Há muito que o problema do
desaparecimento dos estudos clássicos nos “desaparecidos” “liceus”- substituídos pelo genérico “escolas”, submersas
estas no designativo, ainda mais amplo, de “agrupamentos”,. evocador, por seu
turno, das tendências para a solidariedade e a coesão que estreita actualmente
os povos, em manifestações de protesto ou de simpatia, segundo a preponderância
do momento – há muito, pois, que esse problema de volatilização do latim e do
grego do panorama escolar tem sido motivo de mais uma decepção, esta centrada
na redução cultural que tais cortes possibilitaram, justificativa de um AO sem
ponderação, como refere o artigo «Portugal e o latim», de Susana Marta Pereira, Professora de Português e
Latim, saído no Público, em 11/04/2014, entre a muita excelente
informação do seu conteúdoque
revela bem a diferença panorâmica dos estudos cá dentro e lá fora, sem
pudor nosso, que não temos dessas subtilezas de pudicícia:
«Portugal
e o latim»
«O latim representa mais de dois mil
anos de cultura. Foi nele que o mundo ocidental produziu, até ao século XVIII,
a sua ciência, filosofia, religião; a sua história é a matriz das línguas
românicas, tendo significativos ecos em línguas como o inglês e o alemão.
Aprender esta língua é ter acesso a uma cultura milenar que fundou, juntamente
com o grego, a sociedade moderna e cujos valores transportam saberes, desde a
área jurídica à educação e à medicina.
Países como Inglaterra, Alemanha e Espanha colocam,
actualmente, nos seus curricula o ensino do Latim, por perceberem a sua
relevância na aprendizagem de matérias tão diversas que vão desde a matemática
à biologia, à filosofia, à literatura e à aprendizagem das línguas, entre elas
o inglês e o alemão. Em Portugal segue-se o caminho oposto.
Aos poucos, a aprendizagem do latim tem vindo a
morrer, sendo vários os factores que estão na génese desta lenta agonia; os
principais são a ignorância e o desconhecimento da importância desta língua por
parte de quem decide. Num país onde se aplica um acordo ortográfico que renega
a matriz do português, não é de espantar que se olhe para o latim como uma
língua menor.
A recentíssima proposta de formação de professores de
Português que divide a formação de professores da língua materna em duas
opções – Português e Português/Latim – é a machadada final da morte há
muito anunciada. Com o actual estado do ensino do Latim, onde o número de
alunos escasseia, a escolha por parte dos futuros docentes da vertente da
formação de professores de Português/Latim será ínfima e, num país onde não há
alunos, deixará muito em breve de haver professores.
Alguns países, nomeadamente a Inglaterra e a Alemanha,
iniciam o ensino do Latim a partir do 5.º ano de escolaridade, por considerarem
que a aprendizagem desta língua deve ter lugar o mais precocemente possível. Em
Portugal, os alunos portugueses só podem estudar Latim a partir do 10.º ano, e,
atenção, é uma disciplina opcional de um leque que engloba a Geografia, algumas
línguas modernas e a Literatura Portuguesa, destinando-se somente aos alunos
dos cursos de humanidades, restringindo o acesso aos alunos de ciências.
Questão: terão os alunos portugueses capacidades inferiores aos alunos alemães
e ingleses para não conseguirem aprender Latim a partir do 5.º ano? Qual a
razão fundamentada para impedir o acesso dos alunos de ciências à aprendizagem
de uma língua na qual quase todo o universo científico, desde a biologia à
medicina, à própria tecnologia, tem a sua génese?
Será possível que ninguém queira aprender Latim em Portugal?
Que nenhum aluno se interesse pelo mundo antigo e pelas histórias que percorrem
a arqueologia da humanidade? Que os jovens portugueses sejam tão diferentes dos
seus congéneres europeus? Há verdadeiramente interesse, por parte de quem
decide, que a situação mude? Já alguém, que tenha poder decisório, tentou
averiguar honestamente e sem cair em lugares-comuns o que se passa com o ensino
do Latim em Portugal?
Na Escola Secundária de Pedro Nunes e na Escola
Secundária de Passos Manuel, em Lisboa, os seus directores decidiram que nas
suas escolas o Latim não morreria! Consequentemente, os alunos de todas as
áreas, humanidades, artes, ciências e de todos os ciclos, desde o 7.º ano ao
12.º ano, têm acesso a um curso livre de Latim. E a verdade é que há dois
grupos de alunos na Escola Secundária de Pedro Nunes, um de 3.º ciclo e outro
de secundário, sendo que um deles já se encontra no 2.º ano de Latim. O Liceu
Passos Manuel abriu o curso este ano lectivo e já conta com três grupos, um de
3.º ciclo e dois de secundário, sendo, no secundário, a maioria dos alunos de
ciências. A metodologia aplicada foi desenvolvida pela Universidade de
Cambridge e o seu sucesso leva a crer que o problema reside muito mais no modo
como esta língua tem sido ensinada do que nela mesma. É de salientar que estes
cursos são de frequência livre e a taxa de absentismo é quase nula.
Afinal, em que ficamos? Onde reside a origem do problema?
Não há alunos interessados em aprender Latim ou não há interesse em que os
alunos o aprendam?»
Não sei se, entre as várias pugnas
com que me vou entretendo no meu blog, já alguma vez toquei o assunto, não do
latim em vias de extinção, mas da selecta latina da altura em que escrevi o artigo
seguinte, de 1996, e que publiquei no
livro “Anuário” – “Memórias Soltas” (1999), Editorial Minerva. Se já
aqui o reproduzi, que me perdoem os manes
dos Cíceros e dos Virgílios, postados nos Olimpos da sua glória e da sua
indiferença perante o atrevimento de os evocar novamente, pertencente como sou
a uma lusitana raça que os chutou para bem longe, indiferente à formação
cultural dos seus descendentes. Foi este o artigo, com que pretendo reforçar o
apelo da Professora de Português e Latim, Susana Marta Pereira, lembrando a lamechice de um ensino
de tosca banalidade, muito embora se considere que a nossa juventude está mais
bem artilhada intelectualmente do que a dos tempos do latim e grego. Creio que
sim, que está mais modernizada, mais capaz de singrar com ousadia nos novos
caminhos que lhe são impostos, mais defendida do ponto de vista da desenvoltura
verbal também. Mas lamento a falta de estruturação mental que os clássicos –
quer os das civilizações greco-latinas quer os das delas derivadas lhes
poderiam fornecer e que a nossa incúria e
ignorância condenou a omissão. Eis o texto de 1996:
«EST MODUS IN REBUS...»
«Dois livros
para a iniciação do Latim:
Para o l0º
ano, “ROMAE ROMANI”, de Ana I. Salema e
Rosa Costa, com a participação do Dr. José A. Segurado e Campos , 1ª Edição,
1996.
Para o
antigo 6º ano de Letras, “INITIA LATINA”, por José Nunes de Figueiredo e Maria
Ana Almendra., 3ª Edição, l966.
Começámos
pelo primeiro: Uma viagem de jovens estudantes europeus - entre os quais dois
portugueses - a Itália , premiados no concurso “Certamen Ciceronianum Arpinas”,
e a quem o jovem professor Paolo, da
Universidade de Génova, servirá de anfitrião e guia.
Uma urdidura
romanesca preside à feitura do livro, num propósito de intercâmbio comunicativo e cultural que põe em jogo
necessidades básicas de instalação, diálogos de apresentação e auto-retrato,
passeios, cartas aos familiares, costumes, comentários ideológicos em função
dum confronto passado/presente, e as respectivas ilações sobre as similitudes e
as diferenças entre os povos latinos e os seus descendentes pertencentes à
União Europeia.
Um livro bem
orientado, com a matéria dispersa segundo dois motivos temáticos - O Génio Romano
para o Módulo I, A Vida Quotidiana para o Módulo II, cada lição
perspectivada ao longo de seis rubricas: Clube de Estudo, Texto em Estudo,
Jogos entre Nós, Clínica Gramatical, Genealogia Lexical, Correspondência
Cultural.
Tudo,
aparentemente, equilibrado, enriquecedor, em sequência progressiva, com
vectores de referência para a civilização passada e para a civilização actual,
a gramática acompanhante, os exercícios de aplicação, a etimologia e as
famílias de palavras, os textos em português pontuados de expressões latinas,
os textos em latim contextualizados.
Lemo-lo de um
fôlego, fascinados com essa viagem cultural que desbloqueou o tempo,
vivificando a língua morta, actualizando o passado, transformando o presente em
algo de mirífico possuidor de uma velha história, e que estabeleceu o paralelo
identificador dos homens, nos seus costumes e sentimentos, como nas suas
eternas disparidades sociais. Simultaneamente, apercebemo-nos dos vestígios da
cultura latina, nas suas pontes e ruas, nos seus arcos e monumentos, nos seus
grafitos e epitáfios, nos breves textos de autores latinos versando motivos de
todos os tempos: Textos do Cântico dos Cânticos, dos Evangelhos , de Cícero,
Plínio, das Epístolas de S. Paulo, dos Carmina Burana.
A rubrica Correspondência Cultural estabelece
o paralelismo, seja na narrativa dos acontecimentos, seja nos diálogos entre os
jovens, ou nos textos sobre os Romanos, assim descobrindo pistas de confronto
que ajudam à percepção dos factos.
