Vem de longe, talvez da poetisa Sapho, o costume de
envolver o retrato das figuras femininas, quer na literatura, quer na pintura,
com imagens do belo, retiradas das flores, dos astros, das pedras e metais
preciosos, das cores, das manifestações do tempo – a neve em paralelo
expressivo hiperbolizante. As próprias cantigas do amor trovadoresco -
convencionalmente traduzindo a coita de amor que invariavelmente trespassava o
coração do poeta por motivo do distanciamento da “senhor”, aristocrática dama “de
bom semelhar” ou “parecer” e bom “prez” e “falar”, que
com a sua indiferença o faz ensandecer ou mesmo desejar a morte - embora
raramente a retratem nos seus traços físicos, estes surgem aqui ou ali, como no
refrão da cantiga de João de Guilhade (“Amigos, non poss’eu negar / a gram
coita…”: “Os olhos verdes que eu ui / me fazen or’andar assi”), na
de Ruy Paez (“Par Deus, ay dona Leonor,”) a comparação hiperbólica
“Com’antr’ as pedras bom rubi, / sodes entre quantas eu ui”. Mais
frequente é a metáfora encarecedora “lume destes olhos meus”. Também o lai
da Leonoreta, que “Amadis de Gaula” transcreve dos Cancioneiros,
utiliza a “roseta” e “toda a flor” para descrever Leonor: “Leonoreta
/ fin roseta / bela sobre toda fror”, que a Internet tão explicitamente nos
mostra (e bem assim a “Crestomatia Arcaica” do Dr. José Joaquim Nunes que
sigo.
No Renascimento e séculos seguintes tais paralelos
ilustrativos da beleza feminina se multiplicam, até mesmo para as figuras
populares, como a do vilancete camoniano “Descalça vai para a fonte”,
glosado ao modo maneirista por Rodrigues Lobo – e no século XX, de modo
extremamente visualista e dinâmico por Gedeão, no “Poema da auto-estrada” –“Voando vai para
a praia / Leonor pela estrada preta. / Vai na brasa, de lambreta”.
Mas o maneirismo retórico todo ele se apura já, no
Renascimento, no retrato convencional da mulher amada:
«De
quantas graças tinha, a Natureza / Fez um belo e riquíssimo tesouro, / E com
rubis e rosas, neve e ouro, /Formou sublime e angélica beleza.
Pôs
na boca os rubis, e na pureza / Do belo rosto as rosas, por quem mouro; /No
cabelo o valor do metal louro; / No peito a neve em que a alma tenho acesa.
Mas
nos olhos mostrou quanto podia, / E fez deles um sol, onde se apura / A luz mais
clara que a do claro dia.
Enfim,
Senhora, em vossa compostura / Ela a apurar chegou quanto sabia / De ouro,
rosas, rubis, neve e luz pura.»
Tal preciosismo renascentista será
levado, no Barroco, a uma orgia retórica de um rebuscamento angustiado, seguindo
um percurso em suspense, de paralelismos antitéticos, no soneto “À morte de
F.” de Francisco Vasconcelos do Cancioneiro “A Fénix Renascida”: a
figura feminina – hiperbolizada em “jasmim”, aurora”, “fonte” “rosa”,
não como metáforas simples mas prolongadas por outros sintagmas buscando
efeitos requintados de superação daquelas – será identificada gradualmente,
segundo a temática do efémero da vida:
«Esse
jasmim que arminhos desacata, / Essa aurora que nácares aviva, / Essa fonte que
aljôfares deriva, / Essa rosa que púrpuras desata; …»
Mas é sobre a transfiguração
visionária da realidade, no poema “Num bairro Moderno”, de Cesário
Verde, pela recriação de uma figura humana a partir dos vegetais que a
rapariguinha vendedeira de hortaliças transporta, o motivo desta divagação pela
poesia e o retrato metaforizado da beleza feminina de paralelo com as graças da
natureza primaveril ou brilhante.
Em Cesário não se trata de
realçar a beleza feminina, já que a vendedeira de hortaliças é descrita, com ternura e simpatia, na sua
fealdade e debilidade, ao poisar a sua giga de peso contrastivamente brutal:
«E rota, pequenina, azafamada, / Notei de costas uma rapariga, / Que
no xadrez marmóreo duma escada, / Como
um retalho de horta aglomerada, /Pousara,
ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a; / Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos; / E abre-se-lhe o algodão azul da meia, / Se ela se curva, esguedelhada, feia /E pendurando os seus bracinhos brancos.»
