Vasco
Pulido Valente várias vezes se debruça sobre as histórias do passado que se
repercutem nas do presente, revelando características sociais e idiossincrasias
de um povo ousado no aventureirismo, na esperteza saloia, no arrivismo, no
esforço de conquista de posições mais sujeita à intriga de bastidores do que à
consciência do mérito. Tudo isso se nota nas pequenas circunstâncias do
dia-a-dia, de desrespeito pelos compromissos, quer sejam de pontualidade, quer
de realização do trabalho, geralmente motivada pela falta de empenhamento e de
profissionalismo ou pela trapacice, ressalvando todos os que cumprem com seriedade
e que são muitos. Mas falta-nos uma tal disciplina que faz que em outros países
as normas são para se respeitar com rigor.
A
literatura nos foi descrevendo, desde os seus primórdios, Eça com a graça da
sua vivacidade crítica, Cesário em quadros magistrais da sua paleta de tintas e
de sensibilidade, que mostra os contrastes de trabalho entre os “superiores” e
os “inferiores”:
…”De
cócoras, em linha, os calceteiros, / Com lentidão, terrosos e grosseiros, / Calçam
de lado a lado a longa rua.” (“Cristalizações”)
“Mal
encarado e negro, um pára enquanto eu passo; / Dois assobiam, altas as
marretas, / Possantes, grossas, temperadas de aço; / E um gordo, o mestre, com
um ar ralaço / E manso, tira o nível das valetas.” (id.)
“Homens de Carga! Assim as bestas vão
curvadas! / Que vida tão custosa! Que diabo! / E os cavadores pousam as
enxadas, / E cospem nas calosas mãos gretadas / Para que não lhes escorregue o
cabo!” (id.)
Mas o povo
sempre teve consciência disso, o “Malhadinhas” era um dos espertos,
simbolizados por Rafael Bordalo Pinheiro, que definia a Justiça como um “papo
de encher” “que, à semelhança das jiboias, só dorme quando farta”.
Não há muitos anos ainda a minha mãe repetia a história dos seus tempos de
criança, que já referi, de uns animais e um moinho que se queixavam, em
expressão onomatopaica, da miséria sofrida com o ricaço miserável que os matava
à fome. O moinho, trabalhando vazio de grão, repetia ritmicamente: “Sempre
assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi…”
E foi desta
massa genética que emergiram os políticos portugueses, que Vasco Pulido Valente
historia no seu artigo “Confiança”, do “Público” (25 de Agosto), em
previsão avassaladoramente catastrófica causada pelo “buraco dos
“negócios” do Estado, que, pelos nossos 308 municípios, penetraram Portugal
inteiro, de Lisboa à mais remota vila de Trás-os-Montes”. O que nos leva a descrer de qualquer
governo, de qualquer partido que seja, e sobretudo dos que rastejam em
promessas de devoção democrática, propulsora de votos, sem estudo nem conhecimento
prévio dos meandros da economia que terão de enfrentar, caso lhes seja dado o
osso que procuram, reduzidos, cada vez mais a recorrer à violência dos métodos
de extorsão, despedimentos, exploração, empobrecimento sucessivo de uma
sociedade que governos anteriores tinham querido elevar ilicitamente, com meios
alheios para melhor justificarem os tais “buracos” das suas negociatas obscuras.
Mas os crimes que lá fora são punidos, aqui são bem protegidos, numa sociedade
cada vez mais escorregando na gritaria e na confusão do desnorteio, da falta de
equilíbrio, de rigor, e de seriedade. Qualquer professor hoje se queixa da progressiva
falta de compostura, desinteresse e desatenção dos alunos. Estamos, irremediavelmente
condenados. Porque dessa massa escolar sairão os futuros ineptos da nossa continuidade.
Sem rei nem roque. Leiamos o que diz Valente:
«Confiança»
«Anda
por aí gente preocupada, porque a redução das pensões aos reformados do
funcionalismo público pode reduzir e abalar a confiança do Estado. Isto não se
compreende. Até há muito pouco tempo o Estado só aparecia ao cidadão comum por
três razões: para lhe tirar dinheiro, para o meter na tropa ou, mais raramente,
para o prender. Nunca inspirou qualquer respeito e era universalmente
detestado. Durante a monarquia tradicional o rei ainda inspirava alguma
deferência, mas não os seus ministros, que os portugueses letrados consideravam
invariavelmente ineptos, corruptos, quando não pura e simplesmente servos da
Inglaterra ou da Espanha, ou seja, traidores sem atenuante ou sem desculpa.
A
opinião da classe média e da nobreza sempre os desprezou, mesmo se lhes pedia
empregos ou sentenças favoráveis nos tribunais do reino.
Com o
liberalismo as coisas pioraram. O rei já não encarnava o Estado e já não
oferecia sombra de protecção à turba tumultuária, civil e militar, que passava
efemeramente pelo governo ou pelo parlamento. O tema da essencial perversidade
do Estado acabou por se tornar um tema obrigatório da nossa literatura. Eça
contava que nos salões da “alta sociedade” (por exemplo, no salão da
Gouvarinho) não se recebiam políticos “porque as senhoras tinham nojo”. Esta
atitude não mudou durante a República e a Ditadura. Os criados de Salazar não
mereciam mais do que boas maneiras, que eles, como de costume, pagavam com
favores. Depois do “25 de Abril”, algumas pessoas de uma acentuada ingenuidade
pensaram que o Estado ia finalmente deixar de ser um “covil de ladrões”. Erro
crasso.
Os
jornais de hoje revelam, escândalo sobre escândalo, que na generalidade
envolvem o Estado ou antigos dirigentes do Estado. Do BPN ao desaparecimento
dos dossiers a pingadeira não pára. E previsivelmente não vai parar. O tal
buraco de que tanto se fala não é só um buraco financeiro, é também o buraco
dos “negócios” do Estado, que, pelos nossos 308 municípios, penetraram Portugal
inteiro, de Lisboa à mais remota vila de Trás-os-Montes”.
Há por
aí grandes cemitérios de escândalos à espera que a miséria e o desespero do
país se transforme em raiva e os desenterre. Os regimes morrem assim. Se a
população não conserva o mais leve vestígio de confiança na autoridade,
governar é impossível. E esse momento não está longe.»
Tudo isso
parece verdadeiro, a população não acredita, manipulada pelos que a
instrumentalizam. Este governo julgou que podia avançar pela via do pagamento
da dívida, e isso aquecia o coração daqueles para quem esse ponto era
fundamental para se poder continuar de cabeça erguida. Todos sabem que é assim,
mas convém deitar abaixo depressa. O “momento não está longe.” Virá
Seguro, com o seu discurso vazio, mas logo todos os outros se assanharão, como
é costume, se a Europa da nossa ajuda não resolver também hibernar, com as
inépcias previstas do novo governante. E assim vamos vivendo, na tribulação de
populações joguete dos rotativismos contínuos de governos sem consistência,
porque nós próprios não temos muita.
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