segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Ad Hoc

Três artigos sobre a Ciência de que se fala cá, que ocupam as páginas 46 e 47 do Público de 4/2 – o primeiro, “Ciência e equívocos”, de Filipe Carreira da Silva, Investigador, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; o segundo, “Ciência… que ciência? de Luís Reis Torgal, Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; o terceiro, “Algo está mal no Reino da Fundação para a Ciência e a Tecnologia”, de José Sande Lemos, Professor catedrático, presidente do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa.

Todos eles referindo a celeuma provocada na imprensa, pela redução das bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, e analisando a crise na Ciência sob as perspectivas de cada um. O slogan “LUTO PELA CIÊNCIA” encimando o último artigo, resume, de certa forma, o espírito que envolve os três, quer na crítica a um statu de deficiência do panorama científico português, quer na crítica a um Governo que segue a eito na sua política de “poda”, aparentemente para ganhar novos créditos exteriores, mas demonstrando uma insensibilidade grande pelos valores científicos em causa. Nesta data -4/2 - ainda se desconhecia a “bomba” da venda de quadros de Miró, demonstrador de igual insensibilidade em relação aos valores artísticos a preservar, além da dilapidação sucessiva das riquezas pátrias, com que se vai empobrecendo e degradando o país - de que a língua, principal instrumento cultural, adulterada por um Acordo Ortográfico de estulta proveniência, foi o primeiro passo no desrespeito que, todavia, não parece revoltar as consciências dos que se insurgem na questão da Ciência ou do espólio das pinturas.
O artigo “Ciência e equívocos” disserta sobre os elementos responsáveis pela ciência, os financiamentos e a sua finalidade, considerando os dois equívocos em que assenta ultimamente entre nós. Tem a ver o primeiro equívoco com a visão “míope”, tanto da direita como da esquerda: visão optimista da esquerda, considerando que ”foi o melhor dos mundos” o anterior, que protegeu a ciência no país: “financiamento recorde, crescimento exponencial dos primeiros indicadores, aproximação a galope dos países mais desenvolvidos.” Visão pessimista da direita: “À direita há quem fale de “obscurantismo” provocado por uma política estatal insustentável a longo prazo, apontando como solução a universidade”. Considera o articulista uma visão limitada esta de atribuir à universidade o papel de mentora da política científica, quando os demais países desenvolvidos –“Estados Unidos à cabeça - têm agências governamentais responsáveis pelas respectivas políticas da ciência”.

“Já os defensores da primavera rosa parecem ter a vista obnubilada pelo brilho dos powerpoints. Parecem não querer ver que uma bolsa não é um emprego. E que para criar empregos é necessário ir contra interesses instalados, já para não falar nos modos de fazer e de pensar clientelares tão profundamente enraizados entre nós. Este foi, provavelmente, o erro mais grave dos últimos 10-15 anos. Em vez de se começar a abrir as universidades ao mérito e ao esforço, entrelaçando ensino e investigação, e de se criar incentivos às empresas para contratarem pessoal qualificado, optou-se por criar um sistema de laboratórios associados paralelo às universidades, um sistema tão moderno quanto efémero. Perdeu-se com isto uma oportunidade de ouro para efectivamente modernizarem as universidades. Pior: criou-se uma situação em que ao primeiro abalo todo o sistema soçobraria, deitando a perder o investimento de centenas de milhões de euros entretanto realizado. É esta a situação em que agora nos encontramos. Uma reforma por fazer, investimento em risco de se perder e pouca clarividência sobre as razões das nossas dores.
O segundo equívoco tem a ver com a política do actual Governo. Quem corta nas bolsas fá-lo com o argumento de que teríamos entrado numa segunda face do processo de desenvolvimento científico: à fase de expansão seguir-se-ia agora a fase da consolidação. Esta tese da poda enferma de um pequeno problema. Ignora o país que (ainda) somos. Temos décadas de atraso, não um excesso de qualificações.”
Segue-se que é necessário investir mais no ensino e na sua difusão por mais alunos, exigir mais bolsas, “mais emprego científico nas universidades e nas empresas”, “procedimentos de avaliação mais transparentes”, ao contrário do que se faz.

O artigo “Ciência… que Ciência?”, bastante negativo, assinala a “desaceleração no desenvolvimento da Ciência, e a lamentável situação de desemprego e subemprego dos nossos mestres e doutores”, responsáveis pelo fluxo de artigos mediáticos dos que protestam pela situação. E neles, domina uma forma “pragmática e economicista” de encarar a ciência, “identificada como mais um “modo de produzir do que como uma descoberta ou uma nova maneira de interpretar o mundo e a vida.”

