“A pobreza do discurso”, um artigo de João César das Neves,
publicado no blog “A Bem da Nação”, que põe o dedo na chaga do nosso statu
de encardimento social cristalizado num genérico de pobreza, caridade e
reclamação, numa envolvência de disparidade social cada vez mais ténue, mas com
bolsas de despreocupação mundividente , a cargo dos que seguem a eito no
bem-estar sem preconceito.
Pobreza: eis um estado social que prevaleceu
ao longo da nossa história nacional, estabelecida nos parâmetros dos que
governaram a nação, chamando a si e às classes da sua envolvência mais próxima,
a riqueza e a dissipação, deixando à classe proletária trabalhadora o encargo
da manutenção do status nobiliárquico, por meio da imposição de impostos
onerosos e rebaixantes.
Mas enquanto os outros povos
ocidentais se foram libertando do afundamento ou marginalização, porque do povo
surgiu uma burguesia que trabalhou e se diferençou culturalmente, e alargou a
sua influência esclarecida, no nosso país a grande massa popular permaneceu
atolada e envilecida na inércia do atraso cultural, de hábil conveniência
superior, ciente de que as luzes do esclarecimento cultural a breve trecho
conduziriam a reclamação de direitos despropositados, já que o mundo afinal
sempre se regeu segundo os parâmetros da superioridade e da inferioridade, esta
última confundida, naturalmente, com escravatura e/ou servilismo.
Vem de longa data o apontar desses
males entre nós, quer em temática de desconcerto, quer na acusação feita pelo
próprio povo explorado, na pena desafiadora de Gil Vicente, caso do seu Lavrador
com a sua extraordinária autodefesa da acusação feita pelo Diabo e o Anjo, que
não é demais repetir: «Bofá, Senhor, mal pecado, / sempre é morto quem do
arado / há-de viver. / Nós somos vida das gentes / e morte das nossas
vidas; / a tiranos - pacientes / que a unhas e a dentes / nos têm as almas
roídas. / Para que é parouvelar? / Que queira ser pecador / o Lavrador; / não
tem tempo nem lugar / nem somente d’alimpar / as gotas do seu suor. / Na igreja
bradam com ele, / porque assobiou a um cão; / e logo excomunhão na pele. / O
fidalgo maçar nele /até o mais triste rascão. / Se não levam torta a mão, / não
lhe acham nenhum direito. / Muito atribulados são! / Cada um pela o vilão / por
seu jeito.”» Os poetas e outros escritores mais recentes fizeram também da
miséria motivos do seu discurso piedoso, revoltado e impotente o de Cesário,
referente, entre outros exemplos, ao cantarolar da engomadeira tísica, de
paradoxo ambíguo e superior o de Pessoa, referente ao canto da “pobre ceifeira”,
de intuito politicamente interventivo o dos escritores neo realistas.
Mas, afirma César das Neves, “Hoje
fala-se muito mais de pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise”, esclarecendo
bem a questão, na sua análise dos vários atributos que definem o povo
português, generoso por natureza, sabendo, por experiência própria dar valor à escassez
de recursos, e praticando facilmente a solidariedade ou a caridade que lhe
eleva a estima própria.
As filosofias políticas têm
igualmente contribuído para o alargar das referências à pobreza, como temática
por excelência para afundar de vez com o governo- seja ele qual for, mas
sobretudo este – como bem explica o texto de César das Neves.
De qualquer forma, o tabu
estabelecido a esse respeito dantes, provinha de que as desigualdades sociais eram
dado adquirido que não perturbava as consciências - aliás educadas nos
princípios bíblicos dos pobrezinhos merecedores do Reino dos Céus, segundo dado
consensual dos cinismos aristocráticos, além de que as temáticas dos escritores
tinham mais a ver com as clássicas do amor, da beleza, da natureza, da juventude,
da morte, das espiritualidades… E isso pertencia às mentes esclarecidas, dum
modo geral conotadas com a nobreza, a democratização trazida mais tarde, pelos
espíritos aburguesados que lutaram pelas igualdades sociais.
E são essas de que mais se fala entre nós,
não só por causa da crise, mas porque andamos sempre atrasados nos estudos. A
Revolução Francesa foi há mais de dois séculos, os outros povos estabilizaram há
muito as suas mudanças sociais e temáticas. Nós continuamos à deriva, nas
temáticas do nosso descontentamento repetidas à exaustão, na pobreza do nosso
discurso.
