Lembrei-me de “O Palácio da Ventura” de Antero
de Quental, ao ler no Público o artigo “Esquerdas” de Vasco
Pulido Valente, sobre, precisamente, as Esquerdas, que estão a “cair aos
bocados”, seguindo a opinião arteira do articulista.
Aconteceu com Antero, na busca da sua Ventura, pura
ilusão, desfeita em “silêncio, escuridão e nada mais” da sua conclusão
de abstracção progressiva:
O Palácio da Ventura
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais! "Sonetos"
Aconteceu
com Camões, desesperançado do amor e da alegria, paralisado na ambição, mas
afinal sujeito novamente aos efeitos mortíferos do tal “não sei quê” do seu
achado anafórico:
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que n'alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.
São estados de alma criados por sofrimentos íntimos,
angústias existenciais, tentativas de definição do indefinível. A harmonia do
discurso clássico.
Não assim o que é dito da Esquerda portuguesa por
Vasco Pulido Valente. Esta não tem aspirações à harmonia, as suas dores íntimas
provêm de ambições e raivas e impotências que tudo arrasam, concedida que lhes
foi a liberdade para arrasar – os outros partidos em primeiro lugar, os seus
próprios partidos em segundo lugar, que anseiam fortalecer, criando um partido com
os melhores entre os bons. Cavaleiros de um novo Apocalipse de pureza arrasante
e simbólica, em ameaça de guerra – a guerra genérica, a guerra interna, a fome,
as doenças e a morte – segundo as cores - branca, vermelha, preta, esverdeada –
dos respectivos cavalos, (no relato do Apóstolo João em “Apocalipse 6”, de
visão profética e circular.
Assim vivemos também. Aos círculos, escutando ameaças,
sem esperança, em profecia. Alguns – das Esquerdas - tentando firmar-se,
em novos arremedos de vida que implicam esperança, mas desabando em guerra.
Trabalho! Seria um remédio substituto de tanto alarido.
«ESQUERDAS»
«O Bloco de Esquerda, sem causas, sem a influência dos
fundadores e sem destino na política portuguesa, começa a cair aos bocados.
Primeiro, foi o movimento de Alternativa Socialista,
comandado por um tal Gil Garcia, que ninguém sabe quem é. Depois foi o Partido
Livre de Rui Tavares, que aparentemente queria voltar para o Parlamento
Europeu. E, no fim, o Manifesto 3 D, atribuído a Daniel Oliveira, que juntava
com solenidade uma série de disparates, para não chegar a parte nenhuma. Não se
percebe o que separa o Bloco das suas crias, nem o que individualmente
distingue cada cria. Mas devemos supor que há entre toda a gente divergências
gravíssimas, porque se não houvesse não haveria também a balbúrdia instalada na
“esquerda” e o ódio fraterno habitual nestas zangas.
O que o simples cidadão comum gostaria que lhe
dissessem é para onde vão estes pequenos bandos de entusiastas. Antigamente, a
velha esquerda tinha querelas compreensíveis. Nunca, por exemplo, se duvidou da
espécie de querela que opunha o dr. Cunhal ao dr. Soares, que, resto, vinha do
princípio do século XX e continuou durante a revolução. Hoje, a zaragata desta
nova “esquerda”, fora o insulto pessoal, parece não ter objecto. As personagens
que por aí andam pedem sem excepção uma única coisa: a unidade. E não fazem a
unidade, porque acham alguns dos putativos parceiros dela indignos de a gozar.
Por esta lógica, a unidade acabará por ser a unidade de um só militante, inteiramente
de acordo consigo próprio, excepto se à última hora o sr. Tavares se conseguir
pendurar no PS do sr. Seguro.
Ainda por cima a ideia de formar um “partido” ou um
“movimento” contra o Bloco para procurar a unidade com esse mesmo Bloco não
brilha pela sua excepcional racionalidade. Por duas razões. Primeira, porque
acirra o facciosismo dos militantes que ficaram. Segundo, porque inspira alguma
suspeita sobre a firmeza dos que ficaram. Além disso, que chegava e sobrava, o
sr. Tavares constituiu um “partido” em que não há um “chefe” e uma direcção.
Quinze militantes vão decidir pela sua incomunicável cabeça a política da
agremiação, que presumivelmente apresentará sempre 15 políticas diferentes.
Nenhuma instituição séria, como se calcula, se arriscará a negociar com eles
seja o que for ou para o que for. Quanto a Daniel Oliveira, já falhou o seu
grande plano de apresentar uma “frente comum” à intrínseca malvadez da direita
e ficou reduzido a berrar pela televisão. No fundo, o que esta “esquerda”
precisa é de um festival no Coliseu. Para desabafar à vontade.»
Mas alguns desses espíritos, ao contrário do que
afirma Pulido Valente, talvez sintam antes as ânsias místicas daquele outro
poeta da nossa universalidade, Fernando Pessoa, apaziguemos a nossa alma:
Do Vale à Montanha
Do
vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
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