domingo, 23 de fevereiro de 2014

Como um dos Reis Magos…



Fui das pessoas que admirou Vítor Gaspar e que se assustou quando ele se demitiu, augurando consequências negativas da sua saída, como pessoa que sempre me parecera um travão necessário à nossa tosca prodigalidade de meninos malandros brincando aos governos. Gostava do seu ar inteligente, das suas explicitações de evidências, a tomar-nos por parvos, troçando da nossa imaturidade e ignorância de dissipadores desonestos, que era preciso pôr no bom caminho, numa forçada austeridade para pagamento de dívida, o que só lhe angariaria inimizades, visto que, meninos malandros vivendo em casa dos papás, sem a responsabilidade da sobrevivência, entendíamos que a fartura inabitual fora direito adquirido sem que a dívida nos devesse ser jamais colectada. E daí as troças da nossa vingança - o ar embatucado de Vítor Gaspar, a sua dificuldade de comunicação, o fino humor de algumas suas tiradas – talvez vingativas, talvez de superioridade desdenhosa – fizeram desencadear imitações caricaturais em frequentes sketches humorísticos reveladores da nossa sensibilidade vingativa e, afinal, da nossa capacidade de resposta à provocação, demonstrando que não somos tão parolos como ele quis fazer crer.
Mas Vítor Gaspar foi uma figura necessária, na tentativa que fez o governo de Passos Coelho de encontrar credibilidade junto ao estrangeiro que nos emprestou o dinheiro, para iniciarmos a recuperação económica do país que uma dívida monstruosa afundou. Deixou como sucessora uma mulher valente – Maria Luís Albuquerque – que continua na mesma linha de rigidez económica, cortando nos vencimentos e nas carreiras, a caminho, ao que se afirma, de uma ainda parca recuperação, mas que não convém perder.
Daí que se perceba o teor do artigo «Uma certa nostalgia de Vítor Gaspar», do jornalista Pedro Sousa Carvalho, baseado no livro de Maria João Avilez sobre o ex-ministro, e publicado no “Público” de 14/2, nostalgia que provém do apreço pelos critérios de hombridade, e por isso receosos das prodigalidades prometidas por alguns políticos para o pós-troika, prodigalidades de um pré-eleitoralismo insensato. A austeridade é para se manter, e Passos Coelho, que é a pedra chave do processo, garante-a. Ontem, os do seu partido aplaudiram-no, Paulo Rangel afirmou o novo apreço europeu por este país cumpridor. Assusta pensar em Seguro como seguidor de Passos Coelho, num governo PS. Daí a nostalgia de Vítor Gaspar, um Gaspar que, tal o outro, trouxe prendas para um pobre menino deitado em palhas. Mas ao contrário desse Menino que sempre soube o caminho, e por isso recebeu ouro e preciosidades do seu visitante, as prendas do nosso Gaspar foram o apontar do verdadeiro caminho da salvação nacional – o da contenção. É necessário continuá-la:

«Uma certa nostalgia de Vítor Gaspar»
«Depois de seis meses de ausência, eis que Vítor Gaspar regressa, agora sob a forma de livro. Em conversa com Maria João Avillez, num estilo pergunta/resposta, o anterior ministro das Finanças coloca-se num elevado pedestal (intelectual, economista culto, estratega, negociador e visionário) e é de lá de cima que continua a olhar para a política e para os políticos, com um grande desdém. E esse foi o grande erro de Gaspar.
Percebe-se no livro que Gaspar não gosta da política (na acepção de Russel ou de Maquiavel, ou seja, a arte de conquistar e manter o poder), e diz que se vê como um espectador do “grande espectáculo da política”. Para Gaspar, a política sempre foi uma espécie de bug informático que fazia com que as suas contas no Excel nunca batessem certo. E para Vítor Gaspar, que diz que tende “a observar a política como um economista”, Paulo Portas deveria ser uma espécie de vírus informático que lhe estava sempre a "crashar" o portátil e a sua folha de Excel. Aliás, é com este desprezo profundo pela política que Vítor Gaspar justifica a sua saída de cena e as suas desavenças com Paulo Portas: “Não tenho qualquer vocação para resolver problemas de pura política.” Quando questionado sobre o comportamento do líder centrista na polémica questão da TSU dos pensionistas, o economista responde: “Não vou fazer comentários sobre o que poderão ter sido as motivações ou os processos mentais do Dr. Paulo Portas.” É como se Maria João Avillez lhe estivesse a pedir algum diagnóstico mental sobre algum doente do Júlio de Matos ou do antigo Conde Ferreira.
E esse foi o grande erro de Vítor Gaspar. Diz que sempre achou “imensa graça” ao processo político, e, até quando era mais novo, divertia-se a tentar “prever os resultados de eleições”. Maria João Avillez, talvez meio incrédula, pergunta-lhe: "Mas só gosta da política como uma espécie de jogo?" E Gaspar responde: "Tal qual, tal qual." E Gaspar escolheu Paulo Portas (ou Portas escolheu Gaspar) para jogar, e o líder do CDS-PP, o mais antigo líder partidário no activo, naturalmente ganhou. Nesta espécie de jogo de xadrez, segundo se lê nas entrelinhas da entrevista, o tabuleiro começou a pender para o lado de Portas quando a economia começou a dar os primeiros sinais de recuperação: “Como se veio a saber mais tarde, a actividade económica em Portugal tinha já fortemente recuperado no segundo trimestre. Isto mostra que a política e as percepções em política são um jogo de grande subtileza.” É Gaspar a reconhecer a inteligência política e o xeque-mate de Paulo Portas. Mas Gaspar tem a inteligência de reconhecer a importância da política: “A saída de Paulo Portas e o impacto que teve nos mercados mostram a força e a relevância da política.” E foi esse casamento entre a política e a economia que Gaspar nunca conseguiu fazer; eram dois softwares incompatíveis.
Gaspar não gosta da política, aborrece-o. Ainda todos se lembrarão da forma como Gaspar respondeu a Ana Drago no Parlamento – “Eu não fui eleito coisíssima nenhuma” –, como quem fazia questão de mostrar que ele e os deputados não eram feitos da mesma massa. A própria política sempre olhou para Gaspar como um corpo estranho, pela forma algo sobranceira como o antigo ministro olhava para o jogo da política.
Agora, Vítor Gaspar está a candidatar-se a um alto cargo no FMI, um lugar onde ele vai sentir-se em casa, no meio de tecnocratas iguais a ele, para quem a política é uma espécie de variável aleatória num modelo econométrico inventado nos corredores de Washington. Na hora da despedida, Maria João Avillez pergunta a Vítor Gaspar se os portugueses aprenderam alguma coisa com os erros do passado. E Gaspar responde, imagino que no seu tom pausado e mecânico, “é difícil dizer”.
Vítor Gaspar não vai deixar saudades. Mas quando se ouve Paulo Portas, já em pré-campanha eleitoral, a prometer que em 2015, ano de eleições, vai baixar o IRS, vá-se lá saber como, sente-se uma certa nostalgia. Vítor Gaspar exagerou na dose de austeridade. Mas quando se ouve Pires de Lima e o PSD-Lisboa a defenderem o aumento do salário mínimo nacional e uma descida do IVA, não se sabe muito bem com que dinheiro, sente-se uma espécie de nostalgia. Vítor Gaspar era um partidário da austeridade do custe o que custar. Mas quando se ouve António José Seguro a prometer que quando chegar a primeiro-ministro vai reabrir todos os tribunais que o actual Governo vai fechar e revogar a lei que corta a reforma dos pensionistas, sente-se uma certa nostalgia. Vítor Gaspar era mais troikista do que a troika. Mas quando o PS propõe a reposição do horário de trabalho de 35 horas na função pública, mais nostálgicos ficamos.
Os dois grandes erros de Vítor Gaspar foram exagerar na dose da austeridade e desprezar a política (na acepção da "arte do possível"). Mas não é por fazermos precisamente o contrário do que ele propalava que os vamos corrigir.»  Pedro Sousa Carvalho

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