Quando, em 1936, Henry de Montherlant publicou os quatro
volumes de “Les jeunes filles”, cujo primeiro volume, que lemos, tem o
mesmo título da série, ainda Simone de Beauvoir não publicara “O Segundo
Sexo”, (1949) Nada mais díspar de convicção e intenção. Montherlant,
através de várias histórias de mulheres em torno do protagonista Pierre
Costals, mostra a submissão daquelas em relação ao homem – o “escritor” que as
seduz pela arte com que descreve o universo das relações humanas, o “homem” que
muitas vezes desdenha responder às cartas das jovens apaixonadas, definindo-se
este como um carácter profundamente egoísta, rasando o sádico, lembrando o
comportamento libertino do Visconde de Valmont das “Liaisons Dangereuses”, com,
todavia, uma sensibilidade piedosa – muitas vezes irónica - sobre o sofrimento
que inflige, sensibilidade inexistente em Valmont, que emparelha em vileza de
carácter com a diabólica marquesa de Merteuil, a verdadeira manipuladora dos
caracteres e da intriga. Romance epistolar, este terá um desfecho moral, de
punição dos galantes algozes e de autopunição das vítimas, de acordo com os
preceitos morais do século em que viveu Choderlos de Laclos, cuja aristocracia pretendeu
atingir, conseguindo-o amplamente.
“Les jeunes filles” seduz pela riqueza de percepção
da realidade humana, análise psicológica, poder satírico, expressividade
sintética do descritivo. As “jeunes filles” apaixonadas vão descrevendo, nas suas
cartas - as mais das vezes sem resposta - sem grande pudor mas com uma
intensidade passional que lembra os intensos desabafos de paixão obsessiva pelo
major Chamilly da nossa freira de Beja do século XVII, sóror Mariana Alcoforado.
De resto, uma das protagonistas epistolares – Mademoiselle Thérèse Pantevin,
com que se inicia a novela e que será a última a fechar o círculo das
correspondentes, e com isso a primeira novela – é o tipo da devota cujo amor –
não correspondido - por Costals conduz a convulsões espasmódicas, lembrando os
espectáculos violentos de possessões demoníacas. Mas outras personagens
femininas vão confessando as suas paixões, entre as quais Andrée Hacquebaut, de
idêntica força espiritual e cultural do homem que ama, sem pejo de o declarar,
analisando-lhe o carácter e o seu próprio, ora com humildade ora com altivez,
esbarrando sempre com a frieza educada do homem que, sabendo-a intelectualmente
sua igual, lhe prefere qualquer jovem bonita de ocasião, embora desprezando
esta na sua ignorância juvenil e manhas de sedução. Outras personagens
femininas surgem ainda, pretexto para a revelação de cinismo de um homem um
tanto masoquista ou mesmo misógino, numa novela sobre a condição feminina, em
que alternam registos vários de cartas ou de relatos de narrador não interveniente
na intriga ou mesmo do protagonista da acção, pretexto para uma descrição do
mundo masculino e feminino, não isento de páginas de anúncios matrimoniais de
mulheres oferecendo-se, o que provocará os seus comentários de piedade, ironia
e indignação, sobre esse mundo de degradação.
Por esse motivo, quando Simone de Beauvoir faz depender
inteiramente a condição feminina, não de características fisiológicas mas sociais,
económicas e civilizacionais – “On ne naît pas femme, on le devient” – no seu
intuito feminista de defender uma igualdade entre os sexos, os livros referidos
– e tantos outros - revelam que as diferenças entre os homens e as mulheres
afinal se medem por características biológicas, de temperamento e de educação,
mau grado as obstruções postas desde sempre pela sociedade ao paralelismo educacional
entre os homens e as mulheres, que se deveram sobretudo à força física
masculina, violenta e castradora.
Embora o carácter de Costals se assemelhe mais ao de um
anti-herói egoísta e perverso, na sua fatuidade intelectual – não, por
consequência, generalizável – traduzo um capítulo do livro de Montherlant citado,
por me parecer uma análise aplicável a muitos seres masculinos, e contestando
desta forma muito das teses de Simone de Beauvoir, no seu estudo “O Segundo
Sexo”, por revelar, com bastante justeza, uma natureza masculina rebelde à
dedicação amorosa feminina, independentemente do meio cultural em que foi
educado, e revelando uma aridez presunçosa – com, aliás, boas razões para se
furtar às perseguições amorosas das suas correspondentes enfeitiçadas e nada
retraídas em descrever os seus estados de alma ou os seus gestos de ternura sensual:
“Artigo de Costals”
(Fragmento)
“O ideal do amor é amar sem ser correspondido”
«A esta repugnância em ser-se amado que sentem alguns
homens, encontro várias razões, contraditórias como é justo, já que a
incoerência é um traço masculino.
Orgulho – Desejo de guardar a iniciativa.
No amor que nos dedicam, há qualquer coisa que nos escapa, que se arrisca a
surpreender-nos, talvez a incomodar-nos, que é um atentado contra nós, que quer
manipular-nos. Mesmo no amor, mesmo sendo dois, não se deseja ser-se dois,
deseja-se ser-se só.
Humildade, ou, se a palavra parece
demasiado forte, ausência de fatuidade. – A humildade dum homem lúcido, que não
reconhece em si tanta beleza nem tanto valor, e que acha que há qualquer coisa
de ridículo no facto de os seus menores gestos, palavras, silêncios, etc., criarem
felicidade ou infelicidade. Que injusto poder lhe dão! Eu não faço grande caso
de alguém que ousa pensar em voz alta: “Ela ama-me”, sem tentar ao menos
diminuir a coisa dizendo: “O seu amor por mim subiu-lhe à cabeça”. O que sem
dúvida rebaixa a mulher, mas só o faz porque primeiro se rebaixou a si próprio.
Sentimento que eu aproximo, por exemplo, do do escritor
que achasse ridículo ter “discípulos”, porque ele sabe de que é feita a sua
personalidade, e o que colhe das “mensagens”. Um homem digno deste nome,
despreza a influência que exerce, seja em que sentido for que ela se exerça, e
sofre por ter que exercer uma. Nós, nós queremos não depender. E estimaríamos
as almas que se colocam sob a nossa dependência? É por uma alta ideia da
natureza humana, que a gente se recusa a ser chefe.
Dignidade –Opressão e vergonha do papel
passivo do homem que é amado. Ser amado, pensa ele é um estado que não convém
senão às mulheres, aos animais e às crianças. Deixar-se beijar, amimar, oprimir
a mão, olhar com olhar turvo: para um homem, pu! que nojo! (A maior parte das
crianças, por muito femininas que sejam em França, não gostam que as beijem.
Deixam-se levar por delicadeza, e por conveniência, as pessoas crescidas sendo
mais musculadas do que elas. A sua impaciência destas lambuzadelas não escapa
senão ao lambuzador, que julga que elas ficam encantadas.
Desejo de permanecer livre, de se preservar.
– Um homem que é amado é prisioneiro. Isso é por demais conhecido, não
insistamos.»
Afinal, o que comanda o mundo para os seres machos ou
fêmeas é mesmo só o amor, nas suas divergências naturais, de diferentes sexos e
de diferentes funções, que se completam ou se incompatibilizam, segundo os
trâmites da própria vida, ou da arte com que é descrita, ao longo dos tempos.
Ouçamos uma vez mais Amália:
«Cheia de penas me
deito
E com mais penas me levanto Já me ficou no meu peito O jeito de te querer tanto. Tenho por meu desespero Dentro de mim o castigo Eu digo que não te quero E de noite sonho contigo. Se considero que um dia hei-de morrer No desespero que tenho de te não ver Estendo o meu xaile no chão E deixo-me adormecer. Se eu soubesse que morrendo Tu me havias de chorar Por uma lágrima tua Que alegria! me deixaria matar.»
Mas Florbela, também:
«Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente Amar! Amar! E não amar ninguém!» |
|
Ou
Jacques Brel:
«Ne me quitte pas
Il faut oublier Tout peut s'oublier Qui s'enfuit déjà Oublier le temps Des malentendus Et le temps perdu À savoir comment Oublier ces heures Qui tuaient parfois À coups de pourquoi Le coeur du bonheur Ne me quitte pas (x4)
Moi je t'offrirai
Des perles de pluie Venues de pays Où il ne pleut pas Je creuserai la terre Jusqu'après ma mort Pour couvrir ton corps D'or et de lumière Je ferai un domaine Où l'amour sera roi Où l'amour sera loi Où tu seras reine Ne me quitte pas (x4)
Ne me quitte pas
Je t'inventerai Des mots insensés Que tu comprendras Je te parlerai De ces amants là Qui ont vu deux fois Leurs coeurs s'embrasser Je te raconterai L'histoire de ce roi Mort de n'avoir pas Pu te rencontrer Ne me quitte pas (x4)
On a vu souvent
Rejaillir le feu De l'ancien volcan Qu'on croyait trop vieux Il est paraît-il Des terres brûlées Donnant plus de blé Qu'un meilleur avril Et quand vient le soir Pour qu'un ciel flamboie Le rouge et le noir Ne s'épousent-ils pas Ne me quitte pas (x4)
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer Je ne vais plus parler Je me cacherai là À te regarder Danser et sourire Et à t'écouter Chanter et puis rire Laisse-moi devenir L'ombre de ton ombre L'ombre de ta main L'ombre de ton chien Ne me quitte pas (x4)» |
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário