Três
artigos de Vasco Pulido Valente sobre a Decadência de Portugal,
saídos no Público em 21, 22 e 23/2, o primeiro sem subtítulo, o segundo,
prolongado o título com o comentário síntese “o paradoxo da imitação”
e o terceiro com “O bom aluno”. Três artigos de uma reflexão
feita de saber e humor que, mergulhando em Antero – este, por sua vez apoiado em
Herculano e influenciando Oliveira Martins – apontando como causas primeiras dessa
decadência o Concílio de Trento, o absolutismo e o sonho ultramarino, revelam
outros dados justificativos dessa decadência, já pressentidos no final de “Os
Maias”, com a referência crítica de Ega à imitação do calçado bicudo
francês acentuando as biqueiras das botas, em arremedo imitativo servil e
provinciano, que se estendia, no século XIX, aos vários campos de actuação –
moda, política, literatura. Tal característica de imitação de um país vivendo
em permanente constatação da sua inferioridade cultural, prolongada no tempo
até aos nossos dias, revela-se, contudo, paradoxal, pois não só o não
consegue, em estigma social de inércia cultural desde sempre transparente, como
pretende opor-lhe uma exaltação orgulhosa e passadista de outros parâmetros de
actuação sua, valiosa na globalização do mundo, que vai progredindo, contudo, na
indiferença natural desse papel passado, já irrelevante. Segue-se a constatação
do falhanço, com Cavaco Silva atestando a “menoridade indígena” ao
considerar o país “um bom aluno”, numa modernização de empréstimo,
assente no betão mais do que num real desenvolvimento cultural, e terminando em catástrofe. Três artigos de
excelência argumentativa que poderiam conduzir um povo menos prostrado a uma
ponderação de seriedade mais eficaz.
O
primeiro: «A decadência de Portugal»:
«As grandes crises têm invariavelmente provocado
grandes teorias sobre a “decadência” de Portugal. As teorias, como é óbvio,
variaram. Mas nunca como hoje houve uma tão larga indiferença pelo nosso
destino colectivo, ou seja, pela história e pela cultura, que nos trouxeram
onde trouxeram.
As causas da desgraça em que vivemos e do esquálido
futuro que aí vem são vagamente distribuídas por erros que toda a gente
cometeu, pela intrínseca perversidade da política ou pela maléfica influência
do “estrangeiro”. Sobre aquilo em que Portugal se tornou no fim do século XIX e
no século XX nem uma palavra. É como se o país só existisse desde 2010, a
partir do fracasso da democracia e da iminência da bancarrota.
Em 1871, Antero de Quental fazia uma conferência,
parte das famosas “conferências do Casino”, em que atribuía a decadência
indígena a três “fenómenos capitais”: “a transformação do Catolicismo pelo
Concílio de Trento”, “o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das
liberdades locais” e a obsessão geral com “conquistas longínquas”. Claro que os
“fenómenos” de Antero não eram exactamente o que ele julgava. De qualquer
maneira, serviam para “explicar” a crise portuguesa. O “despotismo religioso”
imposto por Trento acabara com a liberdade de consciência e promovera a
irresponsabilidade do indivíduo. O Absolutismo tornara a sociedade dependente
do Estado, de quem passara a esperar a sua salvação e a temer a sua perdição. E
as “conquistas” distraíam o povo do trabalho produtivo e do desenvolvimento
interno.
As teses de Antero, apesar da sua manifesta fraqueza,
foram o cânone da esquerda até muito tarde e inspiraram pensadores menores como
o operoso António Sérgio. De facto, se diagnosticavam os males do país, também
implicitamente ofereciam remédios: o anticlericalismo, a democracia e o que se
veio a chamar “colonização interna”. A imagem que os portugueses tinham de si
próprios (os da classe média, claro) mudou. Portugal não mudou imediatamente,
excepto para pior. Mas no pensamento posterior a influência de Antero
permaneceu e em parte continua a ser relevante mesmo em 2014. Só que 2014 não
lhe responde. Agora, ninguém se importa com a natureza de Portugal.»
O
segundo: «A decadência: o paradoxo da imitação»:
«Educados na hipocrisia e na imoralidade pelo Catolicismo,
na resignação e na dependência do Estado pelo Absolutismo e no desprezo pelo
trabalho pelas Conquistas, os portugueses não se recomendavam à “geração de
70”.
A “geração de 70”, que veio a público numa época de recessão
– provocada pela diminuição das remessas do Brasil –, não encontrava nada de
redentor na sociedade que a Regeneração (de 1851) fizera. Para Eça ou para
Ramalho, Portugal não passava de uma imitação da França, traduzida em calão ou
em vernáculo. A grande obra de Eça, Os Maias, acaba na Avenida da Liberdade,
uma triste cópia de um boulevard, com amargas considerações sobre o carácter
postiço da civilização indígena e da classe média que se passeia na rua, ociosa
e ridícula.
