“A maior poetisa portuguesa” era
o que se dizia, por graça, no tempo das tertuliazinhas de juventude a que
eventualmente assisti, sobre Bernardim Ribeiro, falando-se a seguir de António
Nobre, com a “Menina e Moça” como elo de ligação entre Nobre e Bernardim, no
tom confessional, no saudosismo das suas mensagens, como na introspecção, na
busca de espaços de comunhão com o infinito e no conceito de um mundo de determinismo
fatalista e tristeza pesando nas figuras da Menina e de Anto, que se descrevem,
numa plenitude de dor, a Menina e Moça como um “alter ego” feminil
bernardiniano, Nobre, talvez na consciência da brevidade da sua vida, que a
doença fragilizou, agudizando-lhe a ânsia de uma imortalidade precoce.
Eu sempre considerara Florbela
Espanca como a maior, na admiração pelo conceito e o trabalhado dos seus versos
de magia e de libertação do convencional, na originalidade das suas
reivindicações feministas do amor livre das peias sociais, e é claro que
contestava o que na brincadeira se dizia de Bernardim. Quanto a António Nobre,
a autocomiseração, o prantear narcísico em expressões de mágoa e tédio repetitivos,
tudo isso de uma sensibilidade de adolescente incompreendido e cônscio do seu
génio, indiferente às opiniões trocistas do vulgo ignaro, eram características
que me fascinavam, como, de resto, a todos os que o estudaram, sensíveis à
originalidade do seu discurso poético
Foi um deles, João Gaspar Simões,
que numa Conferência realizada no Ateneu Comercial do Porto e no Instituto
Francês em Lisboa, em Maio de 1939, pronunciou o seu discurso sobre António
Nobre (ilustrado com recitativos de D. Manuela Porto) reproduzido em
“Cadernos Culturais”, um excelente estudo, que tanto aponta as influências
sofridas de Byron, Garrett, Baudelaire, Poe na sensibilidade romântica ou no
culto do Eu, como mostra as divergências, pela originalidade e espontaneidade
deste, num “culto anormal de personalidade”. O dandismo, o narcisismo, o
refúgio na angústia metafísica, eis alguns outros motivos, além da influência
de Nobre sobre os contemporâneos, que, de forma clara, com citações
exemplificativas, o estudo contém.
O artigo de José Carlos Seabra
Pereira – “SÓ – um livro de projecto e destino”, saído no “Público” de domingo,
22/12/13, integrado na comemoração dos 500 anos da Biblioteca de Coimbra, como
um dos dezasseis estudos prévios, publicados aos domingos, de Primeiras Edições
Fac-similadas, dos livros publicados nas terças feiras seguintes, levou-me a
recordar, como introdução a esse belo texto, um poeta e um seu comentador que admiro.
O artigo do Doutor José Carlos
Seabra Pereira prima pelo requinte da sua exposição e pelo fornecimento de
dados circunstanciais, em torno da 1ª edição, e outros aspectos biográficos que
ignorava e que apetece fixar:
«Após
laboriosa revisão de provas (atestada por vários jogos guardados pelo autor) a
2 de Abril de 1892 é dada por concluída em Paris a impressão do livro
“SÓ” para o famoso editor de Verlaine, de Mallarmé e dos melhores discípulos
decadentistas e simbolistas . Léon Vanier, que indicava como seu “unique
représentant et dépositaire de SÓ pour le Portugal » o editor livreiro conimbricense F. França Amado.
No cânone esboçado já em 1891 pel’ “Os Nefelibatas”, anunciavam-se “As
Confissões de António Nobre”. O título vinha da primeira fase do poeta e do
investimento num mito pessoal (apresentação excêntrica, atitude byroniana,
olhos cismáticos, gosto da solidão e jogo dramático com o hipocorístico Anto,
ser “artificial e sincero ao mesmo tempo” que se diz num tom “de ausência e
remoto”). No Outono do mesmo ano, o Livro de Apontamentos de Anto ainda
hesitava entre vários “Títulos do livro”; e nesse tempo de Paris, em que à “doença
de Alma” sobrevêm os “carmes do exílio”, acaba por prevalecer o último: SÓ, estampado a toda a altura da capa
na invejável edição Vanier, ainda assim relativamente discreta em período literário
que deu valor relativo à apresentação insólita do livro, cuja materialidade
requintada se constituía no primeiro signo iniciático de mensagem estética para
os “raros apenas”. Apesar da tiragem limitada, a obra foi de imediato muito
difundida. O livro provocou sobretudo espanto e irritação, que logo se reflectiram
em sátiras e paródias. Entre os escritores das gerações precedentes apenas
Oliveira Martins reconheceu o “grande poeta” e a sua coerência literária. Em
contrapartida, o SÓ cedo contou com intensa campanha de
apoio por parte de jovens poetas e críticos, contagiados pelo entusiasmo do
dilecto amigo Alberto Oliveira, mentor do neogarrettismo; e ganhou lugar de
honra nas grandes críticas de 1892 consagradas ao movimento “novista” por
Trindade Coelho e Fialho de Almeida.
O SÓ foi e poderá ser lido como confissão
coloquial de um eu narcísico e pesaroso, na qual se subsumem egotismo e partilha
emocional, sentimentalidade cúmplice e acicate alusivo, candura patente e
furtiva ironia, terna infantilização e calculada majestade, predestinação
astral e sorte desastrosa, graça e martírio, desenraizamento pessoal e crise
epocal, saudade e profecia, diversão pitoresca e infiltração de modernidade(s).
Contudo, o SÓ não é um livro de desabafo espontâneo,
antes “Missal dum Torturado” construído com tal autenticidade poética de ficção
e dicção que – amarga ironia! – caberá à vida imitar a obra: a “via crucis”
do corpo prometido à morte, até 1892 apenas imaginada no SÓ, sairá ao caminho do autor…
Como a reelaborada 2ª edição (1898)
acentuará a partir de nova “Memória”, o SÓ atrai o leitor para uma variação
moderna da poética do desafogo (de matriz petrarquista e camoniana), que legitima
o egotismo, dignifica o estilo confidente e redimensiona a referência
circunstanciada ao “dasein” exemplar. Essa “bio-grafia” modelar de “Poeta maldito”,
predestinado para a grandeza incompreendida do génio artístico e para a vida de
desgraça sem remédio, move-se no duplo plano de crise pessoal e de decadência
nacional, de modo que o esse “livro mais triste que há em Portugal” com
seus assomos de grandeza profética, ganha contornos de ´”épica deceptiva
(no dizer autorizado de Paula Morão). Por alusões de mundivivência analógica,
pelo desígnio de inovação formal, pela estratégia de organização macrotextual,
enfim, pela consciência estética pós-baudelairiana que lhes subjaz, o SÓ é associável à dinâmica do Simbolismo,
com rasgos de antecipação modernista (v. g. a técnica da colagem, com ares
inocentes de associação evocativa ditada pela memória afectiva). Mas o discurso
catártico e mitogenésico do SÓ distingue-se sobretudo pela dúplice exemplaridade
decadentista e neo-romântica; cultiva tópicos de melancolia hamletiana e ironia
dândi, experiência de desengano e desencanto, pessimismo agónico e fatalismo
sinistro, irracionalismo maravilhoso e depressivo, tédio dissolvente e “spleen”
inquietante, sensibilidade mórbida e amor inconsumável, desgraça pessoal e
contexto ruinoso, imaginário nosológico e funéreo, ao mesmo tempo que
prodigaliza manifestações do Volksgeist lusíada e da consequente estética neo-romântica
na visão da mátria e da grei, de paisagens e gentes, tradições e costumes,
crenças e locuções populares, tal como no estilo de digressiva oralidade, de
acumulação exclamativa, de imagística religiosa, ou nos ritmos de cancioneiro e
romanceiro. O ideal amoroso hegemónico no SÓ e a figura de “Purinha” culminam a
ambivalência desses elementos numa original e irrepetível unidade de projecto e
destino.»
Purinha
O Espirito, a Nuvem,
a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p'ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d'uvas,
E negro como a capa das viuvas.................................
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p'ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d'uvas,
E negro como a capa das viuvas.................................
Mas em que sitio,
aonde? aonde? é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Chymera?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: «Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?»
E a minha fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá baixo, ao pé do mar...
Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!..................................................
Esta Torre, esta Lua, esta Chymera?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: «Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?»
E a minha fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá baixo, ao pé do mar...
Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!..................................................
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