Lembro-me de que, quando era criança –
devia andar pelos doze anos – fui sozinha ao Hospital Miguel Lombarda, em
Lourenço Marques para tratar um dente. A minha mãe não me podia acompanhar, em
casa a fazer o almoço, o meu pai estava no serviço, a minha irmã fora para o liceu,
a que eu faltara nessa dolorosa manhã para procurar alívio no hospital. Da 5 de
Outubro fui a pé até à Pinheiro Chagas, onde apanhei o machimbombo para o
hospital. Não, não havia desvitalizações, ou, se as havia, não era no hospital,
onde, na questão dos dentes, estes eram para arrancar, que o tratamento não
estava incluído nos serviços de saúde para gente pobre ou remediada. Por isso,
eu sempre me deslumbrei com as pessoas ricas que, de Moçambique, se deslocavam
à África do Sul para tratar dos seus dentes, onde os progressos odontológicos distavam
dos nossos a cem anos-luz. De resto, sempre pensei que os dentes eram coisa de exterior,
facilmente extirpável, caso não cumprissem a missão que lhes era exigida, e por
isso achasse natural as bocas dos velhotes desdentados, embora me incomodassem
os dentes cariados de colegas minhas ou simplesmente amarelados por falta de pasta
e escova.
Foi uma manhã trágica, criança
apavorada na cadeira do arrancador de dentes que, ou não anestesiou bem ou não
esperou que a anestesia fizesse efeito e arrancou triunfalmente o molar no meio
dos berros da criança. Porque esta estava só, ele pôde impunemente repoltrear-se
no seu regalo sádico, talvez também estético, de engendrador do belo horrível. Lembro-me
de que voltei para casa a pé, Pinheiro Chagas abaixo e avenidas subsequentes,
quatro ou cinco quilómetros de caminho chorando, criança desvalida e apiedada
de si, sem que ninguém reparasse, de resto, e que continuou em casa, chorando
de raiva a dor e a humilhação de uma crueldade a que não estava habituada.
Não, os dentes nunca existiram nos
serviços de saúde comparticipados, fomos o país europeu com bocas menos
tratadas, a minha amiga nunca se esquece de o referir sardonicamente, e os dentistas
fazem-se pagar a peso de ouro, ainda hoje.Mudou isso durante o tempo das vacas gordas emprestadas, os serviços de saúde melhoraram bastante. Mas diz a minha amiga que agora já aparecem pessoas na televisão com menos dentes, como consequências da crise. E isso é horrível, porque é feio. Oxalá os Governos não se esqueçam das bocas portuguesas.
“Tudo são recordações”, e veio-me esta a propósito do artigo
do Público, de 31/12/13, de João Miguel Tavares “Nostalgia do que
nunca existiu”, sobre os saudosistas do antigamente, sem razões para ter
saudades, tão atrozes eram esses tempos, de imagens contidas no livro que cita “A
Cortina dos Dias” de Alfredo Cunha, que igualmente Simone Beauvoir descreve
no seu livro “Les Mandarins”, bem industriada pelos comunistas
portugueses da época salazarista em que visitara Portugal, e pelas próprias observações
colhidas nos seus passeios numa “Lisbonne d’une belle façade, oui, mais vous
verrez ce qu’il y a derrière”.
«O livro de Alfredo Cunha
impressionou-me muito pela sua colecção de extraordinárias fotos de uma pobreza
avassaladora, começando no Portugal dos anos 70 e indo até finais dos anos 80,
e nalguns casos até já bem dentro da década de 90. São imagens de bairros de
lata pútridos, hospitais sem condições, pessoas a respigar em lixeiras a céu
aberto, crianças nuas a tomarem banho em fontanários. Sempre que alguém vem com
a conversa do “no meu tempo é que era bom” ou de como a crise está a fazer
Portugal retroceder meio século, dava jeito ter um exemplar à mão para esfregar
na cara de quem diz tais barbaridades. Não, não estamos a retroceder meio
século. Não, não estávamos melhor há 20, 30, 40 ou há 50 anos.»
«A maldita nostalgia que em Portugal
encontrou um microclima para se desenvolver esplendorosamente não é uma
nostalgia daquilo que o país já foi mas, quase sempre, uma nostalgia daquilo
que nós já fomos. E isso provoca desvios inadmissíveis no discurso público: nós
não temos realmente saudades do que Portugal era antigamente –temos é muitas
saudades dos tempos da nossa juventude.»
E exemplifica com dois artigos de
Vasco Pulido Valente – “A morte do peru” e “Vender Portugal:
«Eis um exemplo perfeito daquilo a
que me refiro. Talvez para uma antiga burguesia endinheirada e com uma
existência pastoreada por vasta criadagem, hoje em dias o Natal seja mais
aborrecido do que há meio século. Mas posso garantir que para a vasta maioria
dos portugueses ele é muito mais divertido do que em 1955. Talvez para quem se
mantém eternamente fiel à mesma mesa do mesmo restaurante, Lisboa não passe de “uma
mediocridade sem ordem ou alegria.” Mas basta sair à rua para ver que se há
coisa em que evoluímos drasticamente - e, neste caso, apesar da crise – é na
qualidade da vida urbana e da restauração e na forma como uma classe média
aprendeu a viver na cidade: as pessoas correm à beira-rio, andam de bicicleta, reúnem-se
para beber um copo no final do trabalho.
Com a nossa típica memória a curto
prazo, tendemos a esquecer o quanto evoluímos, o quanto melhorou a nossa
qualidade de vida, o quão mais ricos hoje somos. A crise é terrível. Está a
fazer crescer as desigualdades e a mandar-nos uma década para trás. Eu não
quero fechar os olhos a isso. Mas nós precisamos de ter a justa memória do nosso passado e
uma avaliação sincera do nosso presente se queremos realmente construir um
melhor futuro.»
Sim, os bairros da lata
desapareceram, os supermercados, com os frangos e os coelhos e mais animais já
mortos, garantia da preservação das nossas sensibilidades, e as hortaliças
empacotadas, garantia da manutenção da nossa indolência, os cafés, as
televisões, a internet, o automóvel, o telemóvel, os electrodomésticos fornecem-nos
a garantia de que os nossos prazeres hodiernos são superiores aos tempos de
antanho, não há dúvida. Os Serviços de Saúde melhoraram, muito se fez a favor
do nosso bem-estar.
Mas os “Sem-Abrigo” tornaram-se uma
instituição nacional, causa do nosso desconforto de alma e do sacrifício dos
voluntários padres américos da actualidade, a caridadezinha de que se
falava outrora, no tempo das esmolas aos pobrezinhos tão bem retratados pelos
poetas e outros escritores sensíveis, tornou-se uma força de ordem, praticada a
limpo pelas pessoas generosas que vendem bugigangas a favor das causas ou
estendem sacos para a colheita alimentar, prova da nossa tendência esmoler como
uma constante de séculos.
Os medos do futuro avolumaram-se,
dantes não se falava em droga, em poluição, em aquecimento global e destruição
do planeta, em aterradora diminuição da natalidade, a taxa de alfabetização era
inferior, mas talvez o estudo fosse feito com maior seriedade. A prova é, no
campo dos estudos literários, entre nós, as figuras de estudiosos e
investigadores como João Gaspar Simões, Rodrigues Lapa, Hernâni Cidade, Joel
Serrão, Jacinto do Prado Coelho, Óscar Lopes e, o maior dos maiores, António
José Saraiva. Decoravam-se factos e datas, rios e cidades e montanhas de
Portugal, havia referências culturais que o “eduquês” fez desaparecer. A
Gramática tradicional, modestamente dividida em Fonética, Morfologia e Sintaxe,
nos primeiros ciclos, era exigida para o conhecimento da língua sem os pedantismos
e exorbitâncias impostos hoje, que talvez impeçam o verdadeiro interesse pelos
textos, pelo tempo que tomam. É certo que os manuais de estudo de antigamente
não eram preenchidos com os questionários esclarecedores de agora, mas talvez
por isso se lessem mais textos e autores. De resto, a Internet é um mundo que,
bem aproveitado, pode contribuir vantajosamente para o desenvolvimento
intelectual das crianças.
Dantes podia-se brincar fora de
portas, sem receio de raptos, creio que as crianças eram mais felizes, sem a
abundância de agora, que as torna mimalhas, egoístas e a breve trecho desapegadas
dos brinquedos. Mas têm sempre a Internet. E as histórias do Panda, e do Nody,
e da Heidi. São decididamente mais felizes. E nós com elas.
Mas o fantasma do futuro para as
nossas crianças impõe-se, na sua incerteza, nos efeitos desagregadores de uma
pedagogia que a violência, a falta de disciplina, o desrespeito naturalmente
agravam.
Não podemos fechar os olhos a muito
do que se fez em melhorias, (condenando, naturalmente, o fenómeno do excesso de
construção de imobiliários, com as negociatas fraudulentas por trás). O certo é
que antigamente não faltava trabalho a quem quisesse trabalhar. E o desemprego
e o aperto económico não são coisa bela de se ver e sentir, “arrancadores de
dentes sem anestesia” dos tempos de agora.
Em fim de contas, nós que falamos dos
bons novos tempos não estamos na pele desses que verdadeiramente sofrem, na sua
própria pele.
“Lisbonne d’une belle façade, oui, mais vous verrez ce
qu’il y a derrière”.
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