que as frases buriladas com sugestões de
Pessoa lhe tenham lembrado a designação. Exemplificamos:
“A
tristeza absurda do ar azul destes dias de sol em que se acorda estrangulado por
memórias dispersas e sem saber a quantos vai a vida…Eu todo aos pedacinhos… O
que sou do que fui? O que sou do que julgo ser? Como posso andar assim
desfeito, errante mesmo no espaço exíguo do quotidiano, trabalhando,
alienadamente e tanto, de forma tão sem sentido, tal como amo, tal como leio a
argila dos rostos que se me oferecem?” (p. 226)
A parte
romanesca julgamos antevê-la nas frequentes aventuras eróticas, por
Tavares Rodrigues analisadas com muita
minúcia, para industriar os leitores ingénuos ou menos aventureiros, a respeito
da sua ciência no capítulo. Transcrevemos apenas um passo do mesmo livro, “Dissolução”:
“Ficámos
na penumbra, com desgosto meu, que a queria ver bem.
É lisa e
dura, de seios pequenos, que me cabem nas mãos, ancas sacudidas de égua azul.
Todas as nossas saliências e reentrâncias se esposam miraculosamente, acertos
de acaso. Escalda como se tivesse febre depois da chuva. Com os lábios acorda
sensações que vão até ao gemido, até à dor, em todo o meu corpo. Apesar da
pupila desmaiada e da sobrancelha castanha, tem o púbis escuro e muito cerrado.
O sexo húmido.
Há pouco
artificial, ou irreal, não sei bem, agora, no ritmo do amor, na perda de
consciência do orgasmo, é de uma inocência absoluta e linda…” (p. 13)
Este aspecto
do erotismo é um factor constante, e num escritor com tantos pruridos de
consciência, sempre em choque com a sociedade dita fascista, espanta-nos de que
não se aperceba de quanto implica de desprezo e orgulho másculos a atitude
solta de descrever minudências que desrespeitam e coisificam o sexo feminino.
Por
outro lado, contudo, “Imitação de Felicidade” pretende focar, por intermédio de
duas francesas, as reivindicações feministas, reduzidas em fim de contas a
aventuras pouco dignas de libertinagem temperadas com um certo fundo de
sensatez própria de todas as burguesias, incluindo a francesa, que obriga a um
casamento forçado para tapar as bocas do mundo. A atitude aparentemente liberal
e modernista de aceitar todas as reivindicações progressistas, no fundo não
passa de “bluff”, pois para o escritor a mulher será apenas e sempre, livre
objecto de prazer, escrava das perversões do homem.
Na sua
crónica “Dissolução”, amálgama de questões na ordem do dia, além, pois, das
frequentes incursões no campo sexual, talvez como processo delatório de uma
virilidade que a todo o transe se nos quer revelar em força e variedade – novo don Juan? – assistimos ao tema do
desprezo rácico segregativo, ao ódio salteador e destruidor dos bons carros, à
miséria social, com os necessários inquéritos sobre as condições de vida dos
humilhados – fonte inspiradora, pelos vistos, dos actuais inquéritos
televisivos, tão bem desnudando as escrófulas sociais, assaltos a bancos,
mortes no ultramar em luta, estes dois últimos transcritos, sem comentários, de
jornais, em todo o seu significado trágico e acusatório identificável com os
métodos dos pintores cubistas. E a necessária náusea de viver, muito na ordem
do dia também, analisada com um gosto narcísico de quem sofre e se requinta a
exprimi-lo.
No livro
“As Aves da Madrugada” outros temas se focam: o da rapariga solitária e sem
amor que, cheia de complexos de culpa por ter sido iniciada nas relações
sexuais normais, mata um pássaro já moribundo das garras de um gato, e descobre
assim que, para ela, a felicidade consiste em se tornar necessária, ainda que
furtivamente. Ao contrário, pois, da afirmação de Sartre “L’enfer c’est les autres”
(“Huis Clos”), a rapariga do conto “A Ave Esventrada” descobre a felicidade
suprema da comunicabilidade sexual.
“Margem
Esquerda” explora a temática da represália sexual facinorosa e inútil.
“A Prova
dos Nove”, conto autobiográfico, põe em destaque a ânsia de sobressair do irmão
mais novo perante o irmão mais velho, o herói da sua adolescência, de um
comunicativo fogo interior e vontade forte que o espicaçavam.
“Aves da
Madrugada” expõe o velho tema das damas das camélias, certas situações caricatas,
as necessidades não isentas de sentido humanitário dessas criaturas que Tavares
Rodrigues parece conhecer bem.
Em “Mesmo
que assim seja” transcreve-se o drama do encarcerado político, das torturas a
que o submetem, da sua férrea vontade de não ceder, ainda quando o seu gesto de
protesto resulte inútil.
“Bastardos
do Sol”, romance, segundo o autor, mas que o prefaciador da segunda edição,
Luís Francisco Rebello, considera uma novela, segue uma técnica de desobediência
ao habitual processar cronológico da acção. O passado vai sendo reconstituído
através da rememoração das personagens – um passado de desonra para a irmã, de ultraje
reclamador de vingança do irmão sobre o que a desencaminhou, seguido da sua
prisão e do suicídio final de Delfino – ser instável e um tanto sádico,
Casanova ou Don Juan mal sucedido. O final do livro – o abandono de Irisalva da
casa paterna e da consequente tutela do bruto irmão, termina simbolicamente com
a oferta à criança do comboio da rosa quase vermelha do cinto – implicando assim,
o seu desbotado, o esquecimento desse passado em que as flores vermelhas lhe
eram oferecidas pelo namorado.
Reduzidas
as acções dos seus livros ao plano esquemático, verificamos, pois, que não é
brilhante o poder criador de Urbano Tavares Rodrigues, essencialmente
denunciante de uma sociedade que condena, ou analista da alma humana, por meio
de um estilo seguro e vigoroso, mas pobre de engenho para criar verdadeiras
intrigas novelescas.»
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