Cedo, todavia,
chegámos ao fim da obra, de textos, na sua maioria, em português, semeados,
embora, de expressões latinas, e os textos de autor reduzidos a um ou dois, o
que nos decepcionou.
E apesar da
erudição e do propósito orientador, enfastiou-nos um tanto, igualmente, nos
seus discursos por vezes rebuscados, por vezes moralistas, na história banal de
jovens empenhados e vivaços, à boa maneira dos Cinco e dos Sete das aventuras
da Enid Blyton - jovens que desdenham o
magister dixit, o que não é de todo errado, segundo as actuais pedagogias
exacerbadoras do ego estudantil , jovens que se instalam em casas de
acolhimento, “garante do merecido descanso”, sem percebermos o porquê do mérito
- na vulgar historieta de amor de uma
das jovens com o professor, pretexto para um debitar de uma fraseologia
romanesca e lírica perfeitamente inadequada, como a que transcrevemos:
“A cabeça de Paolo
descaiu sobre seu ombro (sic), e com voz só para ela:
-Querem que eu
volte para continuar a casa... pena não te ter mostrado os vinhedos, os
armazéns, as adegas, a destilaria... mas não voltarei só!
Também eu me
deixei levar pelas mãos seguras de Concha, a catalã que trocaria o sol da sua
terra por outro sol... aquele que andava amadurecendo cada cacho, a
descobrir-se entre pâmpanos, ao longo da estrada para Roma”. (pág. 65).
Tais
peculiaridades fizeram-nos evocar o Mon Ami Pierrot e quejandos que, através de
idêntico processo comunicativo, pretendia também, em tempos idos, integrar os
alunos de Francês das Escolas Técnicas na cultura comercial, por meio de uma
efabulação despudoradamente piegas e lorpa.
Outro paralelo
identificador com os Pierrots de má memória, e característica, aliás, dos
bonecos de qualquer B. D., nos surgiu nas imagens dos jovens, dispersas aqui e
ali, os quais, no longo percurso das
suas férias culturais, jamais mudaram de fato... para que possamos
reconhecê-los, naturalmente, onde quer que se encontrem.
Lamentamos a
lamechice deste ensino centrado no aluno, que parte do ensino básico e jamais
se altera ao longo do seu percurso curricular, sobretudo no que toca ao ensino
das línguas na sua fase de iniciação. Um
ensino que, privilegiando o método comunicativo, em todo o caso nos parece
extremamente redutor, como se o universo juvenil se polarizasse em torno do umbigo de cada estudante.
Por isso os
clássicos franceses foram retirados, como letra morta, dos manuais do Ensino
Secundário, até para os futuros professores de Língua Francesa, por isso este
manual de Latim privilegia os contactos
pessoais e contraria o conhecimento real dos autores latinos e da língua
latina na sua complexidade, que exige abundância de textos e maturidade
interpretativa.
Daí que, desejosos
de reencontrar os velhos clássicos latinos e de rever a sua história e
civilização nas fontes originais , sem interposição de comentários dirigistas,
retomámos afincadamente o manual de José Nunes de Figueiredo e de Maria Ana
Almendra, que, numa 1ª Parte, nos inicia nesses hábitos civilizacionais em
função da matéria gramatical elucidativa e que, numa 2ª Parte, nos oferece o
prazer de uma leitura ampla dos autores do Programa de então: 20 textos de
Eutrópio, 24 de Lhomond, 20 fábulas de Fedro, 20 textos de Cornélio Nepos, 21
de Júlio César.
Textos excessivos,
dir-se-á, que os alunos jamais abrangerão na sua totalidade, mas cuja
descodificação, em maior ou menor quantidade, se tornará, gradativamente, num
exercício lúdico, à medida da sua
progressão gramatical, para além do contacto enriquecedor com esses Homens a
quem a Humanidade deve a transmissão da História passada e a dimensão humanista
intemporal da sua fábula.
Julgamos mais
sério este método tradicional, mais responsabilizador e culturalmente mais
eficaz, sem tanto esbanjamento de individualismo e afectividade.
Quanto às ilações
do manual para o l0º ano, parecem-nos pura manifestação pessoal de um moralismo
tão insípido como a utilização dos temas
clássicos em função das vivências pessoais dos jovens premiados no “Certamen
Ciceronianum Arpinas”.
Desfeita, assim, a novidade
e saciada a curiosidade, predominou o vazio de uma metodologia que,
abundando em pâmpanos, escasseou nos cachos - conquanto amadurecidos na estrada
para Roma - impedindo uma preparação adequada do
aluno que o ajude a vencer as
dificuldades do ano seguinte.
A menos que, a
exemplo do 10º ano, se sobreponham, no
11º, ao estudo dos clássicos, as argúcias verbais e os textos pessoais dos
autores do manual.»
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