Fui das pessoas que admirou Vítor Gaspar e que se
assustou quando ele se demitiu, augurando consequências negativas da sua saída,
como pessoa que sempre me parecera um travão necessário à nossa tosca
prodigalidade de meninos malandros brincando aos governos. Gostava do seu ar
inteligente, das suas explicitações de evidências, a tomar-nos por parvos,
troçando da nossa imaturidade e ignorância de dissipadores desonestos, que era
preciso pôr no bom caminho, numa forçada austeridade para pagamento de dívida,
o que só lhe angariaria inimizades, visto que, meninos malandros vivendo em
casa dos papás, sem a responsabilidade da sobrevivência, entendíamos que a
fartura inabitual fora direito adquirido sem que a dívida nos devesse ser
jamais colectada. E daí as troças da nossa vingança - o ar embatucado de Vítor
Gaspar, a sua dificuldade de comunicação, o fino humor de algumas suas tiradas
– talvez vingativas, talvez de superioridade desdenhosa – fizeram desencadear imitações
caricaturais em frequentes sketches humorísticos reveladores da nossa
sensibilidade vingativa e, afinal, da nossa capacidade de resposta à provocação,
demonstrando que não somos tão parolos como ele quis fazer crer.
Mas Vítor Gaspar foi uma figura necessária, na
tentativa que fez o governo de Passos Coelho de encontrar credibilidade junto
ao estrangeiro que nos emprestou o dinheiro, para iniciarmos a recuperação
económica do país que uma dívida monstruosa afundou. Deixou como sucessora uma
mulher valente – Maria Luís Albuquerque – que continua na mesma linha de rigidez
económica, cortando nos vencimentos e nas carreiras, a caminho, ao que se
afirma, de uma ainda parca recuperação, mas que não convém perder.
Daí que se perceba o teor do artigo «Uma
certa nostalgia de Vítor Gaspar», do jornalista Pedro Sousa Carvalho, baseado
no livro de Maria João Avilez sobre o ex-ministro, e publicado no “Público” de
14/2, nostalgia que provém do apreço pelos critérios de hombridade, e por isso
receosos das prodigalidades prometidas por alguns políticos para o pós-troika,
prodigalidades de um pré-eleitoralismo insensato. A austeridade é para se
manter, e Passos Coelho, que é a pedra chave do processo, garante-a. Ontem, os
do seu partido aplaudiram-no, Paulo Rangel afirmou o novo apreço europeu por este
país cumpridor. Assusta pensar em Seguro como seguidor de Passos Coelho, num
governo PS. Daí a nostalgia de Vítor Gaspar, um Gaspar que, tal o outro, trouxe
prendas para um pobre menino deitado em palhas. Mas ao contrário desse Menino
que sempre soube o caminho, e por isso recebeu ouro e preciosidades do seu
visitante, as prendas do nosso Gaspar foram o apontar do verdadeiro caminho da
salvação nacional – o da contenção. É necessário continuá-la:
«Uma certa
nostalgia de Vítor Gaspar»
«Depois de seis meses de ausência, eis que Vítor
Gaspar regressa, agora sob a forma de livro. Em conversa com Maria João
Avillez, num estilo pergunta/resposta, o anterior ministro das Finanças
coloca-se num elevado pedestal (intelectual, economista culto, estratega,
negociador e visionário) e é de lá de cima que continua a olhar para a política
e para os políticos, com um grande desdém. E esse foi o grande erro de Gaspar.
Percebe-se no livro que Gaspar não gosta da política
(na acepção de Russel ou de Maquiavel, ou seja, a arte de conquistar e manter o
poder), e diz que se vê como um espectador do “grande espectáculo da política”.
