sábado, 15 de fevereiro de 2014

As tréguas impossíveis



«Abjecção”, eis como se intitula o artigo de Vasco Pulido Valente, saído no “Público” em 9/2, bem certeiro na caricatura que faz, de uma caça à multa instituída pelo Governo, visando o confronto entre os recibos do público e os das empresas, com as aliciantes ofertas de um automóvel por sorteio a quem contribuir para desmascarar as falsidades destas, nas respectivas declarações de impostos.
Todavia, por caricata que seja a medida de truque mesquinho, a lembrar os antigos papéis viscosos que se punham nos candeeiros para caçar as moscas, que adquiriam aparência repugnante, ela parece-me antes uma clara demonstração de aflição pecuniária mais do que de parolice, atribuível ao P.M. por Pulido Valente. Foi Passos Coelho, de facto, o único que, em aparência de inflexibilidade, se dispôs a seguir um honrado e necessário trilho de pagamento de dívida que, salvo Salazar e o Marquês de Pombal, dos governantes mais próximos, nenhum estadista anterior ou posterior seguiu, tendo os governantes pós-abrilinos, ao contrário, favorecido as manobras deletérias nacionais que a modernização do país, por meio da ajuda externa, proporcionou, com as graves consequências que estamos todos a viver - uma austeridade que ignora direitos e convenções obtidos anteriormente, nas alterações impostas na leviandade da crença nas vacas gordas, sem ter em conta as condicionantes de um buraco que se dilatava em sorvedoiro irremissível.
Nos tempos das guerras os povos sacrificam-se, nas duras imposições exigidas pelos estados de sítio. E os alimentos faltam e são racionados, nas nações ocupadas pelos seus conquistadores, que fazem as leis e maltratam, sem que ninguém pense em reclamar, a não ser nos maquis ocultos e perigosos da contestação. Não é assim connosco, que não admitimos o estado de sítio e defendemos, aparentemente, a bambochata de que os maiorais deram exemplo: mal se aponta uma certa recuperação económica e de crédito, logo os partidos defensores dos direitos ironizam e a negam, continuando a ulular os argumentos destrutivos de sempre, porque não querem reconhecer que os sacrifícios foram necessários e vão continuar a ser, naturalmente.
É isso que entristece na caricatura feita por Pulido Valente à tal medida governativa que oferece carros para controlar os ganhos por meio de recibos. Ninguém dá tréguas à gritaria ou à ironia, ninguém reconhece o estado de sítio, ninguém aceita a perda dos tais direitos obtidos no regabofe do maná sem mérito e sem esforço. E em vez de nos alegrarmos porque melhorámos um bocadinho, segundo as estatísticas - no crédito, porque a dívida continua descomunal – gritamos na assembleia que a dívida continua descomunal e que o sacrifício vai continuar e isso parece a todos inesperado, impróprio e destrutivo da nossa dignidade. Para longe ficou a corrupção indecorosa que contribuiu para a nossa indignidade, substituída pelos actos pequeninos dos actuais governantes teimosamente pequenos – não na extorsão, é bem certo.
“Abjecção”, eis o título do texto de Vasco Pulido Valente, de elegância aristocrática, de quem paira acima das misérias que costuma apontar – e bem. Um texto de humor, no seu desprezo pela inferioridade da tal medida rebaixante que transforma a sociedade em denunciante zelosa, na mira de um carro - talvez desses carros topo de gama que algum dono deixou de pagar e que o Estado arrecadou – para atrair as moscas zelosas de colaboracionismo interesseiro e vistoso… quando não também viscoso:

«Abjecção»           
«Nunca pensei em ser polícia. Agora, o Governo quer fazer de mim um polícia (ainda por cima à paisana) e também um denunciante. Quem pedir sempre a factura a quem lhe vende um café, um bife ou um casaco chega ao fim do ano com um molho de bilhetes de lotaria para o sorteio de um carro “topo de gama”, que o Governo oferece ao “bom cidadão”. Isto permite ao Ministério das Finanças comparar o volume de negócios declarado de qualquer restaurante ou de qualquer loja com a documentação que lhe entregou a classe média à procura de um Audi ou de um Mercedes, que a faça brilhar na vizinhança e espicace a sempre viva inveja da família e amigos. Para animar as coisas, que, segundo consta, não andam bem, o Estado obriga toda a gente a pedir factura.
Como se compreenderá, o Estado transforma assim com habilidade e subtileza os portugueses numa corporação de espionagem encarregada de se espiar a si mesma, sem gastar mais do que um carro apreendido a um criminoso ou contrabandista. Vivendo perto da falência, o comércio e a restauração tendem a subtrair uma factura ou outra à tosquia fiscal a que estão submetidos. Esta prática irrita os peritos que aconselharam ao sr. primeiro-ministro este método democrático. A Espanha acha o estratagema “pitoresco”. Por mim, que não sou a Espanha, acho a ideia tenebrosa: vexatória, indigna, irresponsável, excessivamente parecida com episódios conhecidos da Ditadura e dos regimes que ela imitava e venerava. E, no fim do ano, gostava de ver a cara do meu compatriota que ganhou esse glorioso concurso.
Estou aqui a imaginar a cena. O indivíduo gordo e triunfante que atrapalhou a vida a centenas de pessoas, que tinham cometido o erro de confiar nele. O sr. Passos Coelho, seguido da sua trupe e da sua inconsciência. O automóvel cintilando ao longe. O premiado começará por apertar a mão a S. Exa. Com uma grande vénia. E, a seguir, S. Exa retribuirá com um pequeno discurso sobre as vantagens da coesão social, do enorme esforço que se espera do conjunto da Pátria e dos milhões que a operação angariou para os pobrezinhos, que ele particularmente estima. Um secretário entregará a chave do carro ao polícia e denunciante do ano e essa virtuosa personagem tornará a apertar com respeito a mão do sr. Passos. A sociedade portuguesa avançou um novo passo para a objecção.»

Em tempo de guerra não se limpam armas, diz-se, embora ninguém reconheça a guerra, que é apenas intestina. Daí o recurso a  tacanhos truques governativos.
Os indivíduos gordos e triunfantes que atrapalham as vidas de quem neles confiou?! E então os que lesam a vida da nação, que confiou neles, por se recusarem a cumprir civicamente os seus deveres de empresários?
A sujidade das armas dos truques governativos, de apoio - tacanho - a uma solução necessária, tem a ver com um genérico de putrefacção que vem muito de trás…

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