segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Comentário sobre um texto de Henrique Salles da Fonseca


O texto:

SOFRIMENTO 

(…)

Mas as crianças, Senhor,

Por que lhes dais tanta dor?

Por que padecem assim?

(…) in “A balada da neve”

 

Quase todas as mortes são inocentes mas a infantil é essencialmente injusta. E disto não há que sair!

Mas todos somos sempre levados à busca duma explicação. E se já a ligação entre inocência e sofrimento é de explicação difícil ou mesmo impossível, quando se trata da morte duma criança, a revolta contra a injustiça evidente aparece como reacção imediata e a pergunta surge sobre quando é que Deus escreve torto por linhas direitas.

Como dizia Pierre Teilhard de Chardin SJ no seu livro “O meio divino”, o ser humano é feito do entrelaçamento de externalidades activas e passivas em que estas são substancialmente mais numerosas do que aquelas pois somos mais influenciados do que influenciamos.

Destas externalidades há as físicas e as psíquicas de toda a ordem cultural, as conscientes e as inconscientes. E se muitas delas, activas e passivas, resultam no nosso crescimento, outras há que temos de classificar como de diminuição. A doença é sempre uma externalidade passiva, inconsciente e de diminuição. Sempre indesejada e frequentemente incompreendida. E esta incompreensão tanto pode ser do foro científico (desconhecimento das causas e incapacidade curativa) como do circunstancial com perguntas do género «porquê eu?», «que fiz eu para merecer isto?».

Continuando com de Chardin, «a vida profunda, a vida “fontal”, a vida nascente, escapam-nos absolutamente».

Hoje, as questões colocam-se numa linguagem diferente, com muito mais conhecimentos entretanto alcançados mas certamente com muito mais incógnitas a desbravar: porquê aquela célula maligna?; como evitar a profusão das células desequilibradas?; etc… Como ele, de Chardin, dizia a págs. 83 da mesma obra, «Humanamente falando, as passividades internas de diminuição formam o resíduo mais negro e mais desesperadamente inutilizável dos nossos anos». É fantástico como, passado praticamente um século, com a fronteira da Ciência a avançar tanto e, contudo, a subsistir a questão final, a de saber em que circunstâncias é que Deus escreve torto por linhas direitas.

E recuando um bom bocado mais na Historia, já Pascal perguntava em 1659 «O que é o homem na Natureza?». E dava logo de seguida a resposta: «Um nada relativamente ao infinito, um nada relativamente ao tudo, um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de compreender os extremos, o fim das coisas e o seu princípio estão para ele invencivelmente escondidos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada de onde foi tirado e o infinito no qual está mergulhado» (Pensées, ed. La Pléiade, pag. 1107).

Foi já no século XX que Karl Popper nos lembrou que o método científico, alternando constantemente entre experiência-fracasso-experiência-fracasso-experiência-fracasso… e assim sucessivamente (no sentido etimológico matemático), nos oferece a verdade como um ponto no infinito.

 

A impotência de todos os que lutam diariamente contra a doença só não é frustrante porque o sentimento de missão prevalece como algo para que não há palavras de louvor suficientes em qualquer léxico. O cientista e o filósofo são um só, a dor que sentem só os não destrói porque se outorgaram uma missão heróica, frequentemente anónima, praticando o bem pelo bem e sempre com o fito de alcançarem a vitória final sobre o mal. E, apesar de hoje se saber muitíssimo mais do que há uma dezena de anos, Pascal e Popper continuam a ter razão na pequenez humana e na distância a que nos encontramos da verdade.

Teorizar sobre o sofrimento é fácil desde que esse sofrimento seja encargo alheio. Mas quando ele nos bate à porta, lembro-me do que disse Pierre Cardeal Veuillot, Arcebispo de Paris, que em 1968 morreu de leucemia e cujas palavras traduzo com alguma liberdade: - Nós sabemos construir belas frases sobre o sofrimento. Eu próprio falei dele com fervor. Mas digam aos Padres que se calem: nós ignoramos tudo sobre ele e foi em sofrimento que chorei.

Mas será que o sofrimento, para além de absurdo, nos obriga ao silêncio?

Apesar da diferença abissal entre o doente e nós, os acompanhantes, sabemos que o nosso silêncio não faz sentido e que uma palavra de conforto é imprescindível. Não temos o direito ao silêncio! Sim, a palavra é indispensável mas o nosso drama é o de sabermos o que dizer.

Desafiada pelo mal, a esperança permite-nos aprovar a vida apesar das suas injustiças, dos seus fracassos e das suas feridas.  A esperança é, nas palavras de Paul Ricoeur, «a raiz do sim», a «alma do consentimento». Infatigavelmente retomado, o conceito «apesar de…» inspira-nos a palavra que falta reafirmando a existência em confronto aberto com o mal. A esperança é o contrário da angústia e, contudo, é esta que a acompanhará até ao último dia. A esperança é o contrário do saber absoluto e a imaginação (poética) que a todos move do fim do mal, vem muito a propósito da especulação sobre o sentido da missão que nos cumpre na vida. O que andamos por cá a fazer que não seja a prática do bem? É neste sentido que recai uma proibição absoluta de silêncio perante o sofrimento de quem nos é próximo, de quem nos é querido. Se outra palavra nos não ocorrer, que seja ela a da esperança, por muito angustiados que interiormente possamos estar. E todos sabemos como a angústia nos assola nessas trágicas circunstâncias. A esperança é a arma de que dispomos para, em nome do bem, combatermos o mal para que, como dizia S. Paulo, «lá onde abunda o mal, superabundará o bem».

O sofrimento é o preço individual a pagar para que a Humanidade possa alcançar a verdade.

As religiões hospitaleiras são sedes de fé, a crença que se situa para além da Ciência actual, a tábua de salvação dos crentes que por ela sabem que o futuro existe.

Feliz todo aquele que tem fé.

Agosto de 2013

BIBLIOGRAFIA:

Do ser da pessoa à doença existencial”, Michel Renaud, in BROTÉRIA, Julho de 2013, pág.31 e seg.

Vocabulário de P. Ricoeur”, Olivier Abel/Jérôme Porée, ed. Minerva Coimbra, 2010



O Comentário:

 

A Dor humana não é só a da criança injustamente escorraçada na vida, embora essa seja, objectivamente, a que mais nos choca, vida iniciada na inocência  que só pode inspirar ternura, e repúdio contra o mal que lhe é causado. Mas são tantas as injustiças e impotências do mundo a merecer reparo, que só uma fé incomensurável pode aceitar de um Deus por princípio, justo, na realidade não subentendido na definição com a tríade dos omni - omnipresente, omnipotente, omnisciente. Mas também a Dor pode ser objecto de recriação extraordinária, mais ou menos objectivamente descrita, entre nós, de Camões a António Nobre. Ninguém, contudo, como Mário de Sá Carneiro, debatendo-se no seu mundo agónico, em recriações de beleza e dispersão, para traduzir a quintessência do sofrimento puro - o da desilusão constante - em arte pura:

Ângulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...

- Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partistes-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebrastes-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...

............................................................
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...

- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

 

 

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