“A
mísera ambição do “eduquês” eis o artigo com que no último dia de 2013 Guilherme
Valente, editor da Gradiva, vem terçar armas por Nuno Crato nas suas
pretensões de dinamizar uma política educativa que contribua para melhorar o
nível da docência, na exigência de competências que paulatinamente irão
desaparecendo, a continuar-se numa trajectória de empobrecimento relativamente
às competências requeridas dos estudantes, que serão futuros professores (ou
outros quaisquer profissionais da cultura).
O
longo artigo de Guilherme Valente começa por contrariar os entusiasmos com que Maria
Emília Brederone (MED) elogia, em artigo do Público de 24/12, o sucesso
da nossa educação nos últimos 35 anos, atida aos resultados de estudantes
portugueses nos testes PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study).e
TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study),
de 2011, comprovativos da qualidade dos seus professores. Guilherme Valente
minimiza esses resultados, com os considerandos de que os testes foram
aplicados a alunos de 10 anos, a terminar o primeiro ciclo, além de que muito
inferiores aos resultados de alunos dos países claramente desenvolvidos. Para
além, disso refere que os testes PISA, aplicados a jovens com quinze anos,
quando é mais relevante a influência da escola nos alunos, “os resultados
foram sempre muito fracos até 2009, só então se verificando o primeiro
progresso visível, depois de o modelo há tantos anos imposto começar a ser
contrariado, ainda que timidamente.”
Segue-se
a informação sobre as medidas que visaram destronar o “eduquês” exigido “pelos
“ultras” das “ciências” de educação” : “Medidas do tempo
de David Justino”, nomeadamente reintrodução de exames e preocupação
com o ensino profissional. Orientação reforçada por Sócrates / Maria de
Lurdes Rodrigues: afirmação veemente do valor dos exames; mudança no
modelo de direcção das escolas; assumida reabilitação da ideia do ensino
profissional, permissão para as escolas criarem cursos profissionais – ferindo,
assim, um dos dogmas mais estúpidos e cruéis do “eduquês” (de que logo
resultou uma localizada descida no abandono escolar); reciclagem, embora mal
realizada, de professores de Matemática – “anunciando” o que Crato,
seguramente, quer fazer”…
“Registe-se,
ainda, a determinação de MLR em enfrentar politicamente os que nunca deixaram
governar qualquer ministro. Que hoje usam como “carne para canhão” muitos
professores, presas fáceis depois de “qualificados” pelas ESE (também
pedagogicamente, como se vê).
ESE
e mesmo formação de docentes nas Universidades de que Crato deveria ter já
promovido a reformulação. Tal como a selecção dos candidatos a esses cursos (na
Finlândia é muito rigorosa, com resultados à vista), e a inadiável reciclagem
de docentes no activo.
Os 4,
5, 6 items finais do artigo de Guilherme Valente merecem todo o destaque,
ao pôr o dedo na ferida da nossa insuficiência educativa, que mereceriam o
respeito e a atenção dos que têm a seu cargo a tarefa de ensinar, em vez de se
deixarem ultrajar, em cedências coniventes e interesseiras, pelas vozes ásperas
de inanidade mental dos potentados sindicais que só um país votado ao desleixo
permitiu que tomasse tanta relevância destruidora de quaisquer tentativas de melhoria
no panorama da nossa incultura:
«4.
O progresso dos testes em causa não traduz, pois, infelizmente, a realidade
da grande maioria das escolas. O indicador expressivo, fiável, da qualidade da educação,
é afinal, o estado em que Portugal se encontra, em todos os registos da
realidade – participação cívica, política, economia, cultura,
desenvolvimento, independência nacional em suma. Atraso agravado dramaticamente
pelos anos devastadores do “eduquês”.
«5-
Dou apenas o exemplo determinante da leitura. Transcrevo de Valter Hugo
Mãe o testemunho insuspeito que cita: «Chocou-me ouvir Alice Vieira dizer
que os best-sellers dos anos 80 que a levavam às escolas para falar com miúdos
do 6º, agora são os mesmos que a levam para falar com miúdos do 12º ano. Diz
ela que hoje, os livros que concebeu para miúdos de 13 anos, estão a ser lidos
e trabalhados por miúdos de 17 no âmbito das escolas. “O que vou fazer?
Pelo menos que os apanhemos aos 17, senão estes livros para 13 anos vão ser
mais tarde ou mais cedo trabalhados na universidade ou em doutoramentos e eu
vou ser chamada para falar com adultos marmanjões que deviam ter entendido isto
aos 13 anos.» A observação de Alice Vieira demonstra que temos estado, desde
há muito, a recuar, que os nossos jovens aprendem cada vez mais tarde o que
deviam aprender muito mais cedo.
«6-
Do artigo de MEB fica-me uma perplexidade: pensará MEB, realmente,
ser possível ensinar-se o valor da leitura, suscitar o seu hábito, a sua paixão,
ou mesmo, tão somente, ensinar com eficácia e alegria uma criança a ler, sem se
ter consciência desse valor, sem a experiência apaixonante e transformadora do
convívio com os grandes textos, Eça, Camilo e Saramago, como ironizando, refere?
Poderá alguém ser professor sem uma cultura geral básica? O mesmo se verifica
com a Química ou a Matemática – com a referência à trigonometria MEB tenta
caricaturar a exigência que o actual ministro quer promover. Mas há
mesmo muitos professores de Matemática incapazes de chegar ao resultado 8X7,
para não falar nos mestres e doutores que não sabem alinhavar duas ideias, nem
sabem o mais elementar da história de Portugal…
«Mas
essa ideia errada , geradora de ignorância e desumanização, está, afinal, no
âmago da genética do “eduquês”: desvalorização do conhecimento, horror ao
mérito, ideia social e humanamente aviltante, de que a ignorância, mesmo do
mais básico, ou a idiotice, podem ensinar, valorizar, criar, realizar seja o
que for. Não sou capaz de atribuir tal ideia a MEB.
«Quanto
ao que Nuno Crato, cercado, tem sido capaz de fazer, ver-se-á, se houver tempo,
o efeito e haverei de me pronunciar. Devo isso aos muitos Professores com quem
partilhei angústia, indignação e esperança.»
Quando
La Fontaine na sua fábula “La Mort et le Bûcheron” aponta as desgraças
do Lenhador- excesso de trabalho, velhice, impostos, doença, desencanto - que o
levam a chamar a Morte, verifica-se que, tal como cá, também o povo era
explorado, ficando-nos o retrato dessa exploração, na pena dos escritores e dos
filósofos que pretenderam mudar a situação segundo a trilogia da liberdade, igualdade
e fraternidade. Já Gil Vicente se indignara, um século antes, com as mazelas do
“Lavrador”, em formidável libelo acusatório, no seu “Auto da Barca do
Purgatório”: “Nós somos vida das gentes / e morte das nossas vidas; / a
tiranos – pacientes, / que a unhas e a dentes / nos têm as almas roídas. / Para
que é parouvelar? / que queira ser pecador / o lavrador; / não tem tempo nem
lugar / nem somente d’alimpar / as gotas do seu suor.”
Mas
enquanto em França e nos demais países europeus o povo se instruiu e libertou
das amarras da escravidão, que levam ao trabalho, à alegria de viver, à
realização pelo progresso, em Portugal tal nunca aconteceu, acusado o estudo do
seu carácter elitista, mantendo o povo a sua condição de inferioridade
intelectual, a própria nobreza muitas vezes ignara e calaceira, como, curiosamente,
aponta Júlio Dinis – excluída a galeria caricatural queirosiana das figuras com
responsabilidades culturais e reduzidas a atitudes de empáfia retórica e oca.
