sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Sempre assim foi!


Vasco Pulido Valente várias vezes se debruça sobre as histórias do passado que se repercutem nas do presente, revelando características sociais e idiossincrasias de um povo ousado no aventureirismo, na esperteza saloia, no arrivismo, no esforço de conquista de posições mais sujeita à intriga de bastidores do que à consciência do mérito. Tudo isso se nota nas pequenas circunstâncias do dia-a-dia, de desrespeito pelos compromissos, quer sejam de pontualidade, quer de realização do trabalho, geralmente motivada pela falta de empenhamento e de profissionalismo ou pela trapacice, ressalvando todos os que cumprem com seriedade e que são muitos. Mas falta-nos uma tal disciplina que faz que em outros países as normas são para se respeitar com rigor.

A literatura nos foi descrevendo, desde os seus primórdios, Eça com a graça da sua vivacidade crítica, Cesário em quadros magistrais da sua paleta de tintas e de sensibilidade, que mostra os contrastes de trabalho entre os “superiores” e os “inferiores”:

…”De cócoras, em linha, os calceteiros, / Com lentidão, terrosos e grosseiros, / Calçam de lado a lado a longa rua.” (“Cristalizações”)

“Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo; / Dois assobiam, altas as marretas, / Possantes, grossas, temperadas de aço; / E um gordo, o mestre, com um ar ralaço / E manso, tira o nível das valetas.” (id.)

 “Homens de Carga! Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão custosa! Que diabo! / E os cavadores pousam as enxadas, / E cospem nas calosas mãos gretadas / Para que não lhes escorregue o cabo!” (id.)

Mas o povo sempre teve consciência disso, o “Malhadinhas” era um dos espertos, simbolizados por Rafael Bordalo Pinheiro, que definia a Justiça como um “papo de encher” “que, à semelhança das jiboias, só dorme quando farta”. Não há muitos anos ainda a minha mãe repetia a história dos seus tempos de criança, que já referi, de uns animais e um moinho que se queixavam, em expressão onomatopaica, da miséria sofrida com o ricaço miserável que os matava à fome. O moinho, trabalhando vazio de grão, repetia ritmicamente: “Sempre assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi…”

E foi desta massa genética que emergiram os políticos portugueses, que Vasco Pulido Valente historia no seu artigo “Confiança”, do “Público” (25 de Agosto), em previsão avassaladoramente catastrófica causada pelo “buraco dos “negócios” do Estado, que, pelos nossos 308 municípios, penetraram Portugal inteiro, de Lisboa à mais remota vila de Trás-os-Montes”. O que nos leva a descrer de qualquer governo, de qualquer partido que seja, e sobretudo dos que rastejam em promessas de devoção democrática, propulsora de votos, sem estudo nem conhecimento prévio dos meandros da economia que terão de enfrentar, caso lhes seja dado o osso que procuram, reduzidos, cada vez mais a recorrer à violência dos métodos de extorsão, despedimentos, exploração, empobrecimento sucessivo de uma sociedade que governos anteriores tinham querido elevar ilicitamente, com meios alheios para melhor justificarem os tais “buracos” das suas negociatas obscuras. Mas os crimes que lá fora são punidos, aqui são bem protegidos, numa sociedade cada vez mais escorregando na gritaria e na confusão do desnorteio, da falta de equilíbrio, de rigor, e de seriedade. Qualquer professor hoje se queixa da progressiva falta de compostura, desinteresse e desatenção dos alunos. Estamos, irremediavelmente condenados. Porque dessa massa escolar sairão os futuros ineptos da nossa continuidade. Sem rei nem roque. Leiamos o que diz Valente:

«Confiança»

«Anda por aí gente preocupada, porque a redução das pensões aos reformados do funcionalismo público pode reduzir e abalar a confiança do Estado. Isto não se compreende. Até há muito pouco tempo o Estado só aparecia ao cidadão comum por três razões: para lhe tirar dinheiro, para o meter na tropa ou, mais raramente, para o prender. Nunca inspirou qualquer respeito e era universalmente detestado. Durante a monarquia tradicional o rei ainda inspirava alguma deferência, mas não os seus ministros, que os portugueses letrados consideravam invariavelmente ineptos, corruptos, quando não pura e simplesmente servos da Inglaterra ou da Espanha, ou seja, traidores sem atenuante ou sem desculpa.

A opinião da classe média e da nobreza sempre os desprezou, mesmo se lhes pedia empregos ou sentenças favoráveis nos tribunais do reino.

Com o liberalismo as coisas pioraram. O rei já não encarnava o Estado e já não oferecia sombra de protecção à turba tumultuária, civil e militar, que passava efemeramente pelo governo ou pelo parlamento. O tema da essencial perversidade do Estado acabou por se tornar um tema obrigatório da nossa literatura. Eça contava que nos salões da “alta sociedade” (por exemplo, no salão da Gouvarinho) não se recebiam políticos “porque as senhoras tinham nojo”. Esta atitude não mudou durante a República e a Ditadura. Os criados de Salazar não mereciam mais do que boas maneiras, que eles, como de costume, pagavam com favores. Depois do “25 de Abril”, algumas pessoas de uma acentuada ingenuidade pensaram que o Estado ia finalmente deixar de ser um “covil de ladrões”. Erro crasso.

Os jornais de hoje revelam, escândalo sobre escândalo, que na generalidade envolvem o Estado ou antigos dirigentes do Estado. Do BPN ao desaparecimento dos dossiers a pingadeira não pára. E previsivelmente não vai parar. O tal buraco de que tanto se fala não é só um buraco financeiro, é também o buraco dos “negócios” do Estado, que, pelos nossos 308 municípios, penetraram Portugal inteiro, de Lisboa à mais remota vila de Trás-os-Montes”.

Há por aí grandes cemitérios de escândalos à espera que a miséria e o desespero do país se transforme em raiva e os desenterre. Os regimes morrem assim. Se a população não conserva o mais leve vestígio de confiança na autoridade, governar é impossível. E esse momento não está longe.»

Tudo isso parece verdadeiro, a população não acredita, manipulada pelos que a instrumentalizam. Este governo julgou que podia avançar pela via do pagamento da dívida, e isso aquecia o coração daqueles para quem esse ponto era fundamental para se poder continuar de cabeça erguida. Todos sabem que é assim, mas convém deitar abaixo depressa. O “momento não está longe.” Virá Seguro, com o seu discurso vazio, mas logo todos os outros se assanharão, como é costume, se a Europa da nossa ajuda não resolver também hibernar, com as inépcias previstas do novo governante. E assim vamos vivendo, na tribulação de populações joguete dos rotativismos contínuos de governos sem consistência, porque nós próprios não temos muita.

Nenhum comentário: