Foi a designação que captei há dias, numa “mesa
redonda” presidida por José Gomes Ferreira, e onde se discutia a questão das
praxes académicas e das intenções de Nuno Crato a respeito da problemática criminal
que as envolve. Creio que a designação de
“falso moralismo” de um defensor das praxes pretendia atingir Daniel de
Oliveira que, julgo, (comecei a ver o programa já no seu final, com pena de o
ter perdido), se revelara antipraxista, certamente com argumentação da sua
lucidez habitual, o que não foi atendido – nem entendido – pelo pró-praxista,
que entende que as praxes académicas servem de escola de solidariedades e
interapoios não sei se para a vida, o que me parece piegas, falso e utópico.
Ontem ouvi também a reportagem de uma entrevistadora
da Sic, com um “ex-dux” a defender o “dux praxis” da noite assassina no Meco,
mostrando a inocência do dux, o azar dos praxados, as boas intenções de todos
de se divertirem como manda a praxe, não falando, todavia, nas lautas comezainas
que prepararam para o efeito, como fora revelado antes. Mas os telejornais transmitiram
igualmente as denúncias de uma mãe, cujo filho morrera anos antes, supunha ela
que por efeitos de maus tratos de extrema gravidade a que fora submetido pelo condutor-mor
da praxe.
A pessoa que utilizou a expressão “falso moralismo”
dos antipraxistas defendia, pois, liricamente, a escola da solidariedade
segundo a que implicavam as praxes de Coimbra, que, todavia, já a “Geração de
Setenta” atacava no seu ensino universitário bolorento e Verney, no século
XVIII, condenava como atentatórias da dignidade dos iniciantes nos cursos, e como
processo de os veteranos poderem abastecer os seus estômagos a coberto das regras
praxistas que os autorizavam a chantagear e a impor a sua autoridade sobre os
tais.
Uma sociedade, pois, miserabilista sempre a nossa,
quer se tratasse das classes iletradas quer das que se iam ilustrando por meio
de truques sórdidos que Verney denuncia no seu epistolográfico “O Verdadeiro
Método de Estudar”. Embora hoje não se trate disso, já que hoje vivemos
inquestionavelmente mais opulentos. As praxes que na Coimbra dos meus tempos impunham
regras de comedimento caloiral, com proibição de saídas nocturnas à Baixa, ou
as cabeças rapadas à escovinha, pouco afectariam os que se lhes sujeitavam, o
que não foi o meu caso, sempre independente a imposições que repugnassem ao meu
conceito de liberdade. Sabia dos sacrifícios dos meus pais para me
proporcionarem o curso, achava que a minha função como estudante era estudar,
embora não me tenha eximido a participar nas tarefas de solidariedade, como a
de fazer flores de papel para o carro da Queima das Fitas e outras próprias da
mundanal vivência.
Às praxes académicas, desinteressantes para mim, já
nesses tempos, me referi em texto que publiquei em livro, de que transcrevo
excertos, por me parecer que denunciam em parte a mediocridade da condição social
portuguesa que, devido a factores evolutivos propícios, descambaram em práticas
de infâmia e crime, a que pretendemos fechar os olhos, imbecilmente preferindo
acusar de “falso moralismo” a atitude dos que entendem de forma diversa e
desejariam eliminar tais práticas, como índice de atraso grotesco e mândria,
além de sintoma grosseiro e cobarde de domínio de alguns adeptos sobre os mais
fracos:
«Variações sobre o mesmo tema»
«….. Somos, em suma, um povo espirituoso, que manifesta
o seu espírito de variadas maneiras. ….
Também são muito engraçadas aquelas praxes académicas
usadas lá por Coimbra, do domínio dos veteranos sobre os caloiros. Acho que
elas contribuem utilmente para controlar os meninos da mamã num necessário sentido
de humildade e de perda de rebeldias.
Mas ainda não há como as “touradas” académicas para
mostrarem todo o nosso sentido de humor! A primeira lição dada por um ilustre
catedrático após o seu doutoramento é assistida por um público cheio de
espírito, revelado nas perguntas e imposições claramente demonstrativas de
enorme inteligência e a que o catedrático tem forçosamente de se submeter.
Sempre me intrigou este nome de “tourada”, mas só
depois de ter assistido no corredor à passagem do pobre professor pálido e
aterrado para a sua sala de aula e ter ouvido depois os urros lá dentro pelos
tais indivíduos assistentes e espirituosos que a coberto da impunidade da praxe
se permitem todas as liberdades cobardemente ofensivas, compreendi a razão do
termo.
Ainda e “já que estamos nas covas do mar” diria um Vieira
elegante, ou “com a mão na massa” digo eu com idêntico “à propos”, um outro
aspecto que sempre estranhei lá pela douta Coimbra, foi a facilidade com que os
estudantes saíam da sala de uma conferência, em meio desta, deslizando
subrepticiamente para o exterior. Se assim faziam é porque sabiam mais do que o
professor conferencista, era a minha imediata dedução e admirava-lhes a
elegância de atitude demonstrativa de um adiantadíssimo estado de civilização.
De facto só as pessoas civilizadas se podem permitir gestos destes, soberanos e
desdenhosos.
É isso com certeza que explica igualmente o sentido de
oportunidade com que nos cinemas sabemos lançar a chalaça ou a gargalhada,
comentando as andanças do filme.
Quanto me orgulho, pois, da nossa vibratilidade,
pronta reacção e expressividade vocabular e de actuação em todos os campos!»
(Prosas Alegres e Não”, 1973)
«Igual à Máfia?»
«Os seis mortos da praia do Meco (e o único
sobrevivente dessa excursão nocturna) frequentavam a Universidade Lusófona.
Todo o mal vem daí.
As dúzias de instituições que se declararam “universidades”
não tinham qualquer espécie de semelhança com a verdadeira coisa. Os professores
eram, de maneira geral, pequenas personagens do antigo regime, muitas sem
qualificação bastante e quase todas para além da idade de aprender e mudar. A
maioria do chamado “corpo estudantil” fora antes rejeitado pelo Estado e pagava
uma exorbitância pelo “ensino” que recebia. Cada “universidade privada”, fosse
de que forma fosse, acabava por se tornar um negócio, a favor de obscuras
direcções que não dependiam de nenhuma autoridade idónea. Mas, no meio disto, precisavam
de prestígio.
«A casa dos animais»
«Parece-me muito bem que universidades e ministro
estejam preocupados com a violência das praxes, mas talvez comece a ser altura
de envolver as famílias no assunto. É que os estudantes universitários são
adultos, mas não são independentes, e diferente seria se os pais tomassem
consciência das figuras tristes que os seus filhos andam a fazer, em vez de se
comoverem de cada vez que os vêem de capa e batina.
Nos tempos antigos, a importação das
modernidades culturais provinha dos países europeus, com especial relevo para a
França, de que já Eça afirmava que a bebíamos desde a infância, e até nos
chegava aos pacotes pelos caminhos de ferro que cruzavam os Pirenéus. Agora–
banido o estudo do francês dos nossos bancos escolares, é antes a filmografia
americana ou outra que nos fornece os saberes – filmes forjados, filmes reais para
que, aliás, a internet, nos possibilita de imediato a informação das nossas parcas
necessidades formativas que descambam em rituais ou nas solicitações do nosso “carpe
diem”.
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