Mas se os romances eram copiados da literatura francesa e
também a poesia, os costumes, a moda e o próprio regime da Carta e do Acto
Adicional vale a pena dizer que desde o princípio do século sempre o tinham
sido. A “inteligência” educada e cosmopolita pedia um país “forte” e,
sobretudo, “original”, mas não se lembrava (excepto no caso muito particular de
Eça) que ela mesma se alimentava da França e um pouco da Inglaterra e da
Alemanha. Sonhando com arroz no forno e com o Portugal típico do Senhor D. João
VI, “modernizado” ou “regenerado”, queria simultaneamente um Portugal que não
fosse diferente da Europa. O que hoje se chama “identidade nacional” coincidia,
para ela, com uma “identidade” que se procurava nas grandes potências do
século. A imitação acabava assim por se tornar na nossa principal fraqueza e na
única verdadeira via de salvação.
Este paradoxo continua a acompanhar os portugueses. Por um
lado, não há um cantinho da nossa vida que não se compare com a Europa e não há
triunfo que não consista em encontrar semelhanças entre as coisas de lá e as
coisas de cá. Por outro lado, os governos proclamam a nossa singularidade
atlântica ou (nos casos de incurável loucura) mundial. O país balança entre um
“papel” na Europa, que não encontrou, e um “papel” em Angola, no Brasil ou numa
selva qualquer da África ou da Ásia, que manifestamente o excede. De qualquer
maneira, como lamentava Eça, nesta apregoada época de “globalização”, Portugal
está “desempregado”. Ninguém precisa dele e ele precisa urgentemente de sair da
sua velha irrelevância. Imitando, sem imitar, claro. Como de costume e com os
resultados do costume.»
O terceiro: «A decadência: “o bom aluno”
«Empurrado pelas circunstâncias, foi Cavaco Silva quem
finalmente atestou a menoridade indígena com a expressão “o bom aluno”. Bom ou
mau o aluno é por natureza um ser incompleto e subordinado. A partir da altura
em que se reconheceu como tal, Portugal adoptava para si o “modelo europeu”, a
que de resto se conformou com zelo e até às vezes com entusiasmo.
Mas Cavaco, como a multidão de “modernizadores” que o
precederam e seguiram, ignoraram dois pontos fundamentais. Primeiro, a
sociedade não muda pela simples vontade política do poder. Segundo o “atraso”
do país não se curava simplesmente com alguma disciplina financeira (a que,
aliás, nunca chegou); ou com obras públicas para impressionar o estrangeiro e
espantar o patego.
Claro que o país tinha de se tornar compatível com a
civilização material a que pertencia. Só que, como habitualmente sucede com os
plagiadores, exagerou. Os sapatos demasiado bicudos do epílogo de “Os Maias”
não se distinguem em substância do excesso de amor pelo betão, que em parte nos
levou ao presente sarilho. Pior ainda: a burguesia e a classe média, a que em
última análise se devia a miséria de Portugal, e a populaça a que ela fora
imposta, também adoptaram as regras do “bom aluno” e pediram irrecusavelmente o
estatuto e a prosperidade de que lá fora gozavam os seus pares e que a nossa
economia, fraca e quase paralítica, não lhes podia dar. Houve desde o princípio
um fosso entre o optimismo oficial do “bom aluno” e o que, na sua inocência, os
portugueses queriam e esperavam.
Contrariada ou alacremente, o Estado preencheu esse
fosso e, para o preencher, pôs de parte o código do “bom aluno”, como se ele já
não lhe servisse e o país se bastasse a si próprio. Cavaco assistiu calado a
este desastre, que ele próprio provocara, e consentiu sem uma palavra que a
sociedade e o Estado se afundassem tranquilamente em dívidas tão absurdas como
irredimíveis. Com a salvação da Pátria do PSD e de Passos Coelho voltaram as
pragas tradicionais da “decadência” e do “atraso”, que depressa redescobriram
os vícios atávicos do português: a sabujice, a dependência, a resignação e uma
espécie de sebastianismo de trazer por casa na forma obscura e longínqua do
BCE. Nem falta a ditadura dos partidos do centro, nem a melancólica impotência
do Presidente da República. Depois do fracasso da “modernização” democrática,
virão vinte anos de vacas magras e de cinismo ou desespero. E agora o remédio é
duvidoso e talvez mortal.»
Vasco Pulido Valente
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