Um dia o Luís, meu filho mais novo, veio oferecer-me umas
fotocópias com a tradução do livro que estudara na disciplina de Inglês. Pelos
vistos gostara da obra, e achou que eu devia reformular os meus conceitos de
visão do mundo, que provavelmente achava estreitos, mais despegada dos valores
que para ele significavam o non plus ultra da realização de quem quer
que se preze, esses, os tais do “Sonho Americano” criador do self-made
man, proporcionando - ao menos na aparência – um bem-estar de abundância e
igualdade de oportunidades a quem se esforçasse por os ter. A fotocópia não foi
tentadora para uma leitura de cabeceira, mas prometi a mim mesma fazê-la em
tempos de melhor disponibilidade física. “O Grande Gatsby”, de F.
Scott Fitzgerald, publicado em tempos pela revista Visão tornou-se
veículo mais arrumado para leitura de café aprazível de fim de ano, respondendo
assim ao apelo do Luís.
Comecei por me admirar de uma escrita tão profusa em dados
e circunstâncias e filosofias de vida, para alunos do secundário de inglês, mas
já nos meus tempos do liceu eu achava que o inglês dos cursos de Germânicas era
uma disciplina mais arejada e moderna do que o Francês dos de Românicas,
mergulhados no encanto passadista dos escritores franceses clássicos.
É um livro que se impõe pela actualidade do mundo recriado,
um mundo de festas e prazeres, de dinheiro misteriosamente ganho por um ricaço Jay
Gatsby, que proporciona festas no seu palácio de sonho a parasitas que mal o
conheciam e dele murmuravam sobre os seus estudos e o seu passado e sobre a
proveniência do seu dinheiro.
Uma história contada por um jovem narrador participante –
Nick Carraway – de uma forma evasiva, um pouco descontraída, criando suspense,
com informações atiradas pelos vários participantes, homens e mulheres surgidos
ao acaso de recepções ou diversões, e sobretudo, no meio de certa simplicidade
de discurso, própria de um jovem escritor de trinta anos bem formado e curioso
de viver, de frases de extraordinário conceito, resultantes de um poderoso
sentido de reflexão e de humor.
E desta forma ziguezagueante - com analepses (ou
retrocessos temporais da acção, ao acaso das recordações), e prolepses ou
avanços cronológicos da mesma, em meio da narrativa cuja acção presente (de
1922), localizada em West Egg, na ilha próxima de Nova York, é recheada de
diálogos, informações e comentários de grande argúcia crítica - se vai
referindo – aos salpicos, inicialmente - a história desse misterioso Gatsby, que
aparece associado à vida de Nick, não só por ser vizinho deste, mas por terem
amigos comuns.
É uma história de suspense, uma história de amor, de uma
grande paixão e das loucuras a ela associadas: Por tanto amar Daisy, Gatsby construíra
um palácio próximo da casa do casal Daisy-Tom, com recepções constantes a fim
de a reconquistar. Era aquela, prima de Nick, rapariga rica, fútil e mimada, outrora
namorada de Gatsby, quando este era pobre e a convencera do contrário, agora
casada com um Tom Buchanan nobre, rico, arrogante e infiel, antigo amigo de
Nick. Gatsby, enriquecera em negócios ilícitos de contrabando (o que se vai insinuando
gradualmente, nas conversas, só se denunciando o facto, com acusações mútuas, na
cena crucial da acção – a disputa pela mulher amada, entre os dois rivais
Gatsby e o ciumento Tom. A paixão por Daisy levara o primeiro a aproximar-se de
NicK, seu vizinho, duma casa pobre, para que este servisse de intermediário
nesses amores, ao que Nick cedera, com a relutância própria de um carácter formado
na sensatez de princípios, e a simultânea atracção que produz sobre um jovem da
classe média, por muito amante de leituras que fosse, o frenesi do mundo
endiabrado da riqueza e da liberdade que esta concede.
Gatsby morrerá na sua piscina, com um tiro disparado pelo
grotesco marido de uma amante de Tom, que morrera pouco antes atropelada. Tom convencera
o pobre diabo de que fora Gatsby que lhe atropelara a mulher e assim aquele se
vingara, suicidando-se a seguir, com outro tiro. Ao funeral de Gatsby, apesar
das tentativas de Nick para um acompanhamento fúnebre condigno, só
compareceram, além dos criados, o sacerdote e Nick, o velho pai de Gatsby, com
a sua fé nas capacidades do filho. E uma outra figura caricata de “olhos de
coruja”, que chegou atrasada e que o narrador encontrara algum tempo antes admirando
os livros da biblioteca de Gatsby. Foi este que estranhou a falta dos parasitas
que “iam lá às centenas”, ao palácio de Gatsby. Daisy não mandara “nem
uma mensagem nem uma simples flor”.
Uma história de amor de um ser ingénuo, um “self-made
man” que chegara a frequentar Oxford para se aproximar de Daisy, que fora condecorado
da guerra, e enriquecera ilicitamente para reconquistar a amada, a quem Nick,
que o acompanhara no longo pesadelo após a disputa com Tom, com Gatsby
acreditando pateticamente que Daisy voltaria para ele, gritara, antes de se
retirar, finalmente senhor da verdade: “- São todos uns canalhas! Você
sozinho vale mais que todos eles juntos!”
“O Grande Gatsby”, um livro que, ao retratar uma
certa sociedade de libertinagem e de luta pelo enriquecimento, parece iniciar uma
nova época em que os amores, envoltos em ambição pela realização pessoal, longe
estão daqueles outros romances em que imperava o fatalismo das paixões, por
vezes contrariadas, e a nobreza de procedimento do herói era motivo dessas. Gatsby não é um exemplo de herói, mas de um
frágil anti-herói sem grandes escrúpulos, tal como os vários outros participantes,
mais simples e ingénuo, todavia, que todos eles, como o reconhecerá o revoltado
Nick.
Mas a sensação do efémero, da irremediável fuga do tempo
também perpassam no livro, provocando um vago sentimento de angústia: “Fazia
trinta anos. E diante de mim estendia-se a portentosa e ameaçadora estrada de
uma nova década. --- Trinta anos – a promessa de uma década de solidão, um rol
reduzido de celibatários como eu a conhecer, uma reserva de entusiasmo cada vez
mais pequena, o cabelo a rarear. … E assim continuámos a deslizar a caminho da
morte, pelo refrescante crepúsculo.”
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