É
num jantar oferecido pelos “Fidalgos da Casa Mourisca” em honra da sua
prima, a baronesa Gabriela, que se faz o retrato dessa sociedade da aristocracia
provinciana do século XIX:
“Os chefes de família, passeando na sala, ou
formando grupos nos vãos das janelas, lidavam na sua tarefa de vinte anos: a de
demonstrar que o que perdera a causa realista fora a traição e o suborno; e
arvorados em profetas, entoavam trenos sob a iminente dissolução social, parafraseando
os artigos de fundo da “Nação” e do “Direito”.
A
abolição dos morgados e vínculos, definitivamente decretada poucos anos antes,
fornecia forte alimento para aquelas jeremiadas; os dissipadores fidalgos, que
tinham arriscado o futuro e bem-estar dos filhos, desbaratando-lhes a legítima
com a sua imprevidência e prodigalidade, lançavam, agora à conta da lei o que
era a consequência lógica da sua má administração.
As
raparigas falavam umas com as outras de vestidos e de enfeites e dispunham de
quando em quando de algum olhar mais terno para qualquer dos primos presentes
em cujo número se continham os namorados de cada uma ou de mais do que uma.
Estas representantes das poéticas e vaporosas castelãs, que na meia-idade
premiavam os campeadores da liça, os guerreiros na volta dos combates, e os
menestréis e pajens que lhes endereçavam conceituosos galanteios nos estrados
das salas, tinham perdido muito das poesia do tipo primitivo. Vivendo numa
época em que não havia campeões, guerreiros, nem trovadores para premiar,
limitavam-se as meninas a aceitar a corte dos primos, também muito pouco
parecidos com os seus cavaleirosos avós, e com a maior candura, que pode medrar
na província, roubavam umas às outras os noivos e os namorados.
Algumas
havia ali mais revolucionárias, que tinham conseguido introduzir o piano em
casa e com ele as músicas da moda, obtendo uma ou outra vez dos pais a
concessão de dar uma partida, onde a nata da nobreza provinciana dançava os “Lanceiros”
como qualquer sociedade de artistas.
Os
rapazes, reunidos no terraço, fumavam e atiravam a revólver aos troncos das
árvores ou às avezitas que poisavam nos ramos. A maioria, ou morgados ou filhos
segundos, era de ignorantes e vadios; se alguns haviam descido até ao ponto de
irem a Coimbra fazer à ciência a honra de a estudar, poucos desses mostravam as
habilitações adquiridas, exercendo qualquer mister social. Seria dobrar o
desdouro. Cometida a fraqueza de sentar-se nos bancos das aulas ao lado dos filhos
dos comerciantes e lavradores, devia-se ao menos seguir o exemplo do mano
bacharel do Cruzeiro, o qual evitara a circunstância agravante de servir depois
para algumas coisa.»
As
sociedades mudam, mas os genes de cada povo manifestam iguais tendências ao
longo dos tempos. Entre nós, adeptos da mândria, nunca seria possível um
programa de “Questions pour un champion”, estimulador de curiosidades e
competências culturais e ajudando à formação escolar e social, um programa
diário, com questões de abertura progressiva para a descodificação, que tanto
convergem no mundo adulto, nacional e estrangeiro, como se dirigem às camadas
escolares, de ensino médio e superior, concorrendo e fazendo-se acompanhar por
colegas, familiares e professores, favorecidos por excelentes prémios culturais
ou de diversão.
Não.
Primamos por medíocres dogmas facilitadores e destruidores de uma condição
humana de racionalidade, substituindo-os por sentimentos de grande mesquinhez
moral. Releiamos Guilherme Valente, e indignemo-nos, mesmo que pensemos que
muitos escapam ao duro retrato:
«Mas
essa ideia errada , geradora de ignorância e desumanização, está, afinal, no
âmago da genética do “eduquês”: desvalorização do conhecimento, horror ao
mérito, ideia social e humanamente aviltante, de que a ignorância, mesmo do
mais básico, ou a idiotice, podem ensinar, valorizar, criar, realizar seja o
que for.
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