Para Gaspar, a política sempre foi uma espécie de bug informático que fazia com que as suas contas no Excel
nunca batessem certo. E para Vítor Gaspar, que diz que tende “a observar a
política como um economista”, Paulo Portas deveria ser uma espécie de vírus
informático que lhe estava sempre a "crashar" o portátil e a sua
folha de Excel. Aliás, é com este desprezo profundo pela política que Vítor
Gaspar justifica a sua saída de cena e as suas desavenças com Paulo Portas:
“Não tenho qualquer vocação para resolver problemas de pura política.” Quando
questionado sobre o comportamento do líder centrista na polémica questão da TSU
dos pensionistas, o economista responde: “Não vou fazer comentários sobre o que
poderão ter sido as motivações ou os processos mentais do Dr. Paulo Portas.” É
como se Maria João Avillez lhe estivesse a pedir algum diagnóstico mental sobre
algum doente do Júlio de Matos ou do antigo Conde Ferreira.
E esse foi o grande erro de Vítor Gaspar. Diz que
sempre achou “imensa graça” ao processo político, e, até quando era mais novo,
divertia-se a tentar “prever os resultados de eleições”. Maria João Avillez,
talvez meio incrédula, pergunta-lhe: "Mas só gosta da política como uma
espécie de jogo?" E Gaspar responde: "Tal qual, tal qual." E
Gaspar escolheu Paulo Portas (ou Portas escolheu Gaspar) para jogar, e o líder
do CDS-PP, o mais antigo líder partidário no activo, naturalmente ganhou. Nesta
espécie de jogo de xadrez, segundo se lê nas entrelinhas da entrevista, o
tabuleiro começou a pender para o lado de Portas quando a economia começou a
dar os primeiros sinais de recuperação: “Como se veio a saber mais tarde, a
actividade económica em Portugal tinha já fortemente recuperado no segundo
trimestre. Isto mostra que a política e as percepções em política são um jogo
de grande subtileza.” É Gaspar a reconhecer a inteligência política e o
xeque-mate de Paulo Portas. Mas Gaspar tem a inteligência de reconhecer a
importância da política: “A saída de Paulo Portas e o impacto que teve nos
mercados mostram a força e a relevância da política.” E foi esse casamento
entre a política e a economia que Gaspar nunca conseguiu fazer; eram dois softwares incompatíveis.
Gaspar não gosta da política, aborrece-o. Ainda todos
se lembrarão da forma como Gaspar respondeu a Ana Drago no Parlamento – “Eu não
fui eleito coisíssima nenhuma” –, como quem fazia questão de mostrar que ele e
os deputados não eram feitos da mesma massa. A própria política sempre olhou
para Gaspar como um corpo estranho, pela forma algo sobranceira como o antigo
ministro olhava para o jogo da política.
Agora, Vítor Gaspar está a candidatar-se a um alto
cargo no FMI, um lugar onde ele vai sentir-se em casa, no meio de tecnocratas
iguais a ele, para quem a política é uma espécie de variável aleatória num
modelo econométrico inventado nos corredores de Washington. Na hora da
despedida, Maria João Avillez pergunta a Vítor Gaspar se os portugueses
aprenderam alguma coisa com os erros do passado. E Gaspar responde, imagino que
no seu tom pausado e mecânico, “é difícil dizer”.
Vítor Gaspar não vai deixar saudades. Mas quando se
ouve Paulo Portas, já em pré-campanha eleitoral, a prometer que em 2015, ano de
eleições, vai baixar o IRS, vá-se lá saber como, sente-se uma certa nostalgia.
Vítor Gaspar exagerou na dose de austeridade. Mas quando se ouve Pires de Lima
e o PSD-Lisboa a defenderem o aumento do salário mínimo nacional e uma descida
do IVA, não se sabe muito bem com que dinheiro, sente-se uma espécie de
nostalgia. Vítor Gaspar era um partidário da austeridade do custe o que custar.
Mas quando se ouve António José Seguro a prometer que quando chegar a
primeiro-ministro vai reabrir todos os tribunais que o actual Governo vai
fechar e revogar a lei que corta a reforma dos pensionistas, sente-se uma certa
nostalgia. Vítor Gaspar era mais troikista do que a troika. Mas quando o PS propõe a reposição do horário de
trabalho de 35 horas na função pública, mais nostálgicos ficamos.
Os dois grandes erros de Vítor Gaspar foram exagerar
na dose da austeridade e desprezar a política (na acepção da "arte do
possível"). Mas não é por fazermos precisamente o contrário do que ele
propalava que os vamos corrigir.» Pedro Sousa Carvalho
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