Quando
há dias me referi ao caso das praxes no Meco, em que transcrevi dois artigos
expondo sobre a temática das praxes académicas – de Vasco Pulido Valente e de
João Miguel Tavares – esqueci-me de acrescentar uma observação do” ex-dux veteranorum”
da Universidade Lusófona, defensor do actual dux, que me tinha chocado, entre os
diversos elementos chocantes do seu discurso de um raquitismo intelectual e
moral totalmente indigno da espécie humana, e mais ainda com a responsabilidade
do grau académico que pretende obter, cursando uma universidade. Referiu ele
que os maus tratos e humilhações a que submetem os caloiros é explicado a estes
como prática que lhes dará preparação para futura actuação como “duxes”
dos caloiros que lhes caberão, numa actuação ainda mais feroz e vindicativa.
Julguei que tão acéfala afirmação só poderia provir de um ser totalmente
destituído da mais elementar consciência de reflexão e pundonor e assustei-me, na
perspectiva de uma sociedade política e social futura de chefes ou doutores de
tal calibre.
Mas o
artigo de José Pacheco Pereira, saído no Público de 25/1, no desprezo da sua
absoluta indignação, e no requinte do seu discurso de um referencial histórico
decisivo, é página esclarecedora da ignomínia que se arrasta pelos séculos
fora, culminando em tragédia por um mar castigador da absoluta falta de senso, não
só dos que praticam as praxes como dos que permitem que elas se pratiquem.
Mais
uma “vox clamantis in deserto”, que não acorda consciências apesar de
suscitar admirações, pela frontalidade e saber:
A abjecção das praxes
É-me pessoalmente repugnante o espectáculo que se pode ver nas
imediações das escolas universitárias e um pouco por todo o lado nas cidades
que têm população escolar, de cortejos de jovens pastoreados por um ou dois
mais velhos, vestidos de padres, ou seja, de “traje académico”, em posturas de
submissão, ou fazendo todo o género de humilhações em público, não se sabe
muito bem em nome de quê.
Há índios com pinturas de
guerra, meninas a arrastarem-se pelo chão, gente vestida de orelhas de burro,
prostrações, derrame de líquidos obscuros pela cabeça abaixo, e uma miríade de
signos sexuais, e gestos de carácter escatológico ou coprológico, que mostram
bem a fixação dos rituais da praxe numa idade erótica que o dr. Freud descreveu
muito bem.
Talvez pelas alegrias de ser vexado, o objectivo do coma
alcoólico é muito desejado e o mais depressa possível. De um modo geral está
quase tudo em adiantado estado de embriaguez, arrastando-se ao fim do dia pelos
sítios mais improváveis, bebendo aquelas bebidas como os shots que são o atestado de que
não se sabe beber, um álcool forte seja ele qual for, absinto, vodka ou cachaça
e um licor ou sumo ultradoce para ajudar a engolir. Os nomes dos shots, do popular “esperma” ao
“orgasmo”, passando pelo B-52, “bomba atómica”, "vulcão”, “bomba”,
“Singapura”, “broche”, “inferno”, “chupa no grelo”, "Kalashnikov”,
“levanta-mortos” ao “vácuo” (muito apropriado), fazem parte da cultura
estudantil da Queima e da praxe. Por cima disso tudo, hectolitros de cerveja, a
bebida que o nosso diligente ministro da Economia conseguiu retirar da
proibição de servir bebidas alcoólicas a menores, um exemplo do que valem as
ligações políticas de um gestor no seu sucesso como empreendedor.
A praxe mata, já tem matado, violado e agredido, enquanto todos
fecham os olhos, autoridades académicas, autoridades, pais, famílias e outros
jovens que aceitam participar na mesma abjecção. Já nem sequer é preciso saber
se os jovens que morreram na praia do Meco morreram nalguma patetice da praxe,
tanto mais que parece terem andado a seguir uma colher de pau gigante, fazendo
várias momices, uma das quais pode ter-lhes custado a vida. Eu escreveria, como
já escrevi noutras alturas, o mesmo, houvesse ou não houvesse o caso do Meco.
(Aliás, é absurdo e insultuoso para a dignidade de quem morreu o espectáculo de
filmes de telemóvel e entrevistas que as televisões têm passado, mas isso é
outro rosário, da nossa estupidificação colectiva…)
Tenho contra a praxe todos os preconceitos, chamemos-lhe assim,
para não estar a perder tempo, da minha geração. A praxe quando estava na
faculdade era vista como uma coisa de Coimbra, um pouco antiquada e parola, de
que, felizmente, no Porto e em Lisboa não havia tradição. No Porto, onde
estudava, havia um cortejo da Queima das Fitas e a percentagem de estudantes
vestidos de padres com capa e batina aumentava por uma semana, mas durante o
ano era raro ver tal vestimenta. A situação era variável de escola para escola,
mas a participação em actividades ligadas com a praxe era quase nula. Aliás,
qualquer ideia de andar a “praxar” os estudantes do primeiro ano era tão
exótica como a aparição de um disco voador na Praça dos Leões. Infelizmente
muitos anos depois, apareceu uma verdadeira flotilha. Em Lisboa, muito menos,
nada. Depois, outro enxame de discos voadores com padres de capa e batina.
Quando se deu a crise em Coimbra em 1969, a contestação à praxe
acentuou-se, embora algumas “autoridades” da praxe, como o dux veteranorum, tenham apoiado a luta
estudantil. Se em Coimbra a Queima das Fitas foi contestada, porque violava o
“luto académico”, no Porto, as tentativas de a manter acabaram em cenas de
pancadaria com grelados e fitados até que progressivamente desaparecerem do
mapa. Tornava-se então evidente que o nascente conflito sobre a Queima no Porto
se tinha tornado politizado entre uma universidade que as autoridades da
ditadura cada vez menos controlavam e a tentativa de encontrar, por via da
praxe, uma forma de resistência ao movimento associativo e estudantil. As
últimas lutas mais importantes no Porto, como a contestação do Festival dos
Coros, com as suas prisões em massa, tinham colocado as praxes e a Queima das
Fitas do lado do regime e provocaram um longo ocaso das suas manifestações. Até
um dia.
Eu participei nessas escaramuças políticas, mas também
culturais, e escrevi alguns panfletos, incluindo um, Queimar a Queima, que circulou pelas três
universidades em cvárias versões e edições. Mas, na luta contra a praxe,
tornava-se cada vez mais evidente já nessa altura que estava em causa não
apenas a conjuntura desses anos de brasa estudantis, mas também uma recusa da
visão lúdica e irresponsável da juventude, e que, se se tratava de um rito de
passagem, era para a disciplina da ordem e da apatia política. Rallies, touradas, bailes de gala,
beija-mão ao bispo na bênção das pastas – tudo acompanhado pelas
autoridades académicas muito contentes com a “irreverência” dos “seus” jovens,
quando ela se manifestava naquelas formas – eram muito mais uma introdução à
disciplina do que o despertar de qualquer consciência crítica. No fundo, o que
se pretendia era que houvesse uma “explosão” de inanidades, a que depois se
seguiria a disciplina da vida adulta, casamento, emprego, família e filhos,
ordem social e hierarquia.
Ao institucionalizar a obediência aos mais absurdos comandos, a
humilhação dos caloiros perante os veteranos, a promessa era a do exercício
futuro do mesmo poder de vexame, mostrando como o único conteúdo da praxe é o
da ordem e do respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do curso. Mas
quem respeita uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio para
respeitar todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir
a mandar, quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda
mais sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois
vingas-te.
Nos dias de hoje continua para mim evidente o papel deste tipo
de rituais na consolidação de uma vida essencialmente amorfa e conservadora,
desprovida de solidariedade e intervenção social e política, subordinada a
todos egoísmos e disponível para todas as manipulações. Aliás, a evidente
ausência do movimento associativo estudantil da conflitualidade dos dias de
hoje e a fácil proliferação das “jotas” nessas estruturas, tanto mais
eficaz quanto diminui a participação dos estudantes em qualquer actividade que
não seja lúdica (numa recente eleição na Universidade do Porto para um universo
de 32000 estudantes participaram 2000, em contraste com uma muito maior
mobilização dos professores num processo eleitoral do mesmo tipo), acompanham a
generalização da submissão à praxe. De facto, a praxe mata, às vezes o corpo,
mas sempre a cabeça.
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