sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Três tristes tigres



Três artigos de Vasco Pulido Valente sobre a Decadência de Portugal, saídos no Público em 21, 22 e 23/2, o primeiro sem subtítulo, o segundo, prolongado o título com o comentário síntese “o paradoxo da imitação” e o terceiro com “O bom aluno”. Três artigos de uma reflexão feita de saber e humor que, mergulhando em Antero – este, por sua vez apoiado em Herculano e influenciando Oliveira Martins – apontando como causas primeiras dessa decadência o Concílio de Trento, o absolutismo e o sonho ultramarino, revelam outros dados justificativos dessa decadência, já pressentidos no final de “Os Maias”, com a referência crítica de Ega à imitação do calçado bicudo francês acentuando as biqueiras das botas, em arremedo imitativo servil e provinciano, que se estendia, no século XIX, aos vários campos de actuação – moda, política, literatura. Tal característica de imitação de um país vivendo em permanente constatação da sua inferioridade cultural, prolongada no tempo até aos nossos dias, revela-se, contudo, paradoxal, pois não só o não consegue, em estigma social de inércia cultural desde sempre transparente, como pretende opor-lhe uma exaltação orgulhosa e passadista de outros parâmetros de actuação sua, valiosa na globalização do mundo, que vai progredindo, contudo, na indiferença natural desse papel passado, já irrelevante. Segue-se a constatação do falhanço, com Cavaco Silva atestando a “menoridade indígena” ao considerar o país “um bom aluno”, numa modernização de empréstimo, assente no betão mais do que num real desenvolvimento cultural, e terminando em catástrofe. Três artigos de excelência argumentativa que poderiam conduzir um povo menos prostrado a uma ponderação de seriedade mais eficaz.

O primeiro: «A decadência de Portugal»:

«As grandes crises têm invariavelmente provocado grandes teorias sobre a “decadência” de Portugal. As teorias, como é óbvio, variaram. Mas nunca como hoje houve uma tão larga indiferença pelo nosso destino colectivo, ou seja, pela história e pela cultura, que nos trouxeram onde trouxeram.
As causas da desgraça em que vivemos e do esquálido futuro que aí vem são vagamente distribuídas por erros que toda a gente cometeu, pela intrínseca perversidade da política ou pela maléfica influência do “estrangeiro”. Sobre aquilo em que Portugal se tornou no fim do século XIX e no século XX nem uma palavra. É como se o país só existisse desde 2010, a partir do fracasso da democracia e da iminência da bancarrota.
Em 1871, Antero de Quental fazia uma conferência, parte das famosas “conferências do Casino”, em que atribuía a decadência indígena a três “fenómenos capitais”: “a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento”, “o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais” e a obsessão geral com “conquistas longínquas”. Claro que os “fenómenos” de Antero não eram exactamente o que ele julgava. De qualquer maneira, serviam para “explicar” a crise portuguesa. O “despotismo religioso” imposto por Trento acabara com a liberdade de consciência e promovera a irresponsabilidade do indivíduo. O Absolutismo tornara a sociedade dependente do Estado, de quem passara a esperar a sua salvação e a temer a sua perdição. E as “conquistas” distraíam o povo do trabalho produtivo e do desenvolvimento interno.
As teses de Antero, apesar da sua manifesta fraqueza, foram o cânone da esquerda até muito tarde e inspiraram pensadores menores como o operoso António Sérgio. De facto, se diagnosticavam os males do país, também implicitamente ofereciam remédios: o anticlericalismo, a democracia e o que se veio a chamar “colonização interna”. A imagem que os portugueses tinham de si próprios (os da classe média, claro) mudou. Portugal não mudou imediatamente, excepto para pior. Mas no pensamento posterior a influência de Antero permaneceu e em parte continua a ser relevante mesmo em 2014. Só que 2014 não lhe responde. Agora, ninguém se importa com a natureza de Portugal.»

O segundo: «A decadência: o paradoxo da imitação»:

«Educados na hipocrisia e na imoralidade pelo Catolicismo, na resignação e na dependência do Estado pelo Absolutismo e no desprezo pelo trabalho pelas Conquistas, os portugueses não se recomendavam à “geração de 70”.
A “geração de 70”, que veio a público numa época de recessão – provocada pela diminuição das remessas do Brasil –, não encontrava nada de redentor na sociedade que a Regeneração (de 1851) fizera. Para Eça ou para Ramalho, Portugal não passava de uma imitação da França, traduzida em calão ou em vernáculo. A grande obra de Eça, Os Maias, acaba na Avenida da Liberdade, uma triste cópia de um boulevard, com amargas considerações sobre o carácter postiço da civilização indígena e da classe média que se passeia na rua, ociosa e ridícula.
Mas se os romances eram copiados da literatura francesa e também a poesia, os costumes, a moda e o próprio regime da Carta e do Acto Adicional vale a pena dizer que desde o princípio do século sempre o tinham sido. A “inteligência” educada e cosmopolita pedia um país “forte” e, sobretudo, “original”, mas não se lembrava (excepto no caso muito particular de Eça) que ela mesma se alimentava da França e um pouco da Inglaterra e da Alemanha. Sonhando com arroz no forno e com o Portugal típico do Senhor D. João VI, “modernizado” ou “regenerado”, queria simultaneamente um Portugal que não fosse diferente da Europa. O que hoje se chama “identidade nacional” coincidia, para ela, com uma “identidade” que se procurava nas grandes potências do século. A imitação acabava assim por se tornar na nossa principal fraqueza e na única verdadeira via de salvação.
Este paradoxo continua a acompanhar os portugueses. Por um lado, não há um cantinho da nossa vida que não se compare com a Europa e não há triunfo que não consista em encontrar semelhanças entre as coisas de lá e as coisas de cá. Por outro lado, os governos proclamam a nossa singularidade atlântica ou (nos casos de incurável loucura) mundial. O país balança entre um “papel” na Europa, que não encontrou, e um “papel” em Angola, no Brasil ou numa selva qualquer da África ou da Ásia, que manifestamente o excede. De qualquer maneira, como lamentava Eça, nesta apregoada época de “globalização”, Portugal está “desempregado”. Ninguém precisa dele e ele precisa urgentemente de sair da sua velha irrelevância. Imitando, sem imitar, claro. Como de costume e com os resultados do costume.http://s.publico.pt/NOTICIA/1625693http://s.publico.pt/europa/1625693http://s.publico.pt/franca/1625693http://s.publico.pt/africa/1625693http://s.publico.pt/brasil/1625693http://s.publico.pt/portugal/1625693»

O terceiro: «A decadência: “o bom aluno”

«Empurrado pelas circunstâncias, foi Cavaco Silva quem finalmente atestou a menoridade indígena com a expressão “o bom aluno”. Bom ou mau o aluno é por natureza um ser incompleto e subordinado. A partir da altura em que se reconheceu como tal, Portugal adoptava para si o “modelo europeu”, a que de resto se conformou com zelo e até às vezes com entusiasmo.
Mas Cavaco, como a multidão de “modernizadores” que o precederam e seguiram, ignoraram dois pontos fundamentais. Primeiro, a sociedade não muda pela simples vontade política do poder. Segundo o “atraso” do país não se curava simplesmente com alguma disciplina financeira (a que, aliás, nunca chegou); ou com obras públicas para impressionar o estrangeiro e espantar o patego.
Claro que o país tinha de se tornar compatível com a civilização material a que pertencia. Só que, como habitualmente sucede com os plagiadores, exagerou. Os sapatos demasiado bicudos do epílogo de “Os Maias” não se distinguem em substância do excesso de amor pelo betão, que em parte nos levou ao presente sarilho. Pior ainda: a burguesia e a classe média, a que em última análise se devia a miséria de Portugal, e a populaça a que ela fora imposta, também adoptaram as regras do “bom aluno” e pediram irrecusavelmente o estatuto e a prosperidade de que lá fora gozavam os seus pares e que a nossa economia, fraca e quase paralítica, não lhes podia dar. Houve desde o princípio um fosso entre o optimismo oficial do “bom aluno” e o que, na sua inocência, os portugueses queriam e esperavam.
Contrariada ou alacremente, o Estado preencheu esse fosso e, para o preencher, pôs de parte o código do “bom aluno”, como se ele já não lhe servisse e o país se bastasse a si próprio. Cavaco assistiu calado a este desastre, que ele próprio provocara, e consentiu sem uma palavra que a sociedade e o Estado se afundassem tranquilamente em dívidas tão absurdas como irredimíveis. Com a salvação da Pátria do PSD e de Passos Coelho voltaram as pragas tradicionais da “decadência” e do “atraso”, que depressa redescobriram os vícios atávicos do português: a sabujice, a dependência, a resignação e uma espécie de sebastianismo de trazer por casa na forma obscura e longínqua do BCE. Nem falta a ditadura dos partidos do centro, nem a melancólica impotência do Presidente da República. Depois do fracasso da “modernização” democrática, virão vinte anos de vacas magras e de cinismo ou desespero. E agora o remédio é duvidoso e talvez mortal.»
Vasco Pulido Valente

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