quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Na primeira edição fac-similada do “SÓ”



A maior poetisa portuguesa” era o que se dizia, por graça, no tempo das tertuliazinhas de juventude a que eventualmente assisti, sobre Bernardim Ribeiro, falando-se a seguir de António Nobre, com a “Menina e Moça” como elo de ligação entre Nobre e Bernardim, no tom confessional, no saudosismo das suas mensagens, como na introspecção, na busca de espaços de comunhão com o infinito e no conceito de um mundo de determinismo fatalista e tristeza pesando nas figuras da Menina e de Anto, que se descrevem, numa plenitude de dor, a Menina e Moça como um “alter ego” feminil bernardiniano, Nobre, talvez na consciência da brevidade da sua vida, que a doença fragilizou, agudizando-lhe a ânsia de uma imortalidade precoce.
Eu sempre considerara Florbela Espanca como a maior, na admiração pelo conceito e o trabalhado dos seus versos de magia e de libertação do convencional, na originalidade das suas reivindicações feministas do amor livre das peias sociais, e é claro que contestava o que na brincadeira se dizia de Bernardim. Quanto a António Nobre, a autocomiseração, o prantear narcísico em expressões de mágoa e tédio repetitivos, tudo isso de uma sensibilidade de adolescente incompreendido e cônscio do seu génio, indiferente às opiniões trocistas do vulgo ignaro, eram características que me fascinavam, como, de resto, a todos os que o estudaram, sensíveis à originalidade do seu discurso poético
Foi um deles, João Gaspar Simões, que numa Conferência realizada no Ateneu Comercial do Porto e no Instituto Francês em Lisboa, em Maio de 1939, pronunciou o seu discurso sobre António Nobre (ilustrado com recitativos de D. Manuela Porto) reproduzido em “Cadernos Culturais”, um excelente estudo, que tanto aponta as influências sofridas de Byron, Garrett, Baudelaire, Poe na sensibilidade romântica ou no culto do Eu, como mostra as divergências, pela originalidade e espontaneidade deste, num “culto anormal de personalidade”. O dandismo, o narcisismo, o refúgio na angústia metafísica, eis alguns outros motivos, além da influência de Nobre sobre os contemporâneos, que, de forma clara, com citações exemplificativas, o estudo contém.
O artigo de José Carlos Seabra Pereira – “ – um livro de projecto e destino”, saído no “Público” de domingo, 22/12/13, integrado na comemoração dos 500 anos da Biblioteca de Coimbra, como um dos dezasseis estudos prévios, publicados aos domingos, de Primeiras Edições Fac-similadas, dos livros publicados nas terças feiras seguintes, levou-me a recordar, como introdução a esse belo texto, um poeta e um seu comentador que admiro.
O artigo do Doutor José Carlos Seabra Pereira prima pelo requinte da sua exposição e pelo fornecimento de dados circunstanciais, em torno da 1ª edição, e outros aspectos biográficos que ignorava e que apetece fixar:

