terça-feira, 24 de setembro de 2013

Triste pecúnia

 
Quando comecei a leccionar, no liceu de Aveiro, em finais de 57, em substituição de uma professora, só em Abril é que tive direito a receber os quatro primeiros meses de vencimento pelo trabalho exercido, o que constituiu espórtula de envergadura – para cima de 12.000$00 – que me pôs logo em azáfama para arranjar casa e os móveis imprescindíveis para os livros, as louças, os lençóis e o primeiro filho a caminho, iniciando o processo de prestações, como coroa, não de glória mas de espinhos que me selou a vida inteira, e me fez viver feliz no imediato, é certo, sem o espectro da expectativa a realizar só para quando os ventos favoráveis da fortuna o permitissem. A fortuna – no seu sentido inebriante de riqueza – nunca me foi favorável, todavia, porque sempre a antecipei no gozo da obtenção do prazer imediato, com a colaboração compreensiva dos vendedores das minhas alfaias, logo seguida, hélas! dos doze meses, quando não anos infindáveis, a saldar a dívida. Daí os espinhos da minha coroa serem antes de brando plástico, de tal maneira que nunca me  poderia orgulhar de construir os versos das grandes tristezas, como o “Erros meus, má fortuna” – que também incluiu a falha de proventos, pese embora o comedimento da espiritualidade clássica - ou mesmo “O dia em que nasci moura e pereça”, ambos do estro de Camões, que foi desgraçado a sério - “Que este dia deitou ao Mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”, enquanto que o meu dia de nascimento não deitou nada disso cá para fora. Apenas atribuladas – é certo - prestações mensais.

Vem a história a propósito do chefe de secretaria do liceu de Aveiro, homem pesado, de compleição atrabiliária, que, ao entregar-me os doze contos e picos referentes aos primeiros quatro meses e picos de aulas por mim leccionadas, me disse de forma iracunda, que acolhi com deferência maravilhada, não só pelo desafogo inesperado, como pelo prodígio do vaticínio, que nem Nostradamus se arrogaria a executar: “Nunca a senhora virá a receber tanto na sua vida”.

Era ele o encarregado da distribuição dos vencimentos, o que lhe dava inegável autoridade e prestígio, por poder mergulhar mensalmente os olhos e as mãos naquelas muitas notas de que era obrigado a desfazer-se de seguida, mas enquanto isso, pudera sentir-se um novo Creso a contemplá-las. Suponho que se julgava o dono delas a distribuí-las com autoridade. E isso o pude comprovar noutras escolas, enquanto os vencimentos eram distribuídos em notas pelos chefes responsáveis, deuses arrogantes do seu poder distribuidor. Mais tarde os vencimentos foram distribuídos em cheques, não causariam tantos eflúvios de prazer, mas a arrogância manteve-se, pela concessão do poder de traçar cifras para o pessoal. Hoje as coisas tornaram-se assépticas, impessoais, abstractas, com a máquina multibanco a trabalhar incansável, eficaz e providencial, sem vaidades tolas, apenas emperrando, como defeito da sua contingência.

Mas sempre pude verificar,  e cada vez com mais consciência, que o poder, qualquer que seja, transforma os homens em feras raivosas e imponentes, criadores de criaturas à sua imagem, eficientes, enfiadas na mesma rede de desumanidade para com os fracos, de subserviência prestável para com os que comandam.

A história que transcrevo do Público de 15 de Setembro, lida em “Espaço Público” é exemplo, não só de truques mistificatórios dos governos centrais a fim de distorcer a imagem do desemprego, mas dessa desumanidade arrogante para com os que precisam de emprego ou de subsídio e que não podem falhar às imposições de comparência, ainda que seja enganosa, sob pena de perderem o direito ao subsídio ou à oferta de trabalho. Afinal, qualquer ser humano se pode transformar em lorpa fera, desde que lhe seja fornecido o meio adequado. A falta de educação ainda enfatiza mais os casos, não devemos atacar só os cimeiros da nossa inveja.

Leiamos o texto, de José Manuel Silva, de Odivelas:

“A escravatura como forma de combater o desemprego?”

«Permitam-me acrescentar algumas notas relativamente ao desemprego, a propósito do texto de José Vítor Malheiros “A escravatura como forma de combater o desemprego?”, publicado no Público no dia 10 de Setembro.

Como aí se diz, a taxa de desemprego mede apenas quem procura trabalho, mas como se sabe quantas são as pessoas desempregadas que não procuram trabalho? Ora bem, em Odivelas, que pertence ao Centro de emprego de Loures, convocam-se as pessoas que já não recebem subsídio de desemprego para sessões de presença obrigatória – a última a que assisti foi no dia 16 de Agosto, sexta feira (a seguir ao feriado) – sob ameaça de a falta implicar a anulação da inscrição no centro de emprego e inibição de reinscrição nos 90 dias seguintes.

O objectivo da sessão é verificar as faltas e dizer tão-só aos presentes que se devem dirigir ao Gabinete de Inserção Profissional da Junta de Freguesia de Odivelas, que fica do outro lado da freguesia.

Parece estúpido mas é isto: convocam-se por carta as pessoas para uma morada, apenas para lhes comunicar que devem ir a outra morada.

O que faz o Gabinete de Inserção Profissional? Verifica se a pessoa apareceu e recomenda que procure trabalho nos anúncios ou que se inscreva em cursos para aprender a trabalhar com o Word (incluindo licenciados e mestres)…

O ritual repete-se a cada trimestre, desde Abril. O objectivo real das sessões, que os funcionários já não conseguem esconder ao ponto de o admitirem, é fazer as pessoas andarem de um lado para o outro até falharem uma presença, e voilà, a inscrição anula-se, o desemprego desce, o país fica feliz.

A taxa de desemprego passa assim apenas a reflectir o desemprego recente, das pessoas que ainda recebem subsídio. Os restantes são toureados até saírem da estatística por falta de comparência.

Pelo meu lado vou continuar a procurar trabalho, mas, tal como a estatística já demonstra, vou deixar de aparecer nestas sessões de humilhação colectiva com objectivo de apenas manipular as estatísticas.

Parece-me um caminho socialmente perigoso, mas o que mais me impressiona é a eficácia com que está a ser executada esta orientação. Se tudo na administração pública funcionasse assim tão eficazmente…»

José Manuel Silva, Odivelas


Um texto de fino humor e muita amargura. Não haverá quem o reconheça e igualmente as capacidades intelectuais do seu  autor e lhe proporcione o emprego a que tem direito, segundo a  Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23º)?

 

 

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