Quando
um dia se fizer a história deste país abjectamente curvado, nas vascas da sua
agonia, aos pés do país onde outrora expandiu a sua língua, e onde agora
expande o servilismo de a querer imitar graficamente para seu próprio uso,
retirando-lhe a dignidade da sua formação com a mesma facilidade com que retira
a estabilidade económica dos seus cidadãos, sobressairão sempre, julgo eu, as
vozes e os escritos – mais estes do que aquelas – de quem quis lutar e perdeu,
para comprazimento dos governantes nas suas tramoias rocambolescas de angariar
projecção, pontapeando a língua como trapo sujo para a sarjeta das coisas
desprezíveis.
O
último artigo que leio é de uma das entidades marcantes da nossa
intelectualidade nacional, e resume bem a problemática em torno de uma medida
vilipendiosa, imaginando - (e isso nos conforta, em expectativa positiva) - que
o seu “peso intelectual” poderá ter algum peso desviante de um acto consumado e
que nenhum governante, por muito que se afirme amante da sua pátria, se propõe
desfazer. Para isso, José Pacheco Pereira – que é dele o texto, do
“Público” de 18/1 - deveria ter acordado mais cedo, antes da adopção por
dicionaristas e gramáticos e mais literatura, do Acordo decretado. Mas o certo
é que outros opositores ao A.O. o fizeram desde o início, e o resultado
para evitar o desfecho – mesmo que outros países da lusofonia não tenham
assinado o A.O. - não foi nenhum. Não somos povo para respeitar os
cidadãos, a pátria, a língua. Dos cidadãos só pretendemos o voto, da pátria, o
solo para habitar e curtir o seu sol, da língua, o suficiente para gritar
anseios, sem exigência ortográfica.
Não,
o caçador não virá salvar a Menina do Capuchinho Vermelho nem a sua Avozinha,
da boca do Lobo Feroz. As recuperações com que o “caçador” está
entretido absorvem-lhe, na totalidade, o sentido da decência, apesar de, antes
do seu cargo governativo, ter afirmado a sua contestação ao dito acordo, logo esquecido
dessa repugnância pré-eleitoral, após a ocupação do cargo – o que, de resto,
jamais mereceu a atenção nem da assembleia nem dos partidos seus componentes,
assunto virado definitivamente tabu, longe das preocupações reivindicativas dos
assistentes parlamentares, porta-vozes do seu público exclusivamente insatisfeito
com o desaforo económico recaído sobre as suas anteriores prerrogativas. «O
mais espantoso é que muitos dos que atacaram o “eduquês” imponham este português
pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem
sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar.», afirmou
José Pacheco Pereira
cujo texto é grande e definitivo no teor da análise:
«ACORDO ORTOGRÁFICO: acabar já com
este erro antes que fique muito caro»:
«A
única força que joga a favor do acordo é a inércia que mantém as coisas como
estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.
«O
acordo ortográfico é uma decisão política. Não é uma decisão técnica sobre a
melhor forma de escrever português, não é uma adaptação da língua escrita à
língua falada, não é uma melhoria que alguém exigisse do português escrito, não
é um instrumento de cultura e criação.
«É
um acto político falhado na área da política externa, cujas
consequências serão gravosas principalmente para Portugal e para a sua
identidade, como casa-mãe da língua portuguesa. Porque o que mostra a história
das vicissitudes de um acordo que ninguém deseja, fora os governantes
portugueses, é que vamos ficar sozinhos a arcar com as consequências dele.
«O
acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância, da destruição da
memória e da história, de que a ortografia é um elemento fundamental,
a que assistimos todos os dias. E como os nossos governantes, salvo raras
excepções, pensam em inglês “economês”, detestam as humanidades, e gostam de
modas simples e de modernices, estão bem como estão e deixam as coisas andar,
sem saber nem convicção.
«O
mais espantoso é que muitos dos que atacaram o “eduquês” imponham este português
pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem
sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar. Ninguém
que saiba escrever em português o quer usar, e é por isso que quase todos os
escritores de relevo da língua portuguesa, sejam nacionais, brasileiros,
angolanos ou moçambicanos, e muitas das principais personalidades que têm
intervenção pública por via da escrita, se recusam a usá-lo. As notas de pé de
página de jornais explicando que, “por vontade do autor” não se aplicam ao seu
texto as regras da nova ortografia, são um bom atestado de como a escrita “viva”
se recusa a usar o acordo. E escritores, pensadores, cronistas jornalistas
e outros recusam-no, com uma veemência na negação que devia obrigar a pensar
e reconsiderar.
«Se
voltarmos ao lugar comum em que se tornou a frase pessoana de que a “minha
pátria é a língua portuguesa”, o acordo é um acto antipatriótico, de
consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus
proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um
dos poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do
pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.
