sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Uma Escola verdadeiramente cultural precisa-se


A mísera ambição do “eduquês” eis o artigo com que no último dia de 2013 Guilherme Valente, editor da Gradiva, vem terçar armas por Nuno Crato nas suas pretensões de dinamizar uma política educativa que contribua para melhorar o nível da docência, na exigência de competências que paulatinamente irão desaparecendo, a continuar-se numa trajectória de empobrecimento relativamente às competências requeridas dos estudantes, que serão futuros professores (ou outros quaisquer profissionais da cultura).
O longo artigo de Guilherme Valente começa por contrariar os entusiasmos com que Maria Emília Brederone (MED) elogia, em artigo do Público de 24/12, o sucesso da nossa educação nos últimos 35 anos, atida aos resultados de estudantes portugueses nos testes PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study).e TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study), de 2011, comprovativos da qualidade dos seus professores. Guilherme Valente minimiza esses resultados, com os considerandos de que os testes foram aplicados a alunos de 10 anos, a terminar o primeiro ciclo, além de que muito inferiores aos resultados de alunos dos países claramente desenvolvidos. Para além, disso refere que os testes PISA, aplicados a jovens com quinze anos, quando é mais relevante a influência da escola nos alunos, “os resultados foram sempre muito fracos até 2009, só então se verificando o primeiro progresso visível, depois de o modelo há tantos anos imposto começar a ser contrariado, ainda que timidamente.”

Segue-se a informação sobre as medidas que visaram destronar o “eduquês” exigido “pelos “ultras” das “ciências” de educação: “Medidas do tempo de David Justino”, nomeadamente reintrodução de exames e preocupação com o ensino profissional. Orientação reforçada por Sócrates / Maria de Lurdes Rodrigues: afirmação veemente do valor dos exames; mudança no modelo de direcção das escolas; assumida reabilitação da ideia do ensino profissional, permissão para as escolas criarem cursos profissionaisferindo, assim, um dos dogmas mais estúpidos e cruéis do “eduquês” (de que logo resultou uma localizada descida no abandono escolar); reciclagem, embora mal realizada, de professores de Matemática – “anunciando” o que Crato, seguramente, quer fazer”…

“Registe-se, ainda, a determinação de MLR em enfrentar politicamente os que nunca deixaram governar qualquer ministro. Que hoje usam como “carne para canhão” muitos professores, presas fáceis depois de “qualificados” pelas ESE (também pedagogicamente, como se vê).

ESE e mesmo formação de docentes nas Universidades de que Crato deveria ter já promovido a reformulação. Tal como a selecção dos candidatos a esses cursos (na Finlândia é muito rigorosa, com resultados à vista), e a inadiável reciclagem de docentes no activo.

Os 4, 5, 6 items finais do artigo de Guilherme Valente merecem todo o destaque, ao pôr o dedo na ferida da nossa insuficiência educativa, que mereceriam o respeito e a atenção dos que têm a seu cargo a tarefa de ensinar, em vez de se deixarem ultrajar, em cedências coniventes e interesseiras, pelas vozes ásperas de inanidade mental dos potentados sindicais que só um país votado ao desleixo permitiu que tomasse tanta relevância destruidora de quaisquer tentativas de melhoria no panorama da nossa incultura:

«4. O progresso dos testes em causa não traduz, pois, infelizmente, a realidade da grande maioria das escolas. O indicador expressivo, fiável, da qualidade da educação, é afinal, o estado em que Portugal se encontra, em todos os registos da realidade – participação cívica, política, economia, cultura, desenvolvimento, independência nacional em suma. Atraso agravado dramaticamente pelos anos devastadores do “eduquês”.

«5- Dou apenas o exemplo determinante da leitura. Transcrevo de Valter Hugo Mãe o testemunho insuspeito que cita: «Chocou-me ouvir Alice Vieira dizer que os best-sellers dos anos 80 que a levavam às escolas para falar com miúdos do 6º, agora são os mesmos que a levam para falar com miúdos do 12º ano. Diz ela que hoje, os livros que concebeu para miúdos de 13 anos, estão a ser lidos e trabalhados por miúdos de 17 no âmbito das escolas. “O que vou fazer? Pelo menos que os apanhemos aos 17, senão estes livros para 13 anos vão ser mais tarde ou mais cedo trabalhados na universidade ou em doutoramentos e eu vou ser chamada para falar com adultos marmanjões que deviam ter entendido isto aos 13 anos.» A observação de Alice Vieira demonstra que temos estado, desde há muito, a recuar, que os nossos jovens aprendem cada vez mais tarde o que deviam aprender muito mais cedo.

«6- Do artigo de MEB fica-me uma perplexidade: pensará MEB, realmente, ser possível ensinar-se o valor da leitura, suscitar o seu hábito, a sua paixão, ou mesmo, tão somente, ensinar com eficácia e alegria uma criança a ler, sem se ter consciência desse valor, sem a experiência apaixonante e transformadora do convívio com os grandes textos, Eça, Camilo e Saramago, como ironizando, refere? Poderá alguém ser professor sem uma cultura geral básica? O mesmo se verifica com a Química ou a Matemática – com a referência à trigonometria MEB tenta caricaturar a exigência que o actual ministro quer promover. Mas há mesmo muitos professores de Matemática incapazes de chegar ao resultado 8X7, para não falar nos mestres e doutores que não sabem alinhavar duas ideias, nem sabem o mais elementar da história de Portugal…

«Mas essa ideia errada , geradora de ignorância e desumanização, está, afinal, no âmago da genética do “eduquês”: desvalorização do conhecimento, horror ao mérito, ideia social e humanamente aviltante, de que a ignorância, mesmo do mais básico, ou a idiotice, podem ensinar, valorizar, criar, realizar seja o que for. Não sou capaz de atribuir tal ideia a MEB.

