domingo, 2 de fevereiro de 2014

“Falso moralismo”


Foi a designação que captei há dias, numa “mesa redonda” presidida por José Gomes Ferreira, e onde se discutia a questão das praxes académicas e das intenções de Nuno Crato a respeito da problemática criminal que as envolve. Creio que a designação de  “falso moralismo” de um defensor das praxes pretendia atingir Daniel de Oliveira que, julgo, (comecei a ver o programa já no seu final, com pena de o ter perdido), se revelara antipraxista, certamente com argumentação da sua lucidez habitual, o que não foi atendido – nem entendido – pelo pró-praxista, que entende que as praxes académicas servem de escola de solidariedades e interapoios não sei se para a vida, o que me parece piegas, falso e utópico.
Ontem ouvi também a reportagem de uma entrevistadora da Sic, com um “ex-dux” a defender o “dux praxis” da noite assassina no Meco, mostrando a inocência do dux, o azar dos praxados, as boas intenções de todos de se divertirem como manda a praxe, não falando, todavia, nas lautas comezainas que prepararam para o efeito, como fora revelado antes. Mas os telejornais transmitiram igualmente as denúncias de uma mãe, cujo filho morrera anos antes, supunha ela que por efeitos de maus tratos de extrema gravidade a que fora submetido pelo condutor-mor da praxe.

A pessoa que utilizou a expressão “falso moralismo” dos antipraxistas defendia, pois, liricamente, a escola da solidariedade segundo a que implicavam as praxes de Coimbra, que, todavia, já a “Geração de Setenta” atacava no seu ensino universitário bolorento e Verney, no século XVIII, condenava como atentatórias da dignidade dos iniciantes nos cursos, e como processo de os veteranos poderem abastecer os seus estômagos a coberto das regras praxistas que os autorizavam a chantagear e a impor a sua autoridade sobre os tais.

Uma sociedade, pois, miserabilista sempre a nossa, quer se tratasse das classes iletradas quer das que se iam ilustrando por meio de truques sórdidos que Verney denuncia no seu epistolográfico “O Verdadeiro Método de Estudar”. Embora hoje não se trate disso, já que hoje vivemos inquestionavelmente mais opulentos. As praxes que na Coimbra dos meus tempos impunham regras de comedimento caloiral, com proibição de saídas nocturnas à Baixa, ou as cabeças rapadas à escovinha, pouco afectariam os que se lhes sujeitavam, o que não foi o meu caso, sempre independente a imposições que repugnassem ao meu conceito de liberdade. Sabia dos sacrifícios dos meus pais para me proporcionarem o curso, achava que a minha função como estudante era estudar, embora não me tenha eximido a participar nas tarefas de solidariedade, como a de fazer flores de papel para o carro da Queima das Fitas e outras próprias da mundanal vivência.

Às praxes académicas, desinteressantes para mim, já nesses tempos, me referi em texto que publiquei em livro, de que transcrevo excertos, por me parecer que denunciam em parte a mediocridade da condição social portuguesa que, devido a factores evolutivos propícios, descambaram em práticas de infâmia e crime, a que pretendemos fechar os olhos, imbecilmente preferindo acusar de “falso moralismo” a atitude dos que entendem de forma diversa e desejariam eliminar tais práticas, como índice de atraso grotesco e mândria, além de sintoma grosseiro e cobarde de domínio de alguns adeptos sobre os mais fracos:

 

«Variações sobre o mesmo tema»

«….. Somos, em suma, um povo espirituoso, que manifesta o seu espírito de variadas maneiras. ….

Também são muito engraçadas aquelas praxes académicas usadas lá por Coimbra, do domínio dos veteranos sobre os caloiros. Acho que elas contribuem utilmente para controlar os meninos da mamã num necessário sentido de humildade e de perda de rebeldias.

Mas ainda não há como as “touradas” académicas para mostrarem todo o nosso sentido de humor! A primeira lição dada por um ilustre catedrático após o seu doutoramento é assistida por um público cheio de espírito, revelado nas perguntas e imposições claramente demonstrativas de enorme inteligência e a que o catedrático tem forçosamente de se submeter.

