terça-feira, 22 de abril de 2014

A Mesa Censória




Há muito que o problema do desaparecimento dos estudos clássicos nos “desaparecidos” “liceus”-  substituídos pelo genérico “escolas”, submersas estas no designativo, ainda mais amplo, de “agrupamentos”,. evocador, por seu turno, das tendências para a solidariedade e a coesão que estreita actualmente os povos, em manifestações de protesto ou de simpatia, segundo a preponderância do momento – há muito, pois, que esse problema de volatilização do latim e do grego do panorama escolar tem sido motivo de mais uma decepção, esta centrada na redução cultural que tais cortes possibilitaram, justificativa de um AO sem ponderação, como refere o artigo   «Portugal e o latim», de Susana Marta Pereira,   Professora  de Português e Latim, saído no  Público,  em 11/04/2014, entre a muita excelente informação do seu conteúdoque revela bem a diferença panorâmica dos estudos cá dentro e lá fora, sem pudor nosso, que não temos dessas subtilezas de pudicícia:


  «Portugal e o latim»

«O latim representa mais de dois mil anos de cultura. Foi nele que o mundo ocidental produziu, até ao século XVIII, a sua ciência, filosofia, religião; a sua história é a matriz das línguas românicas, tendo significativos ecos em línguas como o inglês e o alemão. Aprender esta língua é ter acesso a uma cultura milenar que fundou, juntamente com o grego, a sociedade moderna e cujos valores transportam saberes, desde a área jurídica à educação e à medicina.
Países como Inglaterra, Alemanha e Espanha colocam, actualmente, nos seus curricula o ensino do Latim, por perceberem a sua relevância na aprendizagem de matérias tão diversas que vão desde a matemática à biologia, à filosofia, à literatura e à aprendizagem das línguas, entre elas o inglês e o alemão. Em Portugal segue-se o caminho oposto.
  Aos poucos, a aprendizagem do latim tem vindo a morrer, sendo vários os factores que estão na génese desta lenta agonia; os principais são a ignorância e o desconhecimento da importância desta língua por parte de quem decide. Num país onde se aplica um acordo ortográfico que renega a matriz do português, não é de espantar que se olhe para o latim como uma língua menor.
A recentíssima proposta de formação de professores de Português que divide a formação de professores da língua materna em duas opções – Português e Português/Latim – é a machadada final da morte há muito anunciada. Com o actual estado do ensino do Latim, onde o número de alunos escasseia, a escolha por parte dos futuros docentes da vertente da formação de professores de Português/Latim será ínfima e, num país onde não há alunos, deixará muito em breve de haver professores.
Alguns países, nomeadamente a Inglaterra e a Alemanha, iniciam o ensino do Latim a partir do 5.º ano de escolaridade, por considerarem que a aprendizagem desta língua deve ter lugar o mais precocemente possível. Em Portugal, os alunos portugueses só podem estudar Latim a partir do 10.º ano, e, atenção, é uma disciplina opcional de um leque que engloba a Geografia, algumas línguas modernas e a Literatura Portuguesa, destinando-se somente aos alunos dos cursos de humanidades, restringindo o acesso aos alunos de ciências. Questão: terão os alunos portugueses capacidades inferiores aos alunos alemães e ingleses para não conseguirem aprender Latim a partir do 5.º ano? Qual a razão fundamentada para impedir o acesso dos alunos de ciências à aprendizagem de uma língua na qual quase todo o universo científico, desde a biologia à medicina, à própria tecnologia, tem a sua génese?
Será possível que ninguém queira aprender Latim em Portugal? Que nenhum aluno se interesse pelo mundo antigo e pelas histórias que percorrem a arqueologia da humanidade? Que os jovens portugueses sejam tão diferentes dos seus congéneres europeus? Há verdadeiramente interesse, por parte de quem decide, que a situação mude? Já alguém, que tenha poder decisório, tentou averiguar honestamente e sem cair em lugares-comuns o que se passa com o ensino do Latim em Portugal?
 Na Escola Secundária de Pedro Nunes e na Escola Secundária de Passos Manuel, em Lisboa, os seus directores decidiram que nas suas escolas o Latim não morreria! Consequentemente, os alunos de todas as áreas, humanidades, artes, ciências e de todos os ciclos, desde o 7.º ano ao 12.º ano, têm acesso a um curso livre de Latim. E a verdade é que há dois grupos de alunos na Escola Secundária de Pedro Nunes, um de 3.º ciclo e outro de secundário, sendo que um deles já se encontra no 2.º ano de Latim. O Liceu Passos Manuel abriu o curso este ano lectivo e já conta com três grupos, um de 3.º ciclo e dois de secundário, sendo, no secundário, a maioria dos alunos de ciências. A metodologia aplicada foi desenvolvida pela Universidade de Cambridge e o seu sucesso leva a crer que o problema reside muito mais no modo como esta língua tem sido ensinada do que nela mesma. É de salientar que estes cursos são de frequência livre e a taxa de absentismo é quase nula.
Afinal, em que ficamos? Onde reside a origem do problema? Não há alunos interessados em aprender Latim ou não há interesse em que os alunos o aprendam?»

Não sei se, entre as várias pugnas com que me vou entretendo no meu blog, já alguma vez toquei o assunto, não do latim em vias de extinção, mas da selecta latina da altura em que escrevi o artigo seguinte, de 1996,  e que publiquei no livro “Anuário” – “Memórias Soltas” (1999), Editorial Minerva. Se já aqui o reproduzi, que me perdoem os manes  dos Cíceros e dos Virgílios, postados nos Olimpos da sua glória e da sua indiferença perante o atrevimento de os evocar novamente, pertencente como sou a uma lusitana raça que os chutou para bem longe, indiferente à formação cultural dos seus descendentes. Foi este o artigo, com que pretendo reforçar o apelo da Professora  de Português e Latim, Susana Marta Pereira, lembrando a lamechice de um ensino de tosca banalidade, muito embora se considere que a nossa juventude está mais bem artilhada intelectualmente do que a dos tempos do latim e grego. Creio que sim, que está mais modernizada, mais capaz de singrar com ousadia nos novos caminhos que lhe são impostos, mais defendida do ponto de vista da desenvoltura verbal também. Mas lamento a falta de estruturação mental que os clássicos – quer os das civilizações greco-latinas quer os das delas derivadas lhes poderiam fornecer e que a nossa incúria  e ignorância condenou a omissão. Eis o texto de 1996:

«EST MODUS IN REBUS...»
               «Dois livros para a iniciação do Latim:
               Para o l0º ano, “ROMAE  ROMANI”, de Ana I. Salema e Rosa Costa, com a participação do Dr. José A. Segurado e Campos , 1ª Edição, 1996.
               Para o antigo 6º ano de Letras, “INITIA LATINA”, por José Nunes de Figueiredo e Maria Ana Almendra., 3ª Edição, l966.
               Começámos pelo primeiro: Uma viagem de jovens estudantes europeus - entre os quais dois portugueses - a Itália , premiados no concurso “Certamen Ciceronianum Arpinas”, e a quem o jovem professor Paolo, da  Universidade de Génova, servirá de anfitrião e guia.
               Uma urdidura romanesca preside à feitura do livro, num propósito de intercâmbio  comunicativo e cultural que põe em jogo necessidades básicas de instalação, diálogos de apresentação e auto-retrato, passeios, cartas aos familiares, costumes, comentários ideológicos em função dum confronto passado/presente, e as respectivas ilações sobre as similitudes e as diferenças entre os povos latinos e os seus descendentes pertencentes à União Europeia.
               Um livro bem orientado, com a matéria dispersa segundo dois motivos temáticos - O Génio  Romano  para o Módulo I, A Vida Quotidiana para o Módulo II, cada lição perspectivada ao longo de seis rubricas: Clube de Estudo, Texto em Estudo, Jogos entre Nós, Clínica Gramatical, Genealogia Lexical, Correspondência Cultural.
                              Tudo, aparentemente, equilibrado, enriquecedor, em sequência progressiva, com vectores de referência para a civilização passada e para a civilização actual, a gramática acompanhante, os exercícios de aplicação, a etimologia e as famílias de palavras, os textos em português pontuados de expressões latinas, os textos em latim contextualizados.
                              Lemo-lo de um fôlego, fascinados com essa viagem cultural que desbloqueou o tempo, vivificando a língua morta, actualizando o passado, transformando o presente em algo de mirífico possuidor de uma velha história, e que estabeleceu o paralelo identificador dos homens, nos seus costumes e sentimentos, como nas suas eternas disparidades sociais. Simultaneamente, apercebemo-nos dos vestígios da cultura latina, nas suas pontes e ruas, nos seus arcos e monumentos, nos seus grafitos e epitáfios, nos breves textos de autores latinos versando motivos de todos os tempos: Textos do Cântico dos Cânticos, dos Evangelhos , de Cícero, Plínio, das Epístolas de S. Paulo, dos Carmina Burana.
                               A rubrica Correspondência Cultural estabelece o paralelismo, seja na narrativa dos acontecimentos, seja nos diálogos entre os jovens, ou nos textos sobre os Romanos, assim descobrindo pistas de confronto que ajudam à percepção dos factos.
                              Cedo, todavia, chegámos ao fim da obra, de textos, na sua maioria, em português, semeados, embora, de expressões latinas, e os textos de autor reduzidos a um ou dois, o que nos decepcionou.
                              E apesar da erudição e do propósito orientador, enfastiou-nos um tanto, igualmente, nos seus discursos por vezes rebuscados, por vezes moralistas, na história banal de jovens empenhados e vivaços, à boa maneira dos Cinco e dos Sete das aventuras da Enid Blyton -  jovens que desdenham o magister dixit, o que não é de todo errado, segundo as actuais pedagogias exacerbadoras do ego estudantil , jovens que se instalam em casas de acolhimento, “garante do merecido descanso”, sem percebermos o porquê do mérito -  na vulgar historieta de amor de uma das jovens com o professor, pretexto para um debitar de uma fraseologia romanesca e lírica perfeitamente inadequada, como a que transcrevemos:
                              “A cabeça de Paolo descaiu sobre seu ombro (sic), e com voz só para ela:
                              -Querem que eu volte para continuar a casa... pena não te ter mostrado os vinhedos, os armazéns, as adegas, a destilaria... mas não voltarei só!
                              Também eu me deixei levar pelas mãos seguras de Concha, a catalã que trocaria o sol da sua terra por outro sol... aquele que andava amadurecendo cada cacho, a descobrir-se entre pâmpanos, ao longo da estrada para Roma”. (pág. 65).
                              Tais peculiaridades fizeram-nos evocar o Mon Ami Pierrot e quejandos que, através de idêntico processo comunicativo, pretendia também, em tempos idos, integrar os alunos de Francês das Escolas Técnicas na cultura comercial, por meio de uma efabulação despudoradamente piegas e lorpa.
                              Outro paralelo identificador com os Pierrots de má memória, e característica, aliás, dos bonecos de qualquer B. D., nos surgiu nas imagens dos jovens, dispersas aqui e ali, os quais, no longo percurso  das suas férias culturais, jamais mudaram de fato... para que possamos reconhecê-los, naturalmente, onde quer que se encontrem.
                              Lamentamos a lamechice deste ensino centrado no aluno, que parte do ensino básico e jamais se altera ao longo do seu percurso curricular, sobretudo no que toca ao ensino das línguas na  sua fase de iniciação. Um ensino que, privilegiando o método comunicativo, em todo o caso nos parece extremamente redutor, como se o universo juvenil se polarizasse  em torno do umbigo de cada  estudante.
                              Por isso os clássicos franceses foram retirados, como letra morta, dos manuais do Ensino Secundário, até para os futuros professores de Língua Francesa, por isso este manual de Latim privilegia os contactos  pessoais e contraria o conhecimento real dos autores latinos e da língua latina na sua complexidade, que exige abundância de textos e maturidade interpretativa.
                              Daí que, desejosos de reencontrar os velhos clássicos latinos e de rever a sua história e civilização nas fontes originais , sem interposição de comentários dirigistas, retomámos afincadamente o manual de José Nunes de Figueiredo e de Maria Ana Almendra, que, numa 1ª Parte, nos inicia nesses hábitos civilizacionais em função da matéria gramatical elucidativa e que, numa 2ª Parte, nos oferece o prazer de uma leitura ampla dos autores do Programa de então: 20 textos de Eutrópio, 24 de Lhomond, 20 fábulas de Fedro, 20 textos de Cornélio Nepos, 21 de Júlio César.
                              Textos excessivos, dir-se-á, que os alunos jamais abrangerão na sua totalidade, mas cuja descodificação, em maior ou menor quantidade, se tornará, gradativamente, num exercício lúdico,  à medida da sua progressão gramatical, para além do contacto enriquecedor com esses Homens a quem a Humanidade deve a transmissão da História passada e a dimensão humanista intemporal da sua fábula.
                              Julgamos mais sério este método tradicional, mais responsabilizador e culturalmente mais eficaz, sem tanto esbanjamento de individualismo e afectividade.
                              Quanto às ilações do manual para o l0º ano, parecem-nos pura manifestação pessoal de um moralismo tão insípido  como a utilização dos temas clássicos em função das vivências pessoais dos jovens premiados no “Certamen Ciceronianum Arpinas”.
                               Desfeita, assim,  a novidade  e saciada a curiosidade, predominou o vazio de uma metodologia que, abundando em pâmpanos, escasseou nos cachos - conquanto amadurecidos na estrada para Roma  -  impedindo uma preparação adequada do aluno  que o ajude a vencer as dificuldades do ano seguinte.
                              A menos que, a exemplo  do 10º ano, se sobreponham, no 11º, ao estudo dos clássicos, as argúcias verbais e os textos pessoais dos autores do manual.»





                                                                  

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