Uma travagem no percurso deambulatório do poeta pela cidade
colorida, o “retalho de horta aglomerada” lembrando repentinamente uma “visão
de artista” de extraordinário impacto:
«Subitamente – que visão de artista! / Se
eu transformasse os simples vegetais, / À
luz do sol, o intenso colorista, / Num
ser humano que se mova e exista / Cheio de belas proporções carnais?!»
E no meio dos dados sensoriais de aromas, cores, sons,
surge o quadro, talvez inspirado nos das Quatro Estações do pintor
seiscentista Giuseppe Arcimboldo. Mas, diferentemente do propósito maneirista
do pintor italiano, é de expressão naturalista e simultaneamente simbólica e a
tender para o surrealismo, a transfiguração cesariana, destinada não só a
assinalar o contraste entre a monstruosidade caricatural das hortaliças e o
aspecto frágil da vendedeira, e simultaneamente a destacar a força produtiva da
terra-mãe - igualmente simbolizada na força moral da rapariguinha do povo - “duma
desgraça alegre que me incita” - que o convida, com uma franqueza natural, a
ajudá-la a erguer a pesada giga:
«E eu recompunha, por anatomia, / Um
novo corpo orgânico, aos bocados. /Achava os tons e as formas. Descobria / Uma
cabeça numa melancia, / E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite, /
Negras e unidas, entre verdes folhos / São tranças dum cabelo que se ajeite; /
E os nabos – ossos nus da cor do leite, / E os cachos de uvas – os rosários de
olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante /
Nas posições de certos frutos. E entre / As hortaliças, túmido, fragrante, / Como
d' alguém que tudo aquilo jante/ Surge um melão que me lembrou um ventre.
E como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.»
Uma irmanação feita de solidariedade, de admiração pela
valentia, despojada de rancor, da gente habituada ao trabalho (Cf. “Ela
canta, pobre ceifeira” de Pessoa), mas também de um sentimento de revolta
social, constante em Cesário:
E pitoresca e audaz na sua chita, / O peito erguido, os
pulsos nas ilhargas / Duma desgraça alegre que me incita, / Ela apregoa magra,
enfezadita, / As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas dum gigante, / Sem, tronco, mas
atléticas, inteiras, / Carregam sobre a pobre caminhante, / Sobre a verdura
rústica, abundante, /Duas frugais abóboras carneiras.
Não se trata, pois, de um descritivo
erótico como nos versos de Silva Tavares e musicados por Alves Coelho e cantados
por Lina de Moel (“Dia da Espiga”) que igualmente encontramos na Internet:
«Maria!
São teus olhos azeitonasCachopa! São teus lábios quais cerejas
E teus seios cachos de uvas que abandonas
À vindima desta boca que os deseja.»
Hoje, que a poesia não conhece travão no
imaginário para se afirmar com originalidade, com maior ou menor profusão de
discursos ínvios, e com um erotismo sem preconceito, o discurso preciso,
geométrico, de Cesário poderá parecer demasiado prolixo, na transparência de um
pensamento rigoroso e claro. Mas a técnica impressionista, por vezes
pontilhista, da anotação breve e múltipla, é de inegável sugestividade e
beleza, os motivos poéticos, juntamente com o sentido crítico, o tornaram um
escritor de vanguarda. O poema citado o demonstra.
Entre
tantos artifícios semânticos e formais, em que não são menos expressivos o
plano fónico e a variada arquitectura versificatória, que tornaram a poesia de
Cesário pioneira de modernidade, inspiradora de grandes poetas posteriores,
dois versos, como exemplo, de “O Sentimento de um Ocidental”: “E sujos, sem
ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente os cães parecem lobos”
que, quer na sequência progressiva da adjectivação descritiva (o adjectivo
final “errantes” pontuando o aspecto psicológico, demarcando-se da
sucessão dos de carácter físico), quer na hipálage do advérbio formando um
traço impressionista de cor, ou a comparação hiperbólica final, traduzem uma
estranha pintura de fome canina e de sensibilidade à sua miséria, num perfeito
nexo entre a objectividade – a alteridade, o mundo dos outros – e a
subjectividade, funcionando na estreita comunhão dos seus “quadros revoltados”,
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