«Quanto ao que Nuno Crato, cercado, tem sido capaz de fazer, ver-se-á, se houver tempo, o efeito e haverei de me pronunciar. Devo isso aos muitos Professores com quem partilhei angústia, indignação e esperança.»

Quando La Fontaine na sua fábula “La Mort et le Bûcheron” aponta as desgraças do Lenhador- excesso de trabalho, velhice, impostos, doença, desencanto - que o levam a chamar a Morte, verifica-se que, tal como cá, também o povo era explorado, ficando-nos o retrato dessa exploração, na pena dos escritores e dos filósofos que pretenderam mudar a situação segundo a trilogia da liberdade, igualdade e fraternidade. Já Gil Vicente se indignara, um século antes, com as mazelas do “Lavrador”, em formidável libelo acusatório, no seu “Auto da Barca do Purgatório”: “Nós somos vida das gentes / e morte das nossas vidas; / a tiranos – pacientes, / que a unhas e a dentes / nos têm as almas roídas. / Para que é parouvelar? / que queira ser pecador / o lavrador; / não tem tempo nem lugar / nem somente d’alimpar / as gotas do seu suor.”

Mas enquanto em França e nos demais países europeus o povo se instruiu e libertou das amarras da escravidão, que levam ao trabalho, à alegria de viver, à realização pelo progresso, em Portugal tal nunca aconteceu, acusado o estudo do seu carácter elitista, mantendo o povo a sua condição de inferioridade intelectual, a própria nobreza muitas vezes ignara e calaceira, como, curiosamente, aponta Júlio Dinis – excluída a galeria caricatural queirosiana das figuras com responsabilidades culturais e reduzidas a atitudes de empáfia retórica e oca.

É num jantar oferecido pelos “Fidalgos da Casa Mourisca” em honra da sua prima, a baronesa Gabriela, que se faz o retrato dessa sociedade da aristocracia provinciana do século XIX:

 “Os chefes de família, passeando na sala, ou formando grupos nos vãos das janelas, lidavam na sua tarefa de vinte anos: a de demonstrar que o que perdera a causa realista fora a traição e o suborno; e arvorados em profetas, entoavam trenos sob a iminente dissolução social, parafraseando os artigos de fundo da “Nação” e do “Direito”.

A abolição dos morgados e vínculos, definitivamente decretada poucos anos antes, fornecia forte alimento para aquelas jeremiadas; os dissipadores fidalgos, que tinham arriscado o futuro e bem-estar dos filhos, desbaratando-lhes a legítima com a sua imprevidência e prodigalidade, lançavam, agora à conta da lei o que era a consequência lógica da sua má administração.

As raparigas falavam umas com as outras de vestidos e de enfeites e dispunham de quando em quando de algum olhar mais terno para qualquer dos primos presentes em cujo número se continham os namorados de cada uma ou de mais do que uma. Estas representantes das poéticas e vaporosas castelãs, que na meia-idade premiavam os campeadores da liça, os guerreiros na volta dos combates, e os menestréis e pajens que lhes endereçavam conceituosos galanteios nos estrados das salas, tinham perdido muito das poesia do tipo primitivo. Vivendo numa época em que não havia campeões, guerreiros, nem trovadores para premiar, limitavam-se as meninas a aceitar a corte dos primos, também muito pouco parecidos com os seus cavaleirosos avós, e com a maior candura, que pode medrar na província, roubavam umas às outras os noivos e os namorados.

Algumas havia ali mais revolucionárias, que tinham conseguido introduzir o piano em casa e com ele as músicas da moda, obtendo uma ou outra vez dos pais a concessão de dar uma partida, onde a nata da nobreza provinciana dançava os “Lanceiros” como qualquer sociedade de artistas.

Os rapazes, reunidos no terraço, fumavam e atiravam a revólver aos troncos das árvores ou às avezitas que poisavam nos ramos. A maioria, ou morgados ou filhos segundos, era de ignorantes e vadios; se alguns haviam descido até ao ponto de irem a Coimbra fazer à ciência a honra de a estudar, poucos desses mostravam as habilitações adquiridas, exercendo qualquer mister social. Seria dobrar o desdouro. Cometida a fraqueza de sentar-se nos bancos das aulas ao lado dos filhos dos comerciantes e lavradores, devia-se ao menos seguir o exemplo do mano bacharel do Cruzeiro, o qual evitara a circunstância agravante de servir depois para algumas coisa.»

As sociedades mudam, mas os genes de cada povo manifestam iguais tendências ao longo dos tempos. Entre nós, adeptos da mândria, nunca seria possível um programa de “Questions pour un champion”, estimulador de curiosidades e competências culturais e ajudando à formação escolar e social, um programa diário, com questões de abertura progressiva para a descodificação, que tanto convergem no mundo adulto, nacional e estrangeiro, como se dirigem às camadas escolares, de ensino médio e superior, concorrendo e fazendo-se acompanhar por colegas, familiares e professores, favorecidos por excelentes prémios culturais ou de diversão.

Não. Primamos por medíocres dogmas facilitadores e destruidores de uma condição humana de racionalidade, substituindo-os por sentimentos de grande mesquinhez moral. Releiamos Guilherme Valente, e indignemo-nos, mesmo que pensemos que muitos escapam ao duro retrato:

«Mas essa ideia errada , geradora de ignorância e desumanização, está, afinal, no âmago da genética do “eduquês”: desvalorização do conhecimento, horror ao mérito, ideia social e humanamente aviltante, de que a ignorância, mesmo do mais básico, ou a idiotice, podem ensinar, valorizar, criar, realizar seja o que for.

 

 

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