No seu artigo do Público de 24 de Janeiro, “A tradição”, Vasco
Pulido Valente, referindo-se à recente viragem política e económica de François
Hollande, redutora das despesas democráticas das suas fictícias promessas
eleitorais, referencia a história do socialismo como algo pontual, em
tentativas frustradas, na realidade uma ideologia que
serviu os interesses próprios e do capital, que, para despistar, ia “compensando
aqui e ali os trabalhadores com o famoso Estado social, a que se reduziu em
última análise a utopia do século e que hoje parece perigosamente perto da
dissolução”.”
«A tradição»
Com lágrimas, com irritação, com desespero, a esquerda ouviu
esta semana François Hollande renunciar ao socialismo. A esquerda tem má
memória. Desde o princípio que o socialismo se reduziu a conceder alguns leves
benefícios aos trabalhadores, que se foram acumulando, e que se devem em parte
considerável à mais pura direita.
Quem começou esta política foi, de resto, o príncipe Bismarck,
antes de 1890, para conter simultaneamente o SPD e o liberalismo alemão que
pretendia renascer contra ele. Durante a Grande Guerra (a I), o partido de
Lenine e Estaline estabeleceu uma ditadura que se dizia “comunista”, mas que no
fundo não passava de uma nova tentativa de “modernização” do império do czar,
executada com uma particular ferocidade.
Depois de 1918, ainda apareceram meia dúzia de imitadores. Na
Hungria, Béla Kun inventou uma “República Soviética”, que durou cinco meses e
quase não passou de Budapeste. Em Munique, também foi proclamado o “comunismo”,
que provocou uma pequena guerra civil e desapareceu em menos de um mês. Pela
Europa ocidental, as coisas continuaram na mesma. O trabalhista MacDonald governou
a Inglaterra de Janeiro a Novembro de 1924 e, depois, em coligação com os
conservadores, de 1929 a 1935, uma aventura que lhe valeu a expulsão do
partido. Em Espanha, a URSS tomou o poder por interposta pessoa a partir de
1937 e em 1939 perdeu a guerra. E, em França, Léon Blum conseguiu aguentar um
ano, meio paralisado pelos radicais da sua “Frente Popular”, mas sempre deixou
à “classe operária” o dia de 8 horas, mais duas semanas de férias pagas.
Em 1945, a Europa de Leste ficou sob a tutela da URSS de que só
se conseguiu livrar em 1989. No Ocidente passaram pelo governo, se a América
aprovava, dezenas de partidos nominalmente “socialistas”, que sobretudo se
esforçaram por promover a prosperidade do capitalismo, compensando aqui e ali
os trabalhadores com o famoso Estado social, a que se reduziu em última análise
a utopia do século e que hoje parece perigosamente perto da dissolução. O sr.
Hollande não fez mais do que os seus predecessores. O “socialismo”, nas suas
muitas variantes, nunca existiu e nunca chegou verdadeiramente a ser a
ideologia dominante de nenhum Estado constituído. A retórica de intelectuais
sem emprego não substitui a acção, como milhares de vezes se provou. O sr.
Hollande assinou o último certificado de óbito da esquerda, seguindo, como lhe
competia, a tradição.»
Não sei se o Dr. Mário Soares gostou de ler o artigo de Pulido
Valente - se é que o leu - pois para ele o socialismo existiu, sim, como
sinónimo de combate à ditadura e de conquista da liberdade. Quanto à questão
económica, não foi esse o ponto principal da sua doutrina, pelo menos
relativamente ao povo da vila morena, que outros se encarregaram de defender,
lutando com unhas e dentes pelas igualdades sociais que os abrangiam. Julgo que
a ele e a outros como ele coube grande parte do bolo democrático, mais do que
aos das liberdades por ele concedidas, a quem as migalhas bastavam, a liberdade
sendo suficiente bem para esses, que puderam espojar-se, finalmente, em ditos e
gritaria, abrindo o escape da mordaça anterior. E o resultado é que andamos
todos para aqui hoje nas bolandas da penúria, tanto foi o esbanjamento de
palavras e de dinheiros nacionais – os dos tempos da ditadura – e estrangeiros
– os dos tempos da democracia.
É certo que agora, mais do que nunca, a ditadura se impõe – ditadura
do capital, do patronato, do próprio Governo – com a perda de direitos, de
empregos, como não havia na outra ditadura, apesar de existirem também muitas
discrepâncias sociais, como é natural, nesta luta pela posse material, que já fez
morrer Abel às mãos de Caim, e que semeia a guerra e o crime por esse mundo, de
que a guerra de Tróia é exemplo lírico, pelo menos no pretexto, pois na
realidade também assentou em questões de estratégia económica..
A verdade é que o capital comanda a vida, e
François Hollande teve que largar os seus extremismos eleitorais de
generosidade interesseira, convertendo-se à religião centrista, que impede as
bondades da “esquerda democrática”, para se centrar mais numa moderação
despesista do Estado gastador.
E Vasco Pulido Valente assim historia, sem
ilusões e com saber, o socialismo europeu, deixando de lado Fidel Castro e Che
Guevara que, em outros espaços, lutaram por um socialismo talvez mais autêntico
mas sem liberdade.
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