Tenho andado a ler “Le Roman de la
Momie” de Théophile Gautier, talvez
por ter mais tempo, talvez por um desejo
de evasão das sonoridades mediáticas dos tempos modernos, talvez por amor a
tanta maravilha com que o homem nos foi
brindando com o seu génio e o seu trabalho de pesquisa - admiráveis, no caso de Gautier.
Um estilo de requinte e de riqueza
vocabular, colhido num aprofundar de
elementos que a decifração hieroglífica pelo professor de história Champollion,
entre outros egiptólogos, fornecera na altura, provocando uma egiptomania oitocentista
de pesquisa arqueológica e de temática romanesca de maldição e terror ou de
reconstrução histórica recuada, no fascínio
pelo mundo antigo. Assim, a partir da descoberta de um túmulo inviolado,
cuja múmia, ao ser despojada dos invólucros luxuosos e impregnados de estranhas
essências odoríficas, mostrou manter a beleza dos traços que a definiam em
vida, provocando a súbita paixão do patrocinador da descoberta – o jovem
inglês, belo, rico, culto e caprichoso lorde Evandale - se constrói o romance
da múmia, aparentemente relatado no rolo de papiro descoberto no sarcófago – técnica
de atribuição historiográfica de que tanto usou o nosso Camilo nas suas
novelas. Uma história de paixão e
sofrimento da egípcia Tahoser, (decifrada pelo professor acompanhante da
expedição, o sábio Rumphius), e do grande amor do todo poderoso Pharaon que a
raptou ao primeiro amante, o hebreu Poeri, e a rodeou de todos os primores de
luxo e afecto que por fim surtiram o efeito desejado de dedicação e amor de
Tahoser por ele. O túmulo descoberto, contendo a jovem Tahoser era, de facto,
destinado a Pharaon, que as águas do Mar Vermelho engoliriam, aquando da
perseguição aos Judeus durante o Êxodo, após as dez pragas enviadas por Jeová,
tendo aquela reinado pouco tempo mais sobre o Egipto, em sua substituição.
Clareza descritiva, mas sobretudo uma
grande riqueza lexical fixada – aparentemente - no papiro, retomada no papel,
pelo escritor estudioso, defensor da arte, na poesia, - arte pela arte -
requintada, impassível, liberta das
preocupações do mundo, da moral como da política, apenas expressiva de beleza
formal, semelhante às outras artes plásticas. Porque tudo redundará em poeira,
a caravana humana não vai a lado algum, e apenas à morte, como o exprime no seu
soneto a que uma tradução à letra retirará a eficácia da melