«Abjecção”, eis como se intitula o
artigo de Vasco Pulido Valente, saído no “Público” em 9/2, bem certeiro na
caricatura que faz, de uma caça à multa instituída pelo Governo, visando o
confronto entre os recibos do público e os das empresas, com as aliciantes
ofertas de um automóvel por sorteio a quem contribuir para desmascarar as falsidades destas,
nas respectivas declarações de impostos.
Todavia, por caricata que seja a
medida de truque mesquinho, a lembrar os antigos papéis viscosos que se punham
nos candeeiros para caçar as moscas, que adquiriam aparência repugnante, ela
parece-me antes uma clara demonstração de aflição pecuniária mais do que de parolice, atribuível ao P.M. por Pulido Valente. Foi Passos Coelho, de
facto, o único que, em aparência de inflexibilidade, se dispôs a seguir um honrado e
necessário trilho de pagamento de dívida que, salvo Salazar e o Marquês de
Pombal, dos governantes mais próximos, nenhum estadista anterior ou posterior seguiu,
tendo os governantes pós-abrilinos, ao contrário, favorecido as manobras
deletérias nacionais que a modernização do país, por meio da ajuda externa, proporcionou,
com as graves consequências que estamos todos a viver - uma austeridade que
ignora direitos e convenções obtidos anteriormente, nas alterações impostas na
leviandade da crença nas vacas gordas, sem ter em conta as condicionantes de um
buraco que se dilatava em sorvedoiro irremissível.
Nos tempos das guerras os povos
sacrificam-se, nas duras imposições exigidas pelos estados de sítio. E os
alimentos faltam e são racionados, nas nações ocupadas pelos seus conquistadores,
que fazem as leis e maltratam, sem que ninguém pense em reclamar, a não ser nos
maquis ocultos e perigosos da contestação. Não é assim connosco, que não
admitimos o estado de sítio e defendemos, aparentemente, a bambochata de que os
maiorais deram exemplo: mal se aponta uma certa recuperação económica e de
crédito, logo os partidos defensores dos direitos ironizam e a negam,
continuando a ulular os argumentos destrutivos de sempre, porque não querem
reconhecer que os sacrifícios foram necessários e vão continuar a ser,
naturalmente.
É isso que entristece na caricatura
feita por Pulido Valente à tal medida governativa que oferece carros para
controlar os ganhos por meio de recibos. Ninguém dá tréguas à gritaria ou à ironia,
ninguém reconhece o estado de sítio, ninguém aceita a perda dos tais direitos
obtidos no regabofe do maná sem mérito e sem esforço. E em vez de nos
alegrarmos porque melhorámos um bocadinho, segundo as estatísticas - no
crédito, porque a dívida continua descomunal – gritamos na assembleia que a
dívida continua descomunal e que o sacrifício vai continuar e isso parece a
todos inesperado, impróprio e destrutivo da nossa dignidade. Para longe ficou a
corrupção indecorosa que contribuiu para a nossa indignidade, substituída pelos
actos pequeninos dos actuais governantes teimosamente pequenos – não na extorsão, é bem certo.
“Abjecção”, eis o título do texto de
Vasco Pulido Valente, de elegância aristocrática, de quem paira acima das
misérias que costuma apontar – e bem. Um texto de humor, no seu desprezo pela
inferioridade da tal medida rebaixante que transforma a sociedade em
denunciante zelosa, na mira de um carro - talvez desses carros topo de gama que
algum dono deixou de pagar e que o Estado arrecadou – para atrair as moscas
zelosas de colaboracionismo interesseiro e vistoso… quando não também viscoso:
«Abjecção»
«Nunca
pensei em ser polícia. Agora, o Governo quer fazer de mim um polícia (ainda por
cima à paisana) e também um denunciante. Quem pedir sempre a factura a quem lhe
vende um café, um bife ou um casaco chega ao fim do ano com um molho de
bilhetes de lotaria para o sorteio de um carro “topo de gama”, que o Governo
oferece ao “bom cidadão”. Isto permite ao Ministério das Finanças comparar o
volume de negócios declarado de qualquer restaurante ou de qualquer loja com a
documentação que lhe entregou a classe média à procura de um Audi ou de um
Mercedes, que a faça brilhar na vizinhança e espicace a sempre viva inveja da
família e amigos. Para animar as coisas, que, segundo consta, não andam bem, o
Estado obriga toda a gente a pedir factura.
Como se
compreenderá, o Estado transforma assim com habilidade e subtileza os portugueses
numa corporação de espionagem encarregada de se espiar a si mesma, sem gastar
mais do que um carro apreendido a um criminoso ou contrabandista. Vivendo perto
da falência, o comércio e a restauração tendem a subtrair uma factura ou outra
à tosquia fiscal a que estão submetidos. Esta prática irrita os peritos que
aconselharam ao sr. primeiro-ministro este método democrático. A Espanha acha o
estratagema “pitoresco”. Por mim, que não sou a Espanha, acho a ideia
tenebrosa: vexatória, indigna, irresponsável, excessivamente parecida com
episódios conhecidos da Ditadura e dos regimes que ela imitava e venerava. E,
no fim do ano, gostava de ver a cara do meu compatriota que ganhou esse
glorioso concurso.
Estou
aqui a imaginar a cena. O indivíduo gordo e triunfante que atrapalhou a vida a
centenas de pessoas, que tinham cometido o erro de confiar nele. O sr. Passos
Coelho, seguido da sua trupe e da sua inconsciência. O automóvel cintilando ao
longe. O premiado começará por apertar a mão a S. Exa. Com uma grande vénia. E,
a seguir, S. Exa retribuirá com um pequeno discurso sobre as vantagens da
coesão social, do enorme esforço que se espera do conjunto da Pátria e dos
milhões que a operação angariou para os pobrezinhos, que ele particularmente
estima. Um secretário entregará a chave do carro ao polícia e denunciante do
ano e essa virtuosa personagem tornará a apertar com respeito a mão do sr.
Passos. A sociedade portuguesa avançou um novo passo para a objecção.»
Em tempo de guerra não se limpam
armas, diz-se, embora ninguém reconheça a guerra, que é apenas intestina. Daí o
recurso a tacanhos truques governativos.
Os indivíduos gordos e triunfantes
que atrapalham as vidas de quem neles confiou?! E então os que lesam a vida da
nação, que confiou neles, por se recusarem a cumprir civicamente os seus
deveres de empresários?
A sujidade das armas dos truques
governativos, de apoio - tacanho - a uma solução necessária, tem a ver com um genérico
de putrefacção que vem muito de trás…
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