sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Literatura cor de rosa


Um texto de José Pacheco Pereira, de sábado passado, do blog ABRUPTO. Sobre um livro de Judite de Sousa sobre Álvaro Cunhal:

«Um dos resultados das comemorações do centenário de Álvaro Cunhal foi a deliberada construção, feita por propagandistas e inocentes úteis, de um Cunhal méli-mélo, cheio de "interesse humano" e vazio de política. O livro de Judite de Sousa, apressado, cheio de incongruências e contradições, é o culminar desse processo, que já vinha de antes. O PCP, que não abre nenhuma informação dos seus arquivos aos historiadores, abre-se generosamente a jornalistas e autores, mesmo muito sensacionalistas e muito de direita, dando-lhes acesso a depoimentos e testemunhos - não a papéis, mas a testemunhos.

 O resultado é a imagem "humana" de um Cunhal sensível, familiar, amigo das crianças, amoroso, marido atento, irmão e filho dedicado, a somar ao artista e escritor. Cunhal pode ter sido todas estas coisas, - não foi, - mas isso só é relevante no contexto da sua persona política, que é o que o torna uma figura publica com um papel muito importante na história portuguesa do século XX. Não menosprezo o papel que a sua vida pessoal e íntima possa ter tido na sua biografia, mas verdadeiramente nem sequer fico a saber muito mais por esta literatura cor-de-rosa, até porque ela continua a seguir as conveniências e o cânone, ocultando dados e pessoas, fazendo uma amálgama de testemunhos e interpretações, errando ou sendo vago nas datas e nos locais.

A mitificação de Cunhal nestes termos tem implícita a ideia de que se pode ser um duro e ortodoxo dirigente comunista, e ser "humano", comum, frágil como toda a gente, ou seja, um de nós, que ainda se torna melhor por ter essa dimensão afectiva que ganha tal dimensão porque é apresentada como uma “descoberta”, à revelia do seu secretismo e da sua imagem de dureza. Ora, qualquer pessoa que saiba alguma coisa do comunismo e do modo como os partidos comunistas moldam os seus cultos de personalidade, - e o culto de personalidade é inerente à construção propagandística dos lideres, - sabe que esta construção "humana" é a regra para todos os dirigentes, a começar por Staline. Foi feita para Thorez e Togliatti, para ir buscar dois exemplos próximos. Aparecer com crianças é uma das imagens icónicas, beijando-as, erguendo uma, recebendo com um enorme sorriso um ramo de flores. Outra representação da iconografia comunista são gestos de companheirismo, de igualdade, de humildade. O grande líder caminha ao lado, ou à frente ou ao meio de um grupo, em gestos comuns com gente comum, tudo imagens estereotipadas. As mangas de camisa de Krutchov e a roupa desalinhada revelava o filho de camponeses, em Thorez, o mineiro, o “filho do povo”. Ou então aparecem rindo-se, conversando ou jogando, bebendo uns copos de vinho tinto, ou aparecem nostálgicos e vagamente tristes. Uma versão, de que há exemplos muito parecidos para Mao Zedong e, imagine-se Salazar, visto por Rosa Casaco, é o líder solitário, diante do mar, ou numa via-férrea, olhando para o infinito, pensando, com o peso do mundo nas costas, mas de pé e firme.

Em todas estas fotos, (e noutra altura falarei da Fotobiografia organizada pelo PCP) convém não esquecer que alguém escolheu aquela que foi divulgada e não outra , pode ter sido o próprio, ou alguém próximo. Não são nunca verdadeiras fotos de família, a não ser na infância e adolescência, ou então são tiradas pela “outra” parte da família. Cunhal, que era particularmente fotogénico e sabia disso, está lá, mas é abusivo ir muito longe nas conclusões, até porque, vistos com atenção aos pormenores de postura, e lidos, com rigor, os depoimentos e testemunhos não são assim tão “afectivos” como parecem.

               Significa isto que Cunhal era um homem insensível, sem sentimentos, nem qualidades “humanas”? Longe disso, só que nem sempre são os que lhe atribuem, como, mesmo esses, eram mitigados por uma dedicação maior à sua causa. É nessa dedicação que reside o verdadeiro Cunhal, o Cunhal que é diferente, e que transportou as suas inegáveis qualidades e talentos, para um combate político que é o que foi, e não o que agora se pretende adocicar com esta face meli-melo do “Àlvaro”, em conjugação com a “Eugénia” e “Ana”, como aparece no título do livro de Judite de Sousa, tudo construções ficcionais mais do que pessoas. »



               Eis, pois, um texto sábio, muito expressivamente  construído, em torno de uma sociedade que constrói os seus ídolos segundo romanticismos adaptáveis à nossa estridência emotiva, habilmente manipulados pelo jogo partidário – neste caso, de um partido que há muito inocula doces blandícias de direitos devidos às classes trabalhadoras ou ao povo que se continua a medir pela cartilha do suor e da exploração empobrecedora, a isso contrapondo o fervor do ódio gritante contra quem detém o poder de orientar os destinos da nação.

Já Garrett escrevera, sensível que era aos desmandos de uma sociedade de aristocracia e monopólio da propriedade, que cedo o fizeram participar activamente nos arreganhos liberais que inicialmente o ostracizaram, e seguidamente o fizeram empenhar-se na defesa e aplicação dos seus princípios – mais literários do que políticos, de que “Viagens na minha Terra”, constitui  exemplo de extraordinária amplitude, nos primórdios da  revolução industrial inglesa, com consequências sobre os inícios da modernidade, acompanhada da destruição da natureza e da formação do capitalismo e da exploração do homem operário. Tudo isso que ditou filosofias responsáveis por tanto do alarido em torno dessa mesma exploração que chegou aos tempos de Cunhal, que se prolonga nos nossos tempos, descontroladamente. Escreveu Garrett, no segundo capítulo das suas “Viagens”, texto de extrema actualidade:

«Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.»

É essa mesma sensibilidade social que esclarece a figura de Cunhal, pese embora o diferente cariz literário e humano das suas figuras. Cunhal esteve na Rússia, endureceu nas doutrinas de um comunismo fechado a uma doutrina de cristianismo que apela ao amor, os exemplos da crueldade totalitarista de chefes russos ambiciosos de poder universal não lhe repugnavam, certamente, nem a abertura de fronteiras por um humano e sedutor Gorbatchev o fizeram mudar de rumo ideológico.

Por isso, o retrato humano que dele faz Judite de Sousa  e que José Pacheco Pereira tão brilhantemente condena na sua página de uma literatura hábil, parece desnecessário. Hitler foi um monstro como Estaline foi, mas amou os cães – matando-os é certo, para testar a eficácia do veneno com que se suicidariam, ele e Eva Braun. Cunhal não foi um monstro, manteve-se coerente sempre no desbobinar de razões doutrinárias bem encasquetadas no seu cérebro fechado a quaisquer argumentos contrários. As pieguices da sua vida familiar não lhe valorizam a figura. De resto, mefistofélica. É assim que o recordo.

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