terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

As vidas e as voltas de Isabel do Carmo


Isabel do Carmo foi, para mim, referência de escândalo e animosidade aquando do 25 de Abril. Soube que estivera presa pela Pide, (o que, para todos os efeitos lhe trouxera, como aos demais, a aura própria para a projecção seguinte), que fora revolucionária ferrenha, partidária de um governo revolucionário que virasse de vez a burguesia para espalhar a sua justiça, alcandorando o povo ao lugar cimeiro que lhe pertencia, provavelmente na redução e humilhação burguesa, pois que, para ela, na sua juventude, só existiria o povo, longo tempo humilhado e sacrificado. Era disso que falavam as baladas do Zeca Afonso, no “menino sem condição, irmão de todos os nus” convidando-o a tirar “os olhos do chão”, a vir “ver a luz”, e os doestos contra os “eles” que “comem tudo e não deixam nada”. Além de idêntica matéria nobremente defendida pelos escritores neo realistas, segundo intriga de contraste entre os ostracismos dos poderosos e as desventuras dos impotentes. Tudo boa gente, que desejava o bem dos pobres, já o próprio Guerra Junqueiro se fartara de o declarar mas mais liricamente, tal como o António Nobre e o Augusto Gil, só o Cesário se revoltava com as penúrias que observava, que, ao que parece, foram estigma da nossa condição, embora ainda há pouco uma rapariga do leste europeu com olhos lacrimosos me tenha mamado 50 cêntimos, como nós sem vergonha de pedir, provavelmente também educada nos registos de permissividade mendicante, que não há quem combata tais desvios da dignidade humana, se é que me é permitido fazer juízos de valor. Mas uma sociedade que se permite espoliar sem vergonha pode bem permitir-se o direito de pedir sem vergonha, que afinal tudo isso faz parte da natureza humana, já dentro dos preceitos bíblicos, onde até há bons ladrões que merecem o céu e bons samaritanos que salvam os assaltados, dentro da máxima de Cristo de que é preciso amar o próximo.
Mas o próximo para Isabel do Carmo e compinchas limitou-se naquela época apenas aos oprimidos e esqueceu todos os outros, mesmo que não tivessem sido opressores e apenas gente que lutava pela vida com o suor do seu rosto, como era seu dever, preceito igualmente bíblico, da etapa seguinte à dos tempos edénicos.
A Isabel do Carmo pós revolucionária, que certamente a vida própria tornou mais comedida, apesar de manter as ideias feitas, como, aliás, quase todos nós, sobre as vantagens das descolonizações, por exemplo, desinteressada das consequências fatais para tanta gente que aquelas provocaram, embora não se tratasse da gente que ela defendeu, e por isso inexistente para ela, como para quase todos nós, vem a terreiro atacar uma certa direita que se dispôs a inviabilizar a formação de um partido “3 D”, partido que pretende modernizar o conceito de esquerda, considerando esta já sediça e sensaborona, sem ideologia a não ser a mesma de sempre, visando os mesmos parâmetros de ataque à falibilidade dos que governam, os quais não defendem “os interesses dos trabalhadores” como deve ser. É um artigo que historia a acção da esquerda ao longo dos tempos, na conquista de direitos, suponho que incluindo o de co-adopção por casais homossexuais, (embora estes não venham nas parábolas bíblicas), mas não se coibindo de condenar a esquerda estalinista, esquecendo os crimes anteriores, do assassínio do czar Nicolau e toda a família, continuando por Lenine... Pateticamente, Isabel do Carmo reserva-se a exclusividade dos bons sentimentos, atribuindo à direita a urgência de extermínio dos velhotes e outras vilezas.
Saiu no Público de 19/1, intitula-se «Manifesto 3D, a esquerda e uma certa política»:
«O manifesto 3D tem incomodado muita gente e nomeadamente uma certa direita. Uma direita cínica, displicente, dizendo-se pragmática, que não é conservadora no sentido tradicional, que não acredita em nada nem nela própria. Contraditoriamente é muito firme sob o ponto de vista ideológico, sendo que essa ideologia é a base estrutural na qual se baseia o sistema financeiro económico que nos domina.
Perturbando-se com o Manifesto 3D, o que só o dignifica, resolveu denegrir toda a esquerda, no sentido actual e no sentido histórico, dando-a por morta e enterrada. Em relação a Portugal, a porta de responsabilidade dos consideráveis só a abre ao PS se este entrar em compromisso com a direita, isto é, se em próximas eleições legislativas o PS ficar numa posição que o leve a acordos governamentais ou parlamentares com o PSD/CDS. Esta seria uma grande desgraça para o nosso país. Teríamos a continuação da mesma política actual um pouco mais adocicada, mantendo o emaranhado de compromissos na Europa e em Portugal. Ou seja, o “statu quo”.
Historicamente, a esquerda ou tal como se designava tem de facto páginas muito negras no seu passado. E muito mau será se aqueles que hoje se consideram de esquerda não proclamem tantas vezes quantas são necessárias que repudiam e denunciam as várias formas de estalinismo, para usar uma designação genérica que abrange muito mais do que uma só criatura. Tal como se passa com a Inquisição e os seus continuadores na Igreja Católica, não há “contexto histórico” que os absolva. Podemos pois falar claro sobre o presente e o passado. E poderemos então ver de que lado funcionou de facto a esquerda depois de se sentar desse lado na assembleia durante o período da Revolução Francesa.
Foi a esquerda que lutou contra a escravatura foi a esquerda (as mulheres e alguns homens) que lutou pelos direitos das mulheres, foi a esquerda que descreveu as condições miseráveis dos trabalhadores durante a Revolução Industrial (Flora Tristan em França e em Inglaterra, Engels em Inglaterra.), foi a esquerda que pôs em romance as diferenças de classes e a revolta (Victor Hugo e tantos outros), foi a esquerda que lutou pelas 8 horas de trabalho e depois pelo “weekend”. Foi a esquerda (partido Trabalhista na Grã Bretanha) que criou o primeiro Serviço Nacional de Saúde (a lei de Bismark era apenas de “caixas” para quem trabalhava), foi a esquerda que organizou a resistência apo nazismo nos países ocupados, foi a esquerda que lutou contra o apartheid (só agora é que são todos admiradores de Mandela). Foi a esquerda que lutou contra a ditadura em Portugal, foi a esquerda que derrubou as ditaduras da América Latina.
Quando hoje alguns de nós nos sentimos motivados para apelar à unidade da esquerda é antes uma questão ética.
Não somos nós que inventamos, são números oficiais que nos mostram que um quarto da população portuguesa está em estado de pobreza e que trezentos mil portugueses da população activa não têm trabalho, não virão a ter, não têm subsídio de desemprego ou não virão a ter. o que é que lhes querem fazer? Exterminá-los? Pô-los em fila à porta das instituições de solidariedade? No fundo fazem sentir-lhes que são inúteis, tal como os  reformados. Se não existissem era melhor.  Nas prática procedem como se eles estivessem a mais na vida. Ou achem que eles podem ser todos “empreendedores” e “subir por mérito”? ou então que têm todos um QI baixo como disse a 27 de Novembro o presidente da Câmara de Londres? Estamos num alto (será o máximo?) do desprezo da direita pelos seres humanos.
O momento é de urgência. Por isso a esquerda tem que se deixar de eleitoralismos, de protagonismos, de protagonismos identitários. Tem que engolir elefantes ou mesmo dinossauros. O povo cujo coração bate à esquerda, como é próprio dos corações, é muito mais amplo do que as direcções (estimáveis) do BE, do Livre, do PC, do PS e dos interesses individuais e/ou colectivos.
 
  Quando o grupo ad hoc que promoveu o Manifesto 3D se formou, e depois cresceu para 5000, foi exactamente para unir a Esquerda correspondente ao povo da Esquerda, não foi para sermos o “rés-do-chão esquerdo” ou o “oitavo esquerdo”. Para nós, que já tivemos tantas vidas seria mais cómodo ficar a ver a banda passar.
 
A alternativa tem que passar por uma grande volta! E ou a esquerda dá essa volta ou vamos caminhando para barbárie.»
 
 
Ainda bem que Isabel do Carmo revela conceito tão optimista sobre a repressão da barbárie como proveniente da “volta” da “esquerda”! O certo é que esta, não sei por que carga de água, se chamou “sinistra” em latim.

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