«A pobreza do discurso»
Hoje
fala-se muito mais de pobreza do que antes, o que é normal, dada a crise.
Além
disso, nestes tempos difíceis Portugal tem brilhado em solidariedade e
entreajuda. Mas as duas coisas estão bastante desligadas. A caridade, em geral
discreta, pouco tem que ver com o que se diz da pobreza.
Primeiro,
porque quem fala sobre miséria costuma estar zangado. Isso até é compreensível,
mas a irritação, mesmo bem intencionada, gera exageros, discórdias, perda de
objectividade, o que é lamentável em problema tão grave.
Segundo,
a quase totalidade dos que elaboram sobre pobreza não são pobres. Também isso é
natural, pois os verdadeiros necessitados, por o serem, não têm voz ou
influência. Captar auditório é, em si mesmo, um importante activo, que falta
aos indigentes. Por isso, aqueles que ouvimos falam de algo que de facto não
experimentaram, e em geral mal viram.
Talvez
o aspecto mais inesperado seja que, no fundo, as recentes conversas sobre
pobreza tratem de outro assunto. Porque o tema delas é quase sempre política.
Sem duvidar da integridade e da boa intenção do orador, temos de dizer que a finalidade imediata da retórica
não é aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, derrubar o Governo, combater a
reforma do Estado, o Orçamento ou outro decreto particular.
A miséria serve de pano de fundo para manifestos doutrinais.
Este
facto é muito desconcertante, por duas razões. Primeiro porque as medidas do
Governo têm trazido sempre ressalvas nos rendimentos mais baixos. Como explicar
então que, apesar disso, tantos protestem em nome deles? Mas a suprema
estranheza advém de os defensores dos pobres se virarem para o Estado, que
todos sabem ser há séculos um inimigo dos miseráveis.
Reis,
imperadores e governantes nunca se interessaram pelos desgraçados, quando não
os perseguiam. O poder não gosta dos pobres e estes confiam mais na ajuda do
próximo que nas promessas dos chefes. Há muito que é a Igreja, não o Governo, a
tratar dos necessitados. As coisas parecem diferentes na moderna democracia
assistencialista, mas um velho princípio económico mostra a ingenuidade dessa
ilusão.
Foi
em 1970 que o prémio Nobel George Stigler (1911-1991) formulou, num dos seus
textos clássicos, a lei que atribuiu ao colega da Universidade de Chicago Aaron
Director (1901-2004): "Director"s Law of Public Income
Redistribution" (Journal
of Law and Economics, Vol. 13, n.º 1, p. 1-10). Esse teorema
afirma que "as
despesas públicas são feitas para o benefício primordial da classe média e
financiadas com impostos suportados em parte considerável pelos pobres e pelos
ricos" (op. cit.
p. 1).
A
sua base lógica advém naturalmente de, representando de longe a maior parte da
sociedade, as classes médias atraírem naturalmente as graças dos eleitos.
Hoje
Portugal, devido às imposições da troika,
vive um corolário desta lei em condições inversas. Como nas décadas de
endividamento os benefícios seguiram esse princípio, dirigindo-se para os
extractos intermédios, agora é aí que cai o corte nas despesas. Aliás, a
verdadeira razão da raiva extrema contra o Governo vem da pressão sobre a
classe média, uma violação forçada da "lei de Director".
Assim
se explicam as confusões dos discursos sobre pobreza.
A
maioria dos que falam em nome dos desprovidos estão realmente a defender as
classes acima, mesmo se nos extractos mais baixos. As medidas contestadas não
tocam os verdadeiros pobres, geralmente alheios aos políticos, até de esquerda.
As greves dos serviços públicos não
se destinam a proteger os desvalidos, que aliás são os que mais sofrem pela
falta de transporte e outros sistemas.
Em
Portugal não há manifestações de mendigos, miseráveis e necessitados. São antes
os remediados, que se consideram carentes, que fazem as exigências em nome dos
silenciosos.
Boa
parte da retórica de contestação baseia-se neste mal-entendido, em que
burgueses passam por infelizes. Entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos
como sempre, ainda têm de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome.
João
César das Neves
Nenhum comentário:
Postar um comentário