domingo, 27 de outubro de 2013

A “Sá da Costa”, alma mater



É verdade. Também sinto profundamente a extinção da Livraria Sá da Costa, cujos clássicos, relativamente em conta, foram acompanhando a minha vida estudantil e servem hoje ainda de referência para consulta das obras completas ou parciais – de Camões, de Gil Vicente, de Sá de Miranda, de Bernardes, do Cavaleiro de Oliveira, de Vieira, de Bernardes, de D. Francisco Manuel de Melo, de Tomás António Gonzaga, de António José da Silva…  Eram livros de modéstia e utilidade, sempre à mão para as dúvidas de reposição de integridade editorial, relativamente a erros eventualmente detectados nos manuais escolares, ou para qualquer informação referente a dados circunstanciais, que Vasco Pulido Valente aponta no seu artigo do “Público” de 18 de Outubro, “Os Clássicos Sá da Costa”, como “devidamente anotada”.

Nesse ponto, não concordo, de preguiça mais votada aos livrinhos fininhos “Clássicos Portugueses - Trechos escolhidos” da “Clássica Editora” ou “Textos Literários” da “Gráfica Lisbonense”, ou os da “Colecção Literária Atlântida”, de Coimbra, ou os livros “Clássicos Portugueses” dos séculos XVI ao XIX, de Mário Fiúza, Ema Tarracha, da ASTER e tantos outros, plenos de anotações, que ajudaram a desbravar o sentido das mensagens e o enquadramento literário e social dos escritores, de que os mais fininhos - “Clássicos Portugueses”- utilizados, durante muito tempo, no Ensino, se fizeram porta-vozes ajudando à formação de professores e alunos. Estes pequenos ou grandes livros de excertos apresentam maior número de anotações do que os da Sá da Costa, mais interessada na transcrição correcta da obra integral. Os vindoiros poder-se-iam debruçar melhor sobre textos e contextos, a partir dela e esses estudos continuam a verificar-se nos Manuais Escolares de Literatura, da disciplina de Português, como excelente encaminhamento literário, inexistente nos Manuais de outrora, por onde estudei, puro reservatório ou antologia de excertos.

Por isso, sinto o seu encerramento, neste associar-me à homenagem que a ela presta Vasco Pulido Valente, transcrevendo a sua crónica. Lembro bem a emoção quando, chegada de África, entrei pela primeira vez na livraria “Sá da Costa”, percorrendo e revendo, como num santuário de surpresa maravilhada.

Chegou a sua vez, cumprido o seu belo destino, de parar de dar à estampa os discretos e tão amplos livros cuja imagem o Público revela, no mesmo desígnio de homenagem e protesto. Não se tratava dos Armazéns do Chiado incendiados e reconstruídos, com grande alarido, comoção e dispêndio. A Sá da Costafaliu sem ruído, ao fim dum século de serviço”, pois que livros e edições de clássicos, desenterrados muitas vezes das fontes primeiras, não representam significado de projecção semelhante à do incêndio dos Grandes Armazéns do Chiado. Embora as suas edições de clássicos vão perdurar enquanto existir a pátria portuguesa, ao contrário da memória destes.

“Os Clássicos da Sá da Costa”

«Há os que dizem sim e há os que dizem não. Mas de um e outro lado, todos dizem o mesmo, com as mesmas palavras e com as mesmas razões. Todos se repetem simultânea ou alternadamente para chegar à mesma conclusão. Basta ouvir a primeira frase para se perceber onde a conversa vai parar e por que espécie de caminho. O português sem gramática que se usa na televisão e nos jornais desceu à “língua de pau”. A “língua de pau” costumava ser um exclusivo do Partido Comunista, agora é a língua quase oficial da política, uma pasta mastigada e remastigada, que não exprime nada e não convence ninguém. Só prova, com enorme abundância e variedade, a iliteracia crescente dos preopinantes que persiste, contra o senso e a inteligência, em falar e escrever para um público cansado e mudo.

Foi por isso que me lembrei hoje da Livraria Sá da Costa, que faliu sem ruído ao fim de um século de serviço. No tempo das tertúlias, que desapareceram por volta de 1960, a tertúlia da Sá da Costa, apesar dos seus créditos de oposição, nunca conseguiu realmente competir com a da Bertrand, onde o “glorioso mestre Aquilino”, como lhe chamavam, era a grande atracção. Mas no meio da sua relativa modéstia, a Sá da Costa prestou um incomparável serviço ao país: durante anos, volume a volume, publicou a melhor colecção de clássicos (devidamente anotada) que algum dia por cá apareceu. Do século XVI para a frente não faltava um único autor dos que mudaram e moldaram o português que hoje se usa ou, mais precisamente, não se usa. Para medir bem a nossa pobreza literária os “clássicos Sá da Costa” foram um instrumento único.

Pouco a pouco, as dificuldades da livraria desfizeram a colecção. O Estado podia ter subsidiado a coisa. No Ministério da Cultura existia, de resto, um instituto (criado por mim, para mal dos meus pecados) que servia perfeitamente para o propósito. Só que a gente que o dirigiu escolheu sempre as actividades que lhe permitiam dar ar à pluma e adquirir uma ínfima importância, passageira e espúria. O denominado Plano Nacional de Leitura é fantochada, pedagogicamente inútil, mas que ajuda a criar empregos (no Estado, está claro) e a distribuir uns dinheiritos por umas dezenas de analfabetos com necessidades. Não admira que Angola e Brasil nos tratem como tratam. A famosa “língua comum”, objecto de tanto parlatório, apodreceu.»

É claro que Vasco Pulido Valente exagera no seu pessimismo de purista linguístico. Uma língua não morre assim, e a expressividade (por monocórdica e vazia que por vezes se mostre) dos discursos parlamentares ou dos economistas, ou até eventualmente de artistas entrevistados, - e mesmo de telenovelas portuguesas actuais, de bom nível fraseológico e interpretativo - provam que a língua portuguesa não morrerá ainda e, tal como António Ferreira sugeria há quatrocentos anos, “lá onde for, senhora vá de si soberba e altiva”.

Como não morrerão as Crónicas de Vasco Pulido Valente.

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