Januário Torgal Ferreira já o tenho ouvido, parece-me do
tipo bilioso a destilar indignações um tanto toscas, mas “à la page”, a coberto
da ampla capa da estima ruidosa pelos desfavorecidos, forma habitual, aliás, de
nos apresentarmos como seres impolutos, a merecer a simpatia desses, dos
desfavorecidos - em natural maioria na democracia, embora já anteriormente
também - que poderão sempre ajudar à nossa projecção quer mediática quer
doutras espécies de performance pessoal. A verdade é que o Sr. ex-Bispo, como
fez parte do manifesto dos setenta - "Preparar
a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente" – (o qual já
vai em 25000 subscrições), informa ao Expresso de que o assinou “para não ser
cúmplice de uma injustiça histórica extraordinária. Isolado ou não isolado,
devo dizer, da parte da Igreja, que chega de fabricar escravos. Não quero ser
cúmplice de um banho de sangue". Mais informa que "Este ano vai celebrar o 25 de Abril vestido de negro". Outras afirmações o revelam “extremamente
crítico em relação ao atual Governo” “considerando mesmo que alguns dos seus membros "gostariam que o
regime do Estado Novo ainda vigorasse". “Sofrimento, sacrifício e
brutalidade, sem uma reforma justa e capaz do Estado" é o modo como o
bispo qualifica as consequências da atuação do Executivo de Pedro Passos
Coelho.” "O capitalismo foi sempre explorador, o neoliberalismo segue-lhe
as pisadas. Este Estado explora os mais pequenos", acrescenta Januário
Torgal, que espera que a petição possa por provocar um "rebate de
consciência político-cívica" na Assembleia da República.”
E foi por via destes dizeres que Alberto Gonçalves , no seu
artigo de 10/3 do DN, “O mistério da fé” - sem tocar, contudo, no
aspecto bilioso da sua facúndia discursiva, que a mim me choca, tanto mais que nos
ameaça com um “banho de sangue” - se debruça antes sobre a carência de reflexão
e de coerência dos seus argumentos ao Expresso. Mas na internet leio a sua
biografia que mostra quanto estudou, sobretudo filosofia e até esteve em França
a preparar tese - tal como, mais recentemente, o nosso Engenheiro Sócrates, que
os bons exemplos fortalecem os nossos próprios passos - e onde assistiu ao Maio de 68
reivindicativo, que lhe fortaleceu ideias, agora expressas ao Expresso, de
defesa de causas, e por isso as dúvidas do sociólogo Alberto Gonçalves sobre as
suas capacidades me parecem injustas, pois até na sua tese teve 17 valores e
nem sequer era bispo na altura – bispo do Exército – nem tinha recebido a
Medalha de Mérito D. Afonso Henriques, colhida lá.
Leiamos, pois, o artigo do Notícias, embora eu ache que na
questão de fé não há mistério nenhum: boa ou má, é sempre a fé que nos guia e
vê-se que Januário Torgal Ferreira sempre foi muito atreito a ela, já desde
os tempos da JUCF, que frequentou, e onde começou o seu desempenho de orador,
que transporta com brio e com expressivo mediatismo. E também a Esperança e a Caridade além
dessa, sempre bem representadas entre nós, até na própria canção imortal da
vila morena, que Januário Torgal não pode deixar de cantar, vestidinho de
negro, o cravo sobressaindo, em Abril, a 25:
«O mistério da fé»
de Alberto Gonçalves
«Nunca percebi se Januário Torgal Ferreira diz o que diz
porque realmente o pensa ou se as declarações da criatura ao longo dos anos
compõem um imenso e rebuscado quadro cómico. Continuo sem perceber.
Esta semana, o ex-bispo das Forças Armadas (até o ofício que
o celebrizou parece brincadeira: para que precisam as FA de um bispo? Para
converter o inimigo? Para providenciar a extrema-unção às baixas?) prometeu
celebrar o próximo 25 de Abril vestido de negro, o que em princípio não tem
nada de extraordinário num sujeito que é, afinal de contas, um padre. Sucede
que D. Januário não se fica por aqui e explica: o negrume no traje representa
uma forma de protesto contra o, cito, "neoliberalismo" do Governo,
cujo objectivo consiste em, volto a citar, fabricar escravos e regressar ao
regime do Estado Novo. Para D. Januário, sempre críptico ou hilariante, isto
terminará num "banho de sangue" de que ele não quer ser cúmplice
(decerto imagina que a tropa existe para espalhar carícias)
Vamos por partes, se possível. D. Januário acredita mesmo
que um governo que, por culpas próprias, alheias ou partilhadas, aumenta o peso
fiscal, sobe a despesa pública e no fundo faz de tudo para que o Estado
permaneça relativamente intacto é liberal, "neo" ou não? D. Januário
faz sequer uma vaga ideia do significado de "liberal", vocábulo ou
inclinação filosófica? Em qualquer dos casos, D. Januário acha que o
liberalismo se confunde com as políticas do Estado Novo? D. Januário sabe quem
foi e o que defendia Salazar? As alternativas risonhas que D. Januário propõe
aos "escravos" criados pelas economias de mercado são aquelas em que
estou a pensar? D. Januário considera emancipados os cidadãos dos regimes
declaradamente avessos ao capitalismo? D. Januário possui informações privilegiadas
acerca do "banho de sangue" que aí vem ou ainda nos encontramos no
domínio da alucinação? O povo passou a D. Januário uma procuração para que o
representasse? Se sim, ninguém me avisou.
Vão longe os tempos em que as indignações da Igreja se
esgotavam no filme Pato com Laranja. Mas mantém-se a tendência de alguns
sacerdotes para opinar sobre o que, por opção de carreira, não compreendem.
Pior ainda, a tendência espalhou-se por crentes ligeiros, laicos, agnósticos e
ateus intransigentes, todos unidos sob o lendário manifesto do 70, que sob a
forma de petição já chegou aos 25 mil e nem por isso alcançou um pedacinho de
pertinência.
A reclamada "reestruturação" da dívida, ou seja, a
possibilidade de o caloteiro ditar as condições do calote, levanta sérias
interrogações acerca da lucidez dos respectivos proponentes e seguidores - e
esta é a hipótese simpática. A hipótese desagradável é o discurso da
"reestruturação" ser uma deliberada e desastrada intrujice,
embrulhada no género de delírios repetidos por D. Januário de modo a
evangelizar pasmados. No fundo, trata-se da diferença entre a fé e a má-fé, e
na matéria em questão é um mistério haver gente alheia aos interesses das
"elites" que adere à primeira ou se deixa enganar pela segunda. Por
outras palavras, não admira que um país que leva, por exemplo, D. Januário a
sério acabe no estado - e no Estado - actual. E se um Governo abaixo de
sofrível beneficia de uma contestação assim, o País não.»
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