Isabel do Carmo foi, para mim,
referência de escândalo e animosidade aquando do 25 de Abril. Soube que
estivera presa pela Pide, (o que, para todos os efeitos lhe trouxera, como aos
demais, a aura própria para a projecção seguinte), que fora revolucionária
ferrenha, partidária de um governo revolucionário que virasse de vez a
burguesia para espalhar a sua justiça, alcandorando o povo ao lugar cimeiro que
lhe pertencia, provavelmente na redução e humilhação burguesa, pois que, para
ela, na sua juventude, só existiria o povo, longo tempo humilhado e sacrificado.
Era disso que falavam as baladas do Zeca Afonso, no “menino sem condição,
irmão de todos os nus” convidando-o a tirar “os olhos do chão”, a
vir “ver a luz”, e os doestos contra os “eles” que “comem tudo
e não deixam nada”. Além de idêntica matéria nobremente defendida pelos
escritores neo realistas, segundo intriga de contraste entre os ostracismos dos
poderosos e as desventuras dos impotentes. Tudo boa gente, que desejava o bem
dos pobres, já o próprio Guerra Junqueiro se fartara de o declarar mas mais
liricamente, tal como o António Nobre e o Augusto Gil, só o Cesário se
revoltava com as penúrias que observava, que, ao que parece, foram estigma da
nossa condição, embora ainda há pouco uma rapariga do leste europeu com olhos
lacrimosos me tenha mamado 50 cêntimos, como nós sem vergonha de pedir,
provavelmente também educada nos registos de permissividade mendicante, que não
há quem combata tais desvios da dignidade humana, se é que me é permitido fazer
juízos de valor. Mas uma sociedade que se permite espoliar sem vergonha pode
bem permitir-se o direito de pedir sem vergonha, que afinal tudo isso faz parte
da natureza humana, já dentro dos preceitos bíblicos, onde até há bons ladrões
que merecem o céu e bons samaritanos que salvam os assaltados, dentro da máxima
de Cristo de que é preciso amar o próximo.
Mas o próximo para Isabel do Carmo e compinchas
limitou-se naquela época apenas aos oprimidos e esqueceu todos os outros, mesmo
que não tivessem sido opressores e apenas gente que lutava pela vida com o suor
do seu rosto, como era seu dever, preceito igualmente bíblico, da etapa
seguinte à dos tempos edénicos.
A Isabel do Carmo pós revolucionária,
que certamente a vida própria tornou mais comedida, apesar de manter as ideias
feitas, como, aliás, quase todos nós, sobre as vantagens das descolonizações, por
exemplo, desinteressada das consequências fatais para tanta gente que aquelas
provocaram, embora não se tratasse da gente que ela defendeu, e por isso
inexistente para ela, como para quase todos nós, vem a terreiro atacar uma
certa direita que se dispôs a inviabilizar a formação de um partido “3 D”, partido
que pretende modernizar o conceito de esquerda, considerando esta já sediça e sensaborona,
sem ideologia a não ser a mesma de sempre, visando os mesmos parâmetros de
ataque à falibilidade dos que governam, os quais não defendem “os interesses
dos trabalhadores” como deve ser. É um artigo que historia a acção da esquerda
ao longo dos tempos, na conquista de direitos, suponho que incluindo o de
co-adopção por casais homossexuais, (embora estes não venham nas parábolas
bíblicas), mas não se coibindo de condenar a esquerda estalinista, esquecendo os
crimes anteriores, do assassínio do czar Nicolau e toda a família, continuando
por Lenine... Pateticamente, Isabel do Carmo reserva-se a exclusividade dos
bons sentimentos, atribuindo à direita a urgência de extermínio dos velhotes e
outras vilezas.
Saiu no Público de 19/1, intitula-se «Manifesto 3D, a esquerda e uma certa
política»:
«O manifesto 3D tem incomodado muita
gente e nomeadamente uma certa direita. Uma direita cínica, displicente,
dizendo-se pragmática, que não é conservadora no sentido tradicional, que não
acredita em nada nem nela própria. Contraditoriamente é muito firme sob o ponto
de vista ideológico, sendo que essa ideologia é a base estrutural na qual se
baseia o sistema financeiro económico que nos domina.