«Após laboriosa revisão de provas (atestada por vários jogos guardados pelo autor) a 2 de Abril de 1892 é dada por concluída em Paris a impressão do livro “SÓ” para o famoso editor de Verlaine, de Mallarmé e dos melhores discípulos decadentistas e simbolistas . Léon Vanier, que indicava como seu “unique représentant et dépositaire de pour le Portugal » o editor livreiro conimbricense F. França Amado. No cânone esboçado já em 1891 pel’ “Os Nefelibatas”, anunciavam-se “As Confissões de António Nobre”. O título vinha da primeira fase do poeta e do investimento num mito pessoal (apresentação excêntrica, atitude byroniana, olhos cismáticos, gosto da solidão e jogo dramático com o hipocorístico Anto, ser “artificial e sincero ao mesmo tempo” que se diz num tom “de ausência e remoto”). No Outono do mesmo ano, o Livro de Apontamentos de Anto ainda hesitava entre vários “Títulos do livro”; e nesse tempo de Paris, em que à “doença de Alma” sobrevêm os “carmes do exílio”, acaba por prevalecer o último: , estampado a toda a altura da capa na invejável edição Vanier, ainda assim relativamente discreta em período literário que deu valor relativo à apresentação insólita do livro, cuja materialidade requintada se constituía no primeiro signo iniciático de mensagem estética para os “raros apenas”. Apesar da tiragem limitada, a obra foi de imediato muito difundida. O livro provocou sobretudo espanto e irritação, que logo se reflectiram em sátiras e paródias. Entre os escritores das gerações precedentes apenas Oliveira Martins reconheceu o “grande poeta” e a sua coerência literária. Em contrapartida, o cedo contou com intensa campanha de apoio por parte de jovens poetas e críticos, contagiados pelo entusiasmo do dilecto amigo Alberto Oliveira, mentor do neogarrettismo; e ganhou lugar de honra nas grandes críticas de 1892 consagradas ao movimento “novista” por Trindade Coelho e Fialho de Almeida.
O foi e poderá ser lido como confissão coloquial de um eu narcísico e pesaroso, na qual se subsumem egotismo e partilha emocional, sentimentalidade cúmplice e acicate alusivo, candura patente e furtiva ironia, terna infantilização e calculada majestade, predestinação astral e sorte desastrosa, graça e martírio, desenraizamento pessoal e crise epocal, saudade e profecia, diversão pitoresca e infiltração de modernidade(s). Contudo, o não é um livro de desabafo espontâneo, antes “Missal dum Torturado” construído com tal autenticidade poética de ficção e dicção que – amarga ironia! – caberá à vida imitar a obra: a “via crucis” do corpo prometido à morte, até 1892 apenas imaginada no SÓ, sairá ao caminho do autor
Como a reelaborada 2ª edição (1898) acentuará a partir de nova “Memória”, o atrai o leitor para uma variação moderna da poética do desafogo (de matriz petrarquista e camoniana), que legitima o egotismo, dignifica o estilo confidente e redimensiona a referência circunstanciada ao “dasein” exemplar. Essa “bio-grafia” modelar de “Poeta maldito”, predestinado para a grandeza incompreendida do génio artístico e para a vida de desgraça sem remédio, move-se no duplo plano de crise pessoal e de decadência nacional, de modo que o esse “livro mais triste que há em Portugal” com seus assomos de grandeza profética, ganha contornos de ´”épica deceptiva (no dizer autorizado de Paula Morão). Por alusões de mundivivência analógica, pelo desígnio de inovação formal, pela estratégia de organização macrotextual, enfim, pela consciência estética pós-baudelairiana que lhes subjaz, o é associável à dinâmica do Simbolismo, com rasgos de antecipação modernista (v. g. a técnica da colagem, com ares inocentes de associação evocativa ditada pela memória afectiva). Mas o discurso catártico e mitogenésico do distingue-se sobretudo pela dúplice exemplaridade decadentista e neo-romântica; cultiva tópicos de melancolia hamletiana e ironia dândi, experiência de desengano e desencanto, pessimismo agónico e fatalismo sinistro, irracionalismo maravilhoso e depressivo, tédio dissolvente e “spleen” inquietante, sensibilidade mórbida e amor inconsumável, desgraça pessoal e contexto ruinoso, imaginário nosológico e funéreo, ao mesmo tempo que prodigaliza manifestações do Volksgeist lusíada e da consequente estética neo-romântica na visão da mátria e da grei, de paisagens e gentes, tradições e costumes, crenças e locuções populares, tal como no estilo de digressiva oralidade, de acumulação exclamativa, de imagística religiosa, ou nos ritmos de cancioneiro e romanceiro. O ideal amoroso hegemónico no e a figura de “Purinha” culminam a ambivalência desses elementos numa original e irrepetível unidade de projecto e destino.»

Purinha
O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p'ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d'uvas,
E negro como a capa das viuvas.................................
Mas em que sitio, aonde? aonde? é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Chymera?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: «Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?»
E a minha fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá baixo, ao pé do mar...

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!..................................................

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