«Aos
políticos que decidiram implementá-lo à força e “obrigar” tudo e todos ao
acordo, de Santana Lopes a Cavaco Silva, de Sócrates a Passos Coelho, e aos
linguistas e professores que os assessoraram, comportando-se como
tecnocratas – algo que também se pode ter do lado das humanidades, normalmente
com uma militância mais agressiva até porque menos “técnicas” são as decisões –
há que lembrar a frase de Weber que sempre defendi como devendo ser inscrita a
fogo nas cabeças de todos os políticos: a maioria das suas acções tem o
resultado exactamente oposto às intenções. O acordo ortográfico é um excelente
exemplo, morto pelo ruído do mundo. O acordo ortográfico nas suas intenções
proclamadas de servir para criar uma norma do português escrito, de Brasília a
Díli, passando por Lisboa pelo caminho, acabou por se tornar irritante nas
relações com a lusofonia. Suscitou uma reacção ao paternalismo de querer obrigar a escrita
desses países a uma norma decidida por alguns linguistas e professores de
Lisboa e Coimbra. O problema é que sobra para nós, os aplicantes solitários
da ortografia do acordo. O acordo, cuja validade na ordem jurídica nacional é
contestável, que nenhum outro país aprovou e vários explicitamente
rejeitaram, só à força vai poder ser aplicado. A notícia recente de
que nas provas – que acabaram por não se realizar – para os professores
contratados, um dos elementos de avaliação era não cometerem erros de
ortografia segundo a norma do acordo mostra como ele só pode ser imposto por
Diktat, como suprema prova de uma engenharia política que só o facto de não
se querer dar o braço a torcer explica não ser mudado.
«Porém,
começa a haver um outro problema: os custos de insistirem no acordo. A
inércia é cara, e no caso do acordo todos os dias fica mais cara. A
ideia dos seus defensores é criar um facto consumado o mais depressa possível.
É esta a única força que joga a favor do acordo, a inércia que mantém as
coisas como estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.
«É
o caso dos nossos editores de livros escolares que começaram a produzir
manuais conforme o acordo e que naturalmente querem ser ressarcidos dos seus
gastos. Mas ainda não é um problema insuperável e, acima de tudo, não é um
argumento. Passado um período de transição, pode voltar-se rapidamente à
norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das asneiras do Estado,
junto com as PPP e os contratos swaps, e muita da “má despesa”. Porque será
isso que o acordo será, se não se atalhar de imediato os seus estragos no
domínio cultural.
«O
erro, insisto, foi no domínio da nossa política externa com os países de língua
portuguesa, e esse erro é hoje mais do que evidente; os brasileiros,
em nome de cuja norma ortográfica foram introduzidas muitas das alterações no
português escrito em Portugal, nunca mostraram qualquer entusiasmo com o acordo
e hoje encontram todos os pretextos para adiar a sua aplicação. No Brasil já
houve vozes suficientes e autorizadas para negar qualquer validade a tal acordo
e qualquer utilidade na sua aplicação. Os brasileiros, que têm um
português dinâmico, capaz de absorver estrangeirismos e gerar neologismos com
pernas para andar muito depressa, sabem que o seu “português” será o mais
falado, mas têm a sensatez de não o considerar a norma.
«Nós
aqui seguimos a luta perdida dos franceses para a sua língua falada e escrita,
também uma antiga língua imperial hoje em decadência. Querem, usando o poder
político e o Estado, manter uma norma rígida para a sua língua para lhe dar uma
dimensão mundial que já teve e hoje não tem. Num combate insensato contra o
facto de o inglês se ter tornado a língua franca universal, legislam tudo e
mais alguma coisa, no limite do autoritarismo cultural, não só para protegerem
as suas “indústrias” culturais, como para “defender” o francês do Canadá ao
Taiti. Mas como duvido que alguém que queira obter resultados procure no Google
por “logiciel”, em fez de “software”, ou “ordinateur” em vez de “computer”,
este é um combate perdido.
«Está
na hora de acabar com o acordo ortográfico de vez e voltarmos a
nossa atenção e escassos recursos para outros lados onde melhor se defende o
português, como por exemplo, não deixar fechar cursos sobre cursos de Português
nalgumas das mais prestigiadas universidades do mundo, ter disponível um corpo
de literatura portuguesa em livro, incentivar a criatividade em português ou de
portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus falantes e das suas obras.
Tenho dificuldade em conceber que quem escreve aspeto – o quê? – em vez
de aspecto, em português de Portugal, o possa fazer.»
Como
Pessoa, (mau grado a falta de convicção), insistamos, em apoio a Pacheco Pereira
e a todos os que se indignaram no mesmo sentido que ele, relativamente ao A.O.: «É a Hora!»
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