Sempre me intrigou este nome de “tourada”, mas só depois de ter assistido no corredor à passagem do pobre professor pálido e aterrado para a sua sala de aula e ter ouvido depois os urros lá dentro pelos tais indivíduos assistentes e espirituosos que a coberto da impunidade da praxe se permitem todas as liberdades cobardemente ofensivas, compreendi a razão do termo.

Ainda e “já que estamos nas covas do mar” diria um Vieira elegante, ou “com a mão na massa” digo eu com idêntico “à propos”, um outro aspecto que sempre estranhei lá pela douta Coimbra, foi a facilidade com que os estudantes saíam da sala de uma conferência, em meio desta, deslizando subrepticiamente para o exterior. Se assim faziam é porque sabiam mais do que o professor conferencista, era a minha imediata dedução e admirava-lhes a elegância de atitude demonstrativa de um adiantadíssimo estado de civilização. De facto só as pessoas civilizadas se podem permitir gestos destes, soberanos e desdenhosos.

É isso com certeza que explica igualmente o sentido de oportunidade com que nos cinemas sabemos lançar a chalaça ou a gargalhada, comentando as andanças do filme.

Quanto me orgulho, pois, da nossa vibratilidade, pronta reacção e expressividade vocabular e de actuação em todos os campos!» (Prosas Alegres e Não”, 1973)

 
Mas outros artigos mais precisos de indignação e referências pontuais merecem a atenção e não resisto a transcrever os dois que colho no Público. O primeiro é de 25/1, de Vasco Pulido Valente:

«Igual à Máfia?»
«Os seis mortos da praia do Meco (e o único sobrevivente dessa excursão nocturna) frequentavam a Universidade Lusófona. Todo o mal vem daí.


As dúzias de instituições que se declararam “universidades” não tinham qualquer espécie de semelhança com a verdadeira coisa. Os professores eram, de maneira geral, pequenas personagens do antigo regime, muitas sem qualificação bastante e quase todas para além da idade de aprender e mudar. A maioria do chamado “corpo estudantil” fora antes rejeitado pelo Estado e pagava uma exorbitância pelo “ensino” que recebia. Cada “universidade privada”, fosse de que forma fosse, acabava por se tornar um negócio, a favor de obscuras direcções que não dependiam de nenhuma autoridade idónea. Mas, no meio disto, precisavam de prestígio.

 Para o “prestígio” escolheram eventualmente três caminhos: grandes cerimónias, imitadas de universidades medievais; trajos de professores, de grande pompa e circunstância; e uma total liberdade para as praxes. Numa altura em que pelo Ocidente inteiro se abandonavam as “praxes” pela sua brutalidade e pela sua absoluta falta de sentido no mundo contemporâneo, Portugal adoptou com entusiasmo essa aberração. Tanto as direcções como os professores não abriram a boca e menos puniram os delinquentes, que de resto não se escondiam e até se gabavam. Do Minho ao Algarve nasceu assim uma nova cultura, cada vez mais sádica e tirânica, que variava na proporção inversa da qualidade académica da instituição em que se criara. Nas cidades chegou ao seu pior.

 Parece (não garanto) que a PJ descobriu que os mortos do Meco estavam a cumprir um ritual “praxístico” sob a direcção de um dux (um nome roubado a Coimbra), quando foram arrastados por uma onda. Parece também que nenhum deles trazia consigo um telemóvel, provavelmente para impedir que pedissem protecção, se o dux ultrapassasse as marcas. Entretanto, corre por aí que essa personagem sofre de uma “amnésica selectiva” e que nenhum aluno da Lusófona revelou ainda à polícia as regras secretas da “praxe” local (“Grande Conselho” incluído). Pior do que isso, na Internet já apareceram ameaças a quem “falar” tal e qual como na máfia. O sr. ministro da Educação, depois de tantas trapalhadas, devia agora tratar da sua enegrecida reputação com um gesto limpo: fechar a Lusófona e punir os responsáveis que deixaram crescer a barbaridade das “praxes”».