Perturbando-se com o Manifesto 3D, o
que só o dignifica, resolveu denegrir toda a esquerda, no sentido actual e no
sentido histórico, dando-a por morta e enterrada. Em relação a Portugal, a
porta de responsabilidade dos consideráveis só a abre ao PS se este entrar em
compromisso com a direita, isto é, se em próximas eleições legislativas o PS
ficar numa posição que o leve a acordos governamentais ou parlamentares com o
PSD/CDS. Esta seria uma grande desgraça para o nosso país. Teríamos a
continuação da mesma política actual um pouco mais adocicada, mantendo o
emaranhado de compromissos na Europa e em Portugal. Ou seja, o “statu quo”.
Historicamente, a esquerda ou tal
como se designava tem de facto páginas muito negras no seu passado. E muito mau
será se aqueles que hoje se consideram de esquerda não proclamem tantas vezes quantas
são necessárias que repudiam e denunciam as várias formas de estalinismo, para
usar uma designação genérica que abrange muito mais do que uma só criatura. Tal
como se passa com a Inquisição e os seus continuadores na Igreja Católica, não
há “contexto histórico” que os absolva. Podemos pois falar claro sobre o presente
e o passado. E poderemos então ver de que lado funcionou de facto a esquerda
depois de se sentar desse lado na assembleia durante o período da Revolução Francesa.
Foi a esquerda que lutou contra a
escravatura foi a esquerda (as mulheres e alguns homens) que lutou pelos direitos
das mulheres, foi a esquerda que descreveu as condições miseráveis dos
trabalhadores durante a Revolução Industrial (Flora Tristan em França e em
Inglaterra, Engels em Inglaterra.), foi a esquerda que pôs em romance as
diferenças de classes e a revolta (Victor Hugo e tantos outros), foi a esquerda
que lutou pelas 8 horas de trabalho e depois pelo “weekend”. Foi a esquerda
(partido Trabalhista na Grã Bretanha) que criou o primeiro Serviço Nacional de
Saúde (a lei de Bismark era apenas de “caixas” para quem trabalhava), foi a
esquerda que organizou a resistência apo nazismo nos países ocupados, foi a
esquerda que lutou contra o apartheid (só agora é que são todos admiradores de
Mandela). Foi a esquerda que lutou contra a ditadura em Portugal, foi a
esquerda que derrubou as ditaduras da América Latina.
Quando hoje alguns de nós nos
sentimos motivados para apelar à unidade da esquerda é antes uma questão ética.
Não somos nós que inventamos, são
números oficiais que nos mostram que um quarto da população portuguesa está em
estado de pobreza e que trezentos mil portugueses da população activa não têm
trabalho, não virão a ter, não têm subsídio de desemprego ou não virão a ter. o
que é que lhes querem fazer? Exterminá-los? Pô-los em fila à porta das
instituições de solidariedade? No fundo fazem sentir-lhes que são inúteis, tal
como os reformados. Se não existissem
era melhor. Nas prática procedem como se
eles estivessem a mais na vida. Ou achem que eles podem ser todos “empreendedores”
e “subir por mérito”? ou então que têm todos um QI baixo como disse a 27 de
Novembro o presidente da Câmara de Londres? Estamos num alto (será o máximo?)
do desprezo da direita pelos seres humanos.
O momento é de urgência. Por isso a
esquerda tem que se deixar de eleitoralismos, de protagonismos, de protagonismos
identitários. Tem que engolir elefantes ou mesmo dinossauros. O povo cujo
coração bate à esquerda, como é próprio dos corações, é muito mais amplo do que
as direcções (estimáveis) do BE, do Livre, do PC, do PS e dos interesses
individuais e/ou colectivos.
Quando o
grupo ad hoc que promoveu o Manifesto 3D se formou, e depois cresceu para 5000,
foi exactamente para unir a Esquerda correspondente ao povo da Esquerda, não
foi para sermos o “rés-do-chão esquerdo” ou o “oitavo esquerdo”. Para nós, que
já tivemos tantas vidas seria mais cómodo ficar a ver a banda passar.
A alternativa tem que passar por uma
grande volta! E ou a esquerda dá essa volta ou vamos caminhando para barbárie.»
Ainda bem que Isabel do Carmo revela
conceito tão optimista sobre a repressão da barbárie como proveniente da “volta”
da “esquerda”! O certo é que esta, não sei por que carga de água, se chamou “sinistra”
em latim.
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