O texto:
SOFRIMENTO
(…)
Mas as
crianças, Senhor,
Por que
lhes dais tanta dor?
Por que
padecem assim?
(…) in “A
balada da neve”
Quase todas as mortes são
inocentes mas a infantil é essencialmente injusta. E disto não há que sair!
Mas todos somos sempre
levados à busca duma explicação. E se já a ligação entre inocência e sofrimento
é de explicação difícil ou mesmo impossível, quando se trata da morte duma
criança, a revolta contra a injustiça evidente aparece como reacção imediata e
a pergunta surge sobre quando é que Deus escreve torto por linhas direitas.
Como dizia Pierre
Teilhard de Chardin SJ no seu livro “O meio divino”, o ser humano é feito
do entrelaçamento de externalidades activas e passivas em que estas são
substancialmente mais numerosas do que aquelas pois somos mais influenciados do
que influenciamos.
Destas externalidades há
as físicas e as psíquicas de toda a ordem cultural, as conscientes e as
inconscientes. E se muitas delas, activas e passivas, resultam no nosso
crescimento, outras há que temos de classificar como de diminuição. A doença é
sempre uma externalidade passiva, inconsciente e de diminuição. Sempre indesejada
e frequentemente incompreendida. E esta incompreensão tanto pode ser do foro
científico (desconhecimento das causas e incapacidade curativa) como do
circunstancial com perguntas do género «porquê eu?», «que fiz eu para merecer
isto?».
Continuando com de
Chardin, «a vida profunda, a vida “fontal”, a vida nascente, escapam-nos
absolutamente».
Hoje, as questões
colocam-se numa linguagem diferente, com muito mais conhecimentos entretanto
alcançados mas certamente com muito mais incógnitas a desbravar: porquê aquela
célula maligna?; como evitar a profusão das células desequilibradas?; etc… Como
ele, de Chardin, dizia a págs. 83 da mesma obra, «Humanamente falando, as
passividades internas de diminuição formam o resíduo mais negro e mais desesperadamente
inutilizável dos nossos anos». É fantástico como, passado praticamente um
século, com a fronteira da Ciência a avançar tanto e, contudo, a subsistir a
questão final, a de saber em que circunstâncias é que Deus escreve torto por
linhas direitas.
E recuando um bom bocado
mais na Historia, já Pascal perguntava em 1659 «O que é o homem na Natureza?».
E dava logo de seguida a resposta: «Um nada relativamente ao infinito, um nada
relativamente ao tudo, um meio entre nada e tudo. Infinitamente afastado de
compreender os extremos, o fim das coisas e o seu princípio estão para ele
invencivelmente escondidos num segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver
o nada de onde foi tirado e o infinito no qual está mergulhado» (Pensées,
ed. La Pléiade, pag. 1107).
Foi já no século XX que Karl
Popper nos lembrou que o método científico, alternando constantemente entre
experiência-fracasso-experiência-fracasso-experiência-fracasso… e assim
sucessivamente (no sentido etimológico matemático), nos oferece a verdade como
um ponto no infinito.
A impotência de todos os
que lutam diariamente contra a doença só não é frustrante porque o sentimento
de missão prevalece como algo para que não há palavras de louvor suficientes em
qualquer léxico. O cientista e o filósofo são um só, a dor que sentem só os não
destrói porque se outorgaram uma missão heróica, frequentemente anónima,
praticando o bem pelo bem e sempre com o fito de alcançarem a vitória final
sobre o mal. E, apesar de hoje se saber muitíssimo mais do que há uma dezena de
anos, Pascal e Popper continuam a ter razão na pequenez humana e na distância a
que nos encontramos da verdade.
Teorizar sobre o
sofrimento é fácil desde que esse sofrimento seja encargo alheio. Mas quando
ele nos bate à porta, lembro-me do que disse Pierre Cardeal Veuillot,
Arcebispo de Paris, que em 1968 morreu de leucemia e cujas palavras traduzo com
alguma liberdade: - Nós sabemos construir belas frases sobre o sofrimento.
Eu próprio falei dele com fervor. Mas digam aos Padres que se calem: nós
ignoramos tudo sobre ele e foi em sofrimento que chorei.
Mas será que o
sofrimento, para além de absurdo, nos obriga ao silêncio?
Apesar da diferença
abissal entre o doente e nós, os acompanhantes, sabemos que o nosso silêncio não
faz sentido e que uma palavra de conforto é imprescindível. Não temos o direito
ao silêncio! Sim, a palavra é indispensável mas o nosso drama é o de sabermos o
que dizer.
Desafiada pelo mal, a
esperança permite-nos aprovar a vida apesar das suas injustiças, dos seus
fracassos e das suas feridas. A esperança é, nas palavras de Paul
Ricoeur, «a raiz do sim», a «alma do consentimento». Infatigavelmente
retomado, o conceito «apesar de…» inspira-nos a palavra que falta reafirmando a
existência em confronto aberto com o mal. A esperança é o contrário da angústia
e, contudo, é esta que a acompanhará até ao último dia. A esperança é o
contrário do saber absoluto e a imaginação (poética) que a todos move do fim do
mal, vem muito a propósito da especulação sobre o sentido da missão que nos
cumpre na vida. O que andamos por cá a fazer que não seja a prática do bem? É
neste sentido que recai uma proibição absoluta de silêncio perante o sofrimento
de quem nos é próximo, de quem nos é querido. Se outra palavra nos não ocorrer,
que seja ela a da esperança, por muito angustiados que interiormente possamos
estar. E todos sabemos como a angústia nos assola nessas trágicas
circunstâncias. A esperança é a arma de que dispomos para, em nome do bem,
combatermos o mal para que, como dizia S. Paulo, «lá onde abunda o mal,
superabundará o bem».
O sofrimento é o preço
individual a pagar para que a Humanidade possa alcançar a verdade.
As religiões
hospitaleiras são sedes de fé, a crença que se situa para além da Ciência
actual, a tábua de salvação dos crentes que por ela sabem que o futuro existe.
Feliz todo aquele que tem
fé.
Agosto de 2013
BIBLIOGRAFIA:
“Do ser da pessoa à
doença existencial”, Michel Renaud, in BROTÉRIA, Julho de
2013, pág.31 e seg.
“Vocabulário de P.
Ricoeur”, Olivier Abel/Jérôme Porée, ed. Minerva Coimbra, 2010
O Comentário:
A Dor humana não é só a da criança
injustamente escorraçada na vida, embora essa seja, objectivamente, a que mais
nos choca, vida iniciada na inocência que só pode inspirar
ternura, e repúdio contra o mal que lhe é causado. Mas são tantas as injustiças
e impotências do mundo a merecer reparo, que só uma fé incomensurável pode
aceitar de um Deus por princípio, justo, na realidade
não subentendido na definição com a tríade dos omni - omnipresente,
omnipotente, omnisciente. Mas também a Dor pode ser objecto de recriação
extraordinária, mais ou menos objectivamente descrita, entre nós, de
Camões a António Nobre. Ninguém, contudo, como Mário de Sá Carneiro,
debatendo-se no seu mundo agónico, em recriações de beleza e dispersão,
para traduzir a quintessência do sofrimento puro - o da desilusão constante -
em arte pura:
Ângulo
Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...
- Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partistes-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...
- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebrastes-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...
Neste mar oco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...
- Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partistes-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...
- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebrastes-vos também ou, por ventura,
Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...
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Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...
- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'
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Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...
- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'
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