sexta-feira, 11 de abril de 2014

Virtudes teologais



Januário Torgal Ferreira já o tenho ouvido, parece-me do tipo bilioso a destilar indignações um tanto toscas, mas “à la page”, a coberto da ampla capa da estima ruidosa pelos desfavorecidos, forma habitual, aliás, de nos apresentarmos como seres impolutos, a merecer a simpatia desses, dos desfavorecidos - em natural maioria na democracia, embora já anteriormente também - que poderão sempre ajudar à nossa projecção quer mediática quer doutras espécies de performance pessoal. A verdade é que o Sr. ex-Bispo, como fez parte do manifesto dos setenta - "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente" – (o qual já vai  em 25000 subscrições), informa ao Expresso de que o assinou “para não ser cúmplice de uma injustiça histórica extraordinária. Isolado ou não isolado, devo dizer, da parte da Igreja, que chega de fabricar escravos. Não quero ser cúmplice de um banho de sangue". Mais informa que "Este ano vai celebrar o 25 de Abril vestido de negro". Outras afirmações o revelam “extremamente crítico em relação ao atual Governo”considerando mesmo que alguns dos seus membros "gostariam que o regime do Estado Novo ainda vigorasse". “Sofrimento, sacrifício e brutalidade, sem uma reforma justa e capaz do Estado" é o modo como o bispo qualifica as consequências da atuação do Executivo de Pedro Passos Coelho.” "O capitalismo foi sempre explorador, o neoliberalismo segue-lhe as pisadas. Este Estado explora os mais pequenos", acrescenta Januário Torgal, que espera que a petição possa por provocar um "rebate de consciência político-cívica" na Assembleia da República.”
E foi por via destes dizeres que Alberto Gonçalves , no seu artigo de 10/3 do DN, “O mistério da fé” - sem tocar, contudo, no aspecto bilioso da sua facúndia discursiva, que a mim me choca, tanto mais que nos ameaça com um “banho de sangue” - se debruça antes sobre a carência de reflexão e de coerência dos seus argumentos ao Expresso. Mas na internet leio a sua biografia que mostra quanto estudou, sobretudo filosofia e até esteve em França a preparar tese - tal como, mais recentemente, o nosso Engenheiro Sócrates, que os bons exemplos fortalecem os nossos próprios passos - e onde assistiu ao Maio de 68 reivindicativo, que lhe fortaleceu ideias, agora expressas ao Expresso, de defesa de causas, e por isso as dúvidas do sociólogo Alberto Gonçalves sobre as suas capacidades me parecem injustas, pois até na sua tese teve 17 valores e nem sequer era bispo na altura – bispo do Exército – nem tinha recebido a Medalha de Mérito D. Afonso Henriques, colhida lá.
Leiamos, pois, o artigo do Notícias, embora eu ache que na questão de fé não há mistério nenhum: boa ou má, é sempre a fé que nos guia e vê-se que Januário Torgal Ferreira sempre foi muito atreito a ela, já desde os tempos da JUCF, que frequentou, e onde começou o seu desempenho de orador, que transporta com brio e com expressivo mediatismo. E também a Esperança e a Caridade além dessa, sempre bem representadas entre nós, até na própria canção imortal da vila morena, que Januário Torgal não pode deixar de cantar, vestidinho de negro, o cravo sobressaindo, em Abril, a 25:
«O mistério da fé» de Alberto Gonçalves
«Nunca percebi se Januário Torgal Ferreira diz o que diz porque realmente o pensa ou se as declarações da criatura ao longo dos anos compõem um imenso e rebuscado quadro cómico. Continuo sem perceber.
Esta semana, o ex-bispo das Forças Armadas (até o ofício que o celebrizou parece brincadeira: para que precisam as FA de um bispo? Para converter o inimigo? Para providenciar a extrema-unção às baixas?) prometeu celebrar o próximo 25 de Abril vestido de negro, o que em princípio não tem nada de extraordinário num sujeito que é, afinal de contas, um padre. Sucede que D. Januário não se fica por aqui e explica: o negrume no traje representa uma forma de protesto contra o, cito, "neoliberalismo" do Governo, cujo objectivo consiste em, volto a citar, fabricar escravos e regressar ao regime do Estado Novo. Para D. Januário, sempre críptico ou hilariante, isto terminará num "banho de sangue" de que ele não quer ser cúmplice (decerto imagina que a tropa existe para espalhar carícias)
Vamos por partes, se possível. D. Januário acredita mesmo que um governo que, por culpas próprias, alheias ou partilhadas, aumenta o peso fiscal, sobe a despesa pública e no fundo faz de tudo para que o Estado permaneça relativamente intacto é liberal, "neo" ou não? D. Januário faz sequer uma vaga ideia do significado de "liberal", vocábulo ou inclinação filosófica? Em qualquer dos casos, D. Januário acha que o liberalismo se confunde com as políticas do Estado Novo? D. Januário sabe quem foi e o que defendia Salazar? As alternativas risonhas que D. Januário propõe aos "escravos" criados pelas economias de mercado são aquelas em que estou a pensar? D. Januário considera emancipados os cidadãos dos regimes declaradamente avessos ao capitalismo? D. Januário possui informações privilegiadas acerca do "banho de sangue" que aí vem ou ainda nos encontramos no domínio da alucinação? O povo passou a D. Januário uma procuração para que o representasse? Se sim, ninguém me avisou.
Vão longe os tempos em que as indignações da Igreja se esgotavam no filme Pato com Laranja. Mas mantém-se a tendência de alguns sacerdotes para opinar sobre o que, por opção de carreira, não compreendem. Pior ainda, a tendência espalhou-se por crentes ligeiros, laicos, agnósticos e ateus intransigentes, todos unidos sob o lendário manifesto do 70, que sob a forma de petição já chegou aos 25 mil e nem por isso alcançou um pedacinho de pertinência.
A reclamada "reestruturação" da dívida, ou seja, a possibilidade de o caloteiro ditar as condições do calote, levanta sérias interrogações acerca da lucidez dos respectivos proponentes e seguidores - e esta é a hipótese simpática. A hipótese desagradável é o discurso da "reestruturação" ser uma deliberada e desastrada intrujice, embrulhada no género de delírios repetidos por D. Januário de modo a evangelizar pasmados. No fundo, trata-se da diferença entre a fé e a má-fé, e na matéria em questão é um mistério haver gente alheia aos interesses das "elites" que adere à primeira ou se deixa enganar pela segunda. Por outras palavras, não admira que um país que leva, por exemplo, D. Januário a sério acabe no estado - e no Estado - actual. E se um Governo abaixo de sofrível beneficia de uma contestação assim, o País não.»

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