Considera que “neste país não há lugar para cientistas”, como não há lugar para nenhum modo de vida (o que me parece falso). “Por isso se aconselharam os portugueses a emigrar ou a conseguir algum subemprego mal pago e com poucas ou muitas horas de trabalho, que os levassem a sair da situação estatística de “desempregados”. E por isso se utilizam chavões como “empreendedorismo”, para não falar do desenvolvimento que escasseia ou para mascarar a frustração de muitos que têm apenas o desejo de ter um trabalho honesto, desempenhado e pago honestamente, como cientistas, professores, operários de uma fábrica.”

Referindo-se ao “processo de Bolonha” que sempre contestou, informa que “No fundo , está nela a potencialidade de fazer com que os estudantes permaneçam no ensino superior o mais tempo possível. Se a licenciatura – pouco exigente – não serve para nada, caminha-se para o mestrado, naturalmente menos exigente do que no passado. E como o mestrado para nada serve, segue-se para o terceiro ciclo, o doutoramento, onde quase todos os estudantes podem entrar - (No meu tempo, só os que obtinham média de dezoito na licenciatura tinham acesso ao doutoramento)em muitos casos não para obter uma habilitação que lhes dê acesso a um emprego ou à investigação científica, para que se sentem vocacionados, mas porque, com ilusões ou já desiludidos, não conseguiram nenhum trabalho anteriormente. Assim, vão colecionando graus, passando finalmente da situação de doutorados para pós-doutorados e daí, por vezes, para a “sensação de incompetência”(num processo algo parecido com o princípio de Peter) que os leva a procurar um outro lugar fora de ciência ou da profissão que queriam escolher, em Portugal ou no estrangeiro, onde, todavia, em alguns países há mais possibilidades de trabalho efectivo.”

Prossegue o artigo referindo as diferenças entre os cientistas velhos –inadaptados – e os novos, aparentemente mais bem preparados, os que são “a nata das natas” e obtêm bolsas, porque fazem “investigação de qualidade” ou “porque melhor se integraram no sistema: os que têm mais artigos online e em inglês, e que por isso são mais citados, que estiveram em centros que se presume de melhor qualidade (sobretudo no estrangeiro), que souberam criar de forma real ou artificial projectos internacionais. Seja como for, o que é preciso - diz-se – é criar “massa crítica”, mesmo que , individualmente ou em grupo, haja pouca consciência crítica no domínio da ciência, como no domínio da observação do que se passa na sociedade. É por isso que nas acções cívicas quase não há jovens, que procuram de preferência as juventudes partidárias que lhes dão o emprego que a competência não lhes permite alcançar.”

Prossegue o artigo pontuando os valores do capital presidindo o actual mundo da ciência e da tecnologia acríticas e dos gestores da sociedade capitalista sem ética”, e naturalmente condenando um Governo que escolheu meter a democracia na gaveta, fabricando os seus “cientistas de eleição”, numa “sociedade à sua medida”.

O artigo de José Sande Lemos“Algo está mal no reino da Fundação para a Ciência e a Tecnologia insurge-se mais especificamente contra o corte das bolsas em que, num concurso com 3416 concorrentes , apenas 298 as obtiveram, ou seja, menos de 10%, excluídos da bolsa para doutoramento os dois melhores alunos - 19 e 18 valores - do Curso de Mestrado em Engenharia Física Tecnológica do Instituto Superior Técnico.

A justificação para o corte das bolsas individuais é sugerida pelo efeito de terem sido desviadas muitas bolsas para escolas doutorais, a que se apontam os erros seguintes:

1- “Foram criadas ad hoc, transversais à estrutura das universidades”: “Não só não houve preocupação em dar suporte a estruturas existentes, com provas dadas, mas foram as novas escolas atribuídas a esta ou aquela área científica de uma forma casuística e conforme as apetências desse júri.”

2- “O júri do concurso para as escolas doutorais foi assegurado por 17 pessoas apenas, tendo estas que emitir uma opinião sobre a totalidade do pensamento humano, indo da literatura à astrofísica e da história à biomedicina. Estes membros do júri não se envergonharam de decidir sobre matérias (e áreas inteiras) sobre as quais eram completamente ignorantes, o que por si só é de um exotismo nunca antes visto.”

3- Finalmente, e relacionado com as bolsas individuais, tendo as bolsas atribuídas às escolas doutorais sido possivelmente retiradas do conjunto das bolsas do concurso nacional, não era difícil prever que os melhores alunos que se não encaixassem nesta nova moda de programas doutorais, poderiam vir a não receber bolsa – o que sucedeu com os alunos supracitados.

Segue-se a crítica do articulista à arrogância da política governamental em querer seguir no rasto de outras nações incomparavelmente mais estruturadas, e à ineficiência do actual presidente da FCT.

Três artigos que, condenando as políticas científicas do Governo, sob diversos aspectos, omitem as condicionantes que implicaram o corte nas bolsas, semelhante a outros cortes, e não dão ao Governo o voto de confiança num amanhã de recomeço. O costume.

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