 O segundo artigo, de 28/1, é de João Miguel Tavares:

«A casa dos animais»

«Parece-me muito bem que universidades e ministro estejam preocupados com a violência das praxes, mas talvez comece a ser altura de envolver as famílias no assunto. É que os estudantes universitários são adultos, mas não são independentes, e diferente seria se os pais tomassem consciência das figuras tristes que os seus filhos andam a fazer, em vez de se comoverem de cada vez que os vêem de capa e batina.

 Deixemo-nos de paninhos quentes: nenhum jovem bem formado aceita participar na humilhação organizada de alguém que é mais fraco do que ele. Ponto final. E em relação às tretas da “tradição” e da “integração”, os “dux” e as “papisas” que criem os seus próprios grupinhos fetichistas e deixem os desgraçados dos caloiros em paz.

 Aliás, confesso a minha dificuldade em continuar a escutar a palavra “integração” saída da boca dos defensores das praxes, como se eles fossem os filantropos do excremento e da roupa interior. Se só querem estender os braços aos novos alunos e promover um momento divertido, organizem um beberete. Parece-me uma forma mais higiénica de ajudar jovens de 18 anos a conhecerem-se, até porque eles costumam ter muitas dificuldades nisso. Portanto, caros praxistas, tentem arranjar uma desculpa menos parva para aquilo que verdadeiramente vos põe a adrenalina a correr – aquela sensação, velha como o mundo, de exercer um poder discricionário sobre um grupo de miúdos indefesos e assustados. Sim, há aqui uma antiquíssima tradução. Bárbara e repugnante, mas uma tradição, ainda assim.

 Claro que o assunto das praxes é como os fogos de verão; vai e vem consoante os anos, e aquilo que arde e morre em cada a estação. Nada irá mudar por causa das mortes do Meco, porque as praxes – lá está – existem desde que alguns seres humanos descobriram ser divertido humilhar outros seres humanos. E isso foi há muito tempo. Mas a investigação de Ana Leal, na TVI, teve o mérito de revelar algumas práticas dos membros do Conselho de Praxe da Lusófona, cuja descrição me parece aproximá-las mais dos rituais das famosas “fraternities” com nome de letras gregas das universidades da Ivy League do que propriamente de alguma coisa portuguesa. Portanto, neste caso, a tradição é, além de bárbara e repugnante, americana e muito queque.

 Isto não é uma coisa de universidades fajutas e mal frequentadas. Os excessos das repúblicas da Ivy League, cujas práticas fazem muitas vezes parecer as da Lusófana uma brincadeira de crianças, também ocupam espaço nos jornais americanos, até porque todos os anos costuma morrer alguém. John Landis já fez o favor de retratar tais ambientes há 35 anos, num filme de culto de 1978 sobre a “fraternity” Delta Tau Chi, sintomaticamente intitulado “Animal House”. Em Portugal ele chamou-se (ainda mais sintomaticamente) “A República dos Cucos”, uma tradução pueril para um filme cuja máxima nada tinha de inocente: “We can do anything we want . We’re college students!”

 A irresponsabilidade do universitário que aprecia a praxe tem muitos anos e uma razão de ser: a perpetuação de um espírito de casta. Essa espécie de gente começa a praticar a humilhação ao próximo na universidade para depois poder continuar a praticá-la nas Goldman Sachs desta vida, onde a lei do mais forte invariavelmente impera, e é preciso baixar a cabeça para os que estão em cima e pisar o pescoço dos que estão em baixo. Porque isto, de facto, anda tudo ligado. Como é da tradição.»



Nos tempos antigos, a importação das modernidades culturais provinha dos países europeus, com especial relevo para a França, de que já Eça afirmava que a bebíamos desde a infância, e até nos chegava aos pacotes pelos caminhos de ferro que cruzavam os Pirenéus. Agora– banido o estudo do francês dos nossos bancos escolares, é antes a filmografia americana ou outra que nos fornece os saberes – filmes forjados, filmes reais para que, aliás, a internet, nos possibilita de imediato a informação das nossas parcas necessidades formativas que descambam em rituais ou nas solicitações do nosso “carpe diem”.

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