domingo, 6 de outubro de 2013

Bucolismo empenado

É de origem grega, com prolongamento romano, o canto lírico que alia a natureza a estados de alma ou a graças físicas quer da pastora quer da  mulher amada, quer, como nas éclogas, expressão de quadros passionais - com exemplo, entre nós, das éclogas de Bernardim ou a “Crisfal” - ou expressão de problemática social ou filosófica, como nas éclogas de Sá de Miranda.
A natureza cultivada ou mais serrana foi, assim, inspiradora das sensibilidades que ao longo dos séculos fixaram em quadros de extrema beleza, de que talvez “Marília de Dirceu”, na sua I Parte, constitui o ponto de viragem na exploração da temática  clássica segundo um pendor já mais romântico e mesmo realista, envolvendo numa confissão de ternura “caseira” a mulher profundamente amada.
Mas é Camões que mais magistralmente exprime, por meio da personificação da natureza estilizada, o paralelismo dos olhos verdes da amada com o verde dos campos, ou o contrastante  alimento  rebanhos” // “ lembranças”: “pastos” // “graças dos olhos” amados:
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
            O Primeiro Modernismo trouxe a ruptura com a arte clássica nas suas técnicas de dessacralização do Belo aristotélico, como são prova os poemas seguintes de Alberto Caeiro:
                                                 I (excerto da 1ª estrofe)
       Eu nunca guardei rebanhos,
                     Mas é como se os guardasse.
                     Minha alma é como um pastor,
                     Conhece o vento e o sol
                     E anda pela mão das Estações
                     A seguir e a olhar….
                                                                 IX                               
«Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.»
 
No 1º excerto, o concretismo das imagens (comparação),  reduz a carga metafísica contida em “alma” através de uma personificação de cariz visualista e dinâmico: “conhece”, “anda”, “a seguir e a olhar”. No 2º poema, uma afirmação realista (“Sou um guardador de rebanhos”), que contesta a do poema I (“nunca guardei rebanhos”), logo é desmistificada na identificação metafísica dos “rebanhos”, com os “pensamentos”, estes, por seu turno, concretizados pela sua identificação com as próprias “sensações”. Daí que as sensações – visuais, auditivas, tácteis, olfactivas, gustativas – sejam o ponto de partida  para  uma poesia de carácter sensacionista que (aparentemente) nega a subjectividade do “pensamento”, para se recrear no deleite do “sentir”, na perfeita comunhão do “eu” com uma “natureza  que ele vê e sente – não como um ser que reflecte sobre isso, (através do pensamento), mas como mais um elemento dessa natureza, apenas com a cabal felicidade de um sentir sem especulação nem metafísica. Mas a própria negação da metafísica, com todo o rebuscado construtivo do poema provam o carácter de profunda intelectualidade desta poesia do natural e do simples. Longe se está, pois, do bucolismo clássico, de expressão do belo em equiparação com a beleza da mulher amada.
Mas a vida e as nações evoluem. E nos tempos actuais, o estado dos campos, por cultivar na sua maioria, ou das serras, devastadas pelos incêndios, dificilmente inspirará os nossos vates em bucolismos ultrapassados. Incêndios, aridez, entulhos, poluição, a caminho do desastre ecológico, com o prometido aquecimento global, poderão merecer o apelo a novas formas de arte, como a pintura ou a fotografia, para exposição nos centros culturais.

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