O Embaixador Francisco
Henriques da Silva, que escreve o artigo “A
CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA UNIDADE EUROPEIA”, publicado
no blog “A Bem da Nação”, deve ter sentido muitas vezes o tal sentimento de
superioridade dos povos nortenhos para com os do sul, que descreve, lembrando
quanto o excesso de equilíbrio e seriedade desses não significa propriamente
virtude, que o excesso de autoconvicção vaidosa logo minimiza ou até destrói.
Um dia também a minha filha Paula, que esteve na Bélgica a assistir a aulas de
professores belgas, integrada num projecto educativo da sua escola, sentiu
quanto foi isenta de afecto humano a aula de determinado professor, rígido no
comando impecável da sua aula, sem lugar a desvios nem a devaneios de
comportamento. Mas é claro que não se pode generalizar, embora um dos
comentários que o artigo mereceu – de Apmachado – revele também que tais
atitudes de superioridade intelectual dos povos europeus do norte e do centro
sejam desfiguradas quando confrontadas com os valores morais de sensibilidade e
generosidade. Afirma Apmachado: “Convém não esquecer as
experiências sobre os efeitos da radioactividade feitas na Suécia, pelos finais
dos anos '40. As cobaias foram indigentes e deficientes mentais.”
Eis o artigo do Embaixador Francisco Henriques da Silva:
A CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA
UNIDADE EUROPEIA
Um dos grandes problemas no mundo em que vivemos é que o Norte, em
geral, assume uma atitude de superioridade, de sobranceria e de desprezo em
relação ao Sul (refiro-me, principalmente, à Europa, bem entendido, mas não
só).
As excepções confirmam invariavelmente a regra. Os protestantes
puritanos (calvinistas ou luteranos), sérios, disciplinados, trabalhadores do
Norte consideram-se sempre superiores às preguiçosas, indisciplinadas,
hedonistas e intrinsecamente desonestas gentes do Sul. Estes clichés ou
estereótipos, porque é disso mesmo que se trata, não ajudam nada neste mundo
globalizado em que vivemos e destroem toda e qualquer noção por ténue que seja
de uma pretensa Europa unida e solidária e, principalmente, com uma causa comum
a ser defendida por todos.
Os desentendimentos entre os seres humanos que dão origem aos
grandes conflitos têm a sua origem em problemas tal como os descritos, que são
primários, mas reais. De facto, as gentes do Norte não têm espelhos para se
observarem com atenção e desde sempre foram – e são – incapazes de qualquer
"mea culpa" ou de uma simples atitude de aproximação e de concórdia.
Pairam por cima de tudo isso. A razão está sempre do seu lado, iluminados que
estão por Deus e pelo espírito do neoliberalismo irrestrito e omnipresente.
Um dia as coisas vão acabar mal, muito mal, mesmo, como já ocorreu
no passado e os exemplos podem multiplicar-se.
É preciso relevar que a civilização nunca nasceu a Norte, mas sim
na bacia do Mediterrâneo e nos grandes rios do Médio Oriente e da Ásia. Todos
sabemos disso. Vem nos livros de História. Quando nos apresentam o Norte como
uma escola de virtudes e o Sul como um inferno de vícios, o que para além de
ser uma inverdade, acicata ódios ancestrais e irracionais que existem, que não
se dissipam com o tempo e muito menos com atitudes destas.
Um exemplo entre muitos: a Dinamarca passa por ser o país mais
feliz do mundo, como se a felicidade fosse mensurável numa escala qualquer como
a temperatura em graus Celsius, a velocidade em quilómetros horários ou os
terramotos na escala de Richter. Depois os nossos amigos dinamarqueses matam
girafas para as criancinhas verem ou golfinhos em rios de sangue nas ilhas
Faroe. Neste último caso, às críticas argumentam que o arquipélago é uma região
autónoma com Governo próprio, mas será que vamos permitir que Açores, Madeira,
Canárias, Baleares, Sardenha e Sicília também regiões autónomas, façam o que
lhes der na real gana e ainda lhes sobre tempo?
Esses dois factos (matar girafas e matar baleias) também entram na
medida da felicidade? Vi crianças africanas com fome felizes com toscos
brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos lábios em aldeias
paupérrimas. O que é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?
Quo vadis Europa? Francisco
Henriques da Silva (Embaixador)
Tais considerandos trouxeram-me
à ideia o livro autobiográfico de Liv Ullmann, grande actriz norueguesa que, no
seu livro “Mutações”, de extrema sensibilidade e inteligência, revela
radicalismos da sociedade convencional norueguesa idênticos aos de qualquer
outra sociedade mais limitada dos países do sul, nas experiências que tão expressivamente
relata, o que nos causou estranheza. Mas foi o retrato da sua avó, sua grande
companheira e amiga nos tempos da adolescência rebelde, que sobretudo
estranhámos na solução final familiar de internamento num centro para idosos,
asséptico e intransigente, como os seres que nele se moviam escrupulosamente
competentes, e definitivos, últimos acompanhantes impessoais e gélidos das
vidas idosas, que foram bem diversamente povoadas nas suas vidas anteriores:
«É doloroso lembrar a última
parte da vida dela. Um lar para velhos. Mobilado com bom gosto. Todas as cores
combinando, as funcionárias com aventais brancos e sorrisos pacientes.
Entretanto, logo que a campainha tocava, para o café da manhã, o almoço ou a
ceia, as cinquenta velhas senhoras imediatamente tinham de sair dos seus
quartos e seguir para o refeitório. Sentar-se
à mesa com aqueles cuja companhia não desejavam. Conversar sobre acontecimentos
pelos quais não sentiam nenhum interesse. Ter amigas com as quais só possuíam
em comum a solidão e a espera.
O pânico,
quando ela tinha de passar um dia deitada; três dias deitada representavam uma
transferência para a ala da enfermaria. Havia uma longa lista de espera para os
quartos de residência e raramente alguém voltava da enfermaria. Um dia, a avó
também foi levada para lá.
É muito melhor
para os velhos ter supervisão constante, poder ficar com outros na mesma situação.
“Os parentes que só desejam o melhor para os seus entes queridos e os enviam
para uma instituição onde não se é mais “eu”, e sim “nós”.
“Nós” temos
de ir para a cama um tanto cedo, talvez - se é que “nós” nos conseguimos
levantar, naquele dia. Algumas vezes, as
abluções nocturnas e preparativos para a noite são às quatro da tarde. Um tanto
cedo, talvez, mas há falta de funcionários – e “nós” não temos tanta coisa
assim para fazer, de qualquer modo, quando “nós” estamos acordadas.
Bater à porta já não é necessário. Que tipo de segredos
pode ter uma pessoa velha? Alguém que só dispõe de um leito, a menos de um
metro de distância do vizinho. Onde não há livros nem móveis nem quadros. Segundo
o regulamento. Mas se a enfermeira é boazinha “nós” podemos pendurar uma
fotografia na parede. (mas é melhor não usar prego – deixam uma marca feia).
Assim, “nós” podemos ficar deitadas e olhar fotografias da família e dos amigos
que têm tanto a fazer, nas suas próprias vidas, a ponto de adiarem semanas a
visita ao velho. Afinal “nós” temos tanto conforto. Algumas vezes, parece que
as visitas são um aborrecimento. …»
Mas quando pensamos que é nesses
países da intelectualidade que se registam as criações mais poderosas de
ambientes e caracteres humanos, como Shakespeare, ou Kafka, ou o quadro “O
Grito” de Munch expressivo de total desespero humano, compreendemos quanto o
tal “dolce far niente” da boémia sulista, também é necessário neste mundo imperfeito,
onde existem crianças, como afirmou o Embaixador Francisco Henriques da Silva
no seu artigo, “crianças africanas com
fome, felizes com toscos brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos
lábios em aldeias paupérrimas.” para
concluir sobre o relativismo do conceito de felicidade “O que
é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?”
De facto, uma tal doutrina de
pureza rácica, tão do agrado ainda hoje, converteu-se em hediondo holocausto
não há muitos anos. Esperamos, os da Europa do sul, não chegar a esse ponto de
rejeição. Mas respeitemos melhor as regras. Do bom senso, pelo menos. Não por
conta da unidade europeia, que isso é utopia, mas como cidadãos construtores de
um mundo, de facto, mais equilibrado.
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