sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Dove andiamo?




O Embaixador Francisco Henriques da Silva, que escreve o artigo “A CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA UNIDADE EUROPEIA, publicado no blog “A Bem da Nação”, deve ter sentido muitas vezes o tal sentimento de superioridade dos povos nortenhos para com os do sul, que descreve, lembrando quanto o excesso de equilíbrio e seriedade desses não significa propriamente virtude, que o excesso de autoconvicção vaidosa logo minimiza ou até destrói. Um dia também a minha filha Paula, que esteve na Bélgica a assistir a aulas de professores belgas, integrada num projecto educativo da sua escola, sentiu quanto foi isenta de afecto humano a aula de determinado professor, rígido no comando impecável da sua aula, sem lugar a desvios nem a devaneios de comportamento. Mas é claro que não se pode generalizar, embora um dos comentários que o artigo mereceu – de Apmachado – revele também que tais atitudes de superioridade intelectual dos povos europeus do norte e do centro sejam desfiguradas quando confrontadas com os valores morais de sensibilidade e generosidade. Afirma Apmachado: Convém não esquecer as experiências sobre os efeitos da radioactividade feitas na Suécia, pelos finais dos anos '40. As cobaias foram indigentes e deficientes mentais.”
Eis o artigo do Embaixador Francisco Henriques da Silva:

A CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA UNIDADE EUROPEIA
Um dos grandes problemas no mundo em que vivemos é que o Norte, em geral, assume uma atitude de superioridade, de sobranceria e de desprezo em relação ao Sul (refiro-me, principalmente, à Europa, bem entendido, mas não só).

As excepções confirmam invariavelmente a regra. Os protestantes puritanos (calvinistas ou luteranos), sérios, disciplinados, trabalhadores do Norte consideram-se sempre superiores às preguiçosas, indisciplinadas, hedonistas e intrinsecamente desonestas gentes do Sul. Estes clichés ou estereótipos, porque é disso mesmo que se trata, não ajudam nada neste mundo globalizado em que vivemos e destroem toda e qualquer noção por ténue que seja de uma pretensa Europa unida e solidária e, principalmente, com uma causa comum a ser defendida por todos.

Os desentendimentos entre os seres humanos que dão origem aos grandes conflitos têm a sua origem em problemas tal como os descritos, que são primários, mas reais. De facto, as gentes do Norte não têm espelhos para se observarem com atenção e desde sempre foram – e são – incapazes de qualquer "mea culpa" ou de uma simples atitude de aproximação e de concórdia. Pairam por cima de tudo isso. A razão está sempre do seu lado, iluminados que estão por Deus e pelo espírito do neoliberalismo irrestrito e omnipresente.

Um dia as coisas vão acabar mal, muito mal, mesmo, como já ocorreu no passado e os exemplos podem multiplicar-se.

É preciso relevar que a civilização nunca nasceu a Norte, mas sim na bacia do Mediterrâneo e nos grandes rios do Médio Oriente e da Ásia. Todos sabemos disso. Vem nos livros de História. Quando nos apresentam o Norte como uma escola de virtudes e o Sul como um inferno de vícios, o que para além de ser uma inverdade, acicata ódios ancestrais e irracionais que existem, que não se dissipam com o tempo e muito menos com atitudes destas.

Um exemplo entre muitos: a Dinamarca passa por ser o país mais feliz do mundo, como se a felicidade fosse mensurável numa escala qualquer como a temperatura em graus Celsius, a velocidade em quilómetros horários ou os terramotos na escala de Richter. Depois os nossos amigos dinamarqueses matam girafas para as criancinhas verem ou golfinhos em rios de sangue nas ilhas Faroe. Neste último caso, às críticas argumentam que o arquipélago é uma região autónoma com Governo próprio, mas será que vamos permitir que Açores, Madeira, Canárias, Baleares, Sardenha e Sicília também regiões autónomas, façam o que lhes der na real gana e ainda lhes sobre tempo?

Esses dois factos (matar girafas e matar baleias) também entram na medida da felicidade? Vi crianças africanas com fome felizes com toscos brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos lábios em aldeias paupérrimas. O que é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?
Quo vadis Europa?  Francisco Henriques da Silva (Embaixador)

Tais considerandos trouxeram-me à ideia o livro autobiográfico de Liv Ullmann, grande actriz norueguesa que, no seu livro “Mutações”, de extrema sensibilidade e inteligência, revela radicalismos da sociedade convencional norueguesa idênticos aos de qualquer outra sociedade mais limitada dos países do sul, nas experiências que tão expressivamente relata, o que nos causou estranheza. Mas foi o retrato da sua avó, sua grande companheira e amiga nos tempos da adolescência rebelde, que sobretudo estranhámos na solução final familiar de internamento num centro para idosos, asséptico e intransigente, como os seres que nele se moviam escrupulosamente competentes, e definitivos, últimos acompanhantes impessoais e gélidos das vidas idosas, que foram bem diversamente povoadas nas suas vidas anteriores:

«É doloroso lembrar a última parte da vida dela. Um lar para velhos. Mobilado com bom gosto. Todas as cores combinando, as funcionárias com aventais brancos e sorrisos pacientes. Entretanto, logo que a campainha tocava, para o café da manhã, o almoço ou a ceia, as cinquenta velhas senhoras imediatamente tinham de sair dos seus quartos e seguir para o refeitório. Sentar-se à mesa com aqueles cuja companhia não desejavam. Conversar sobre acontecimentos pelos quais não sentiam nenhum interesse. Ter amigas com as quais só possuíam em comum a solidão e a espera.
O pânico, quando ela tinha de passar um dia deitada; três dias deitada representavam uma transferência para a ala da enfermaria. Havia uma longa lista de espera para os quartos de residência e raramente alguém voltava da enfermaria. Um dia, a avó também foi levada para lá.
É muito melhor para os velhos ter supervisão constante, poder ficar com outros na mesma situação. “Os parentes que só desejam o melhor para os seus entes queridos e os enviam para uma instituição onde não se é mais “eu”, e sim “nós”.
“Nós” temos de ir para a cama um tanto cedo, talvez - se é que “nós” nos conseguimos levantar, naquele dia.  Algumas vezes, as abluções nocturnas e preparativos para a noite são às quatro da tarde. Um tanto cedo, talvez, mas há falta de funcionários – e “nós” não temos tanta coisa assim para fazer, de qualquer modo, quando “nós” estamos acordadas.
Bater  à porta já não é necessário. Que tipo de segredos pode ter uma pessoa velha? Alguém que só dispõe de um leito, a menos de um metro de distância do vizinho. Onde não há livros nem móveis nem quadros. Segundo o regulamento. Mas se a enfermeira é boazinha “nós” podemos pendurar uma fotografia na parede. (mas é melhor não usar prego – deixam uma marca feia). Assim, “nós” podemos ficar deitadas e olhar fotografias da família e dos amigos que têm tanto a fazer, nas suas próprias vidas, a ponto de adiarem semanas a visita ao velho. Afinal “nós” temos tanto conforto. Algumas vezes, parece que as visitas são um aborrecimento. …»

Mas quando pensamos que é nesses países da intelectualidade que se registam as criações mais poderosas de ambientes e caracteres humanos, como Shakespeare, ou Kafka, ou o quadro “O Grito” de Munch expressivo de total desespero humano, compreendemos quanto o tal “dolce far niente” da boémia sulista, também é necessário neste mundo imperfeito, onde existem crianças, como afirmou o Embaixador Francisco Henriques da Silva no seu artigo,  “crianças africanas com fome, felizes com toscos brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos lábios em aldeias paupérrimas.” para concluir sobre o relativismo do conceito de felicidade “O que é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?”

De facto, uma tal doutrina de pureza rácica, tão do agrado ainda hoje, converteu-se em hediondo holocausto não há muitos anos. Esperamos, os da Europa do sul, não chegar a esse ponto de rejeição. Mas respeitemos melhor as regras. Do bom senso, pelo menos. Não por conta da unidade europeia, que isso é utopia, mas como cidadãos construtores de um mundo, de facto, mais equilibrado.



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