domingo, 29 de setembro de 2013

As urgências da nossa relatividade


É com Oliveira Martins e o estado actual da Nação, com breves investidas nos textos daquele para melhor acentuação das semelhanças entre passado e presente, e idêntico sentido crítico com que ambos os historiadores envolvem a respectiva contemporaneidade, que Vasco Pulido Valente inicia o seu artigo do Público, de 20 de SetembroNada de espantar”: «Joaquim Pedro Oliveira Martins foi o  homem que melhor percebeu o Portugal da segunda metade do século XIX.”

Com efeito, ambos os  historiadores parecem irmanados numa comum arte narrativa de historiar os factos da sua contemporaneidade, tendente a uma percepção objectiva da realidade, mas não isenta de zargunchadas críticas, resultantes de idêntica análise polifacetada de um país que endemicamente descambou em situações economicamente catastróficas:

«Os políticos falam hoje constantemente de “erros do passado” mas sem nunca explicarem de que “erros” se trata e sem nunca dizerem com alguma clareza o que espera o país. Com outro carácter e coragem, Oliveira Martins escreveu, em 1894, que a “nação” “se encontrava” perante uma pergunta “vital” : “Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo dentro das estreitas fronteiras portuguesas.” Como se chegou aqui em 1894 e como se chegou aqui em 2013? Num artigo breve e claro, Oliveira Martins tenta responder. E a resposta só surpreenderá o pior analfabeto em circulação.

Em 1851, no começo da maior expansão do capitalismo na Europa, as potências financeiras do tempo (a Inglaterra e a França) voltaram a ver em Portugal uma boa oportunidade “a explorar” e as bolsas, “passando a esponja do esquecimento” sobre as “bancarrotas” anteriores, “abriram os seus cofres”. Em 40 anos, o nosso “Tesouro Público (…) conseguiu obter por empréstimo uma soma aproximadamente de 90 milhões esterlinos efectivos, em bom ouro”. O resultado acabou por um “cenário” “que dava a Portugal a aparência de um país rico”, “coalhado” de caminhos-de-ferro e também de estradas, com dois portos modernos, Lisboa e Leixões. E os governos iam garantindo a paz doméstica com o “comunismo burocrático”, que vinha substituir  o antigo “comunismo monacal”: o Estado contratou “muitos milhares de funcionários, mais ou menos opiparamente prebendados”, “a legião nova dos beneficiados de obras públicas e centenas de concessionários”, que rapidamente enriqueceram.

Infelizmente não se podia viver “salariando a ociosidade” e “suprindo a escassez do trabalho interno com subsídios oficiais”, à custa do dinheiro de fora. Portugal não se aguentaria, se continuasse a depender de “recursos estranhos ou anormais”, e não do “fruto” da sua produção e economia. Isto “não era segredo para ninguém mediocremente instruído”. E não se deve considerar o fontismo um erro, como não se deve considerar a política da II República um erro ou uma série de erros. Nos dois casos a fortuna enganadora” do país serviu a ambição e o interesse da elite que tomou conta do regime e de uma classe média ignorante, cretinizada pelos partidos. E quem se espantar que se espante primeiro de si.»

O mergulhar, pela pena de Pulido Valente, em excertos de Oliveira Martins, leva-me a transcrever ainda, (por me parecer pertinente de actualidade e de “relativa” utilidade), de “Explicações”, antepostas à 2ª edição de «Portugal Contemporâneo» (1883), de Oliveira Martins,  o penúltimo parágrafo crítico e moralizador, (se é que este último adjectivo não provoca antes o riso superior dos que o aboliram da sua prática, pelo preconceito, tão banalizado já, da “relativização” dos conceitos:

«As necessidades urgentes de Portugal de Portugal são maiores e mais complexas (do que as preconizadas pelos que, “educados ainda no radicalismo, pensavam que o seu ofício consistia em pregar moral e em decretar reformas radicais”). Liberdade há suficiente, demais até: ninguém pensa hoje em dia em atacar esses direitos do indivíduo que andam erradamente nas Constituições, quando o seu verdadeiro lugar seria o código civil; mas urge reformar num sentido prático os sofismas que, sob o nome de “liberdades”, corrompem até à medula o corpo desta sociedade. Urge moralizar a administração e extirpar o parasitismo que nos rói. Urge pôr um ponto de ordem no desvairado rumo das finanças, no regime iníquo e absurdo do imposto. Urge suster na queda, ou amparar na nascença, a navegação e as indústrias para os nossos filhos não serem forçados, à míngua de ocupações, a pedir por esmola um emprego. Urge povoar um território meio deserto e plantar gente nas brenhas que por toda a parte mancham o País. Urge acabar com a agiotagem que, alimentando um Tesouro mendigo, nos conduz rápido à ruína.  Urge, numa palavra, moralizar uma política desvairada, levantar uma autoridade abatida; e levantá-la não pela força, mas pelo respeito devido ao saber e ao carácter; urge restaurar as forças económicas de uma nação adormecida e o vigor moral de um povo atormentado.»

Mas o nosso mal é como tumor maligno ramificado no território, de pequena gente  saracoteante e palradora. Aponto o exemplo de populações de freguesias destruindo urnas de voto ou boicotando as eleições por motivo da agregação da sua a outras freguesias e o mulherio guinchando razões de vaidades feridas, sem ter em conta as necessidades pecuniárias de reformas administrativas. E aponto, é claro, as vaidades regurgitantes dos partidos que ganharam ao do Governo, que palram e palram, também sem terem em conta as contas, por hábito velho de parasitismo. Não diferem do mulherio.

As urgências pedidas por Oliveira Martins não são exequíveis, que o nosso mal é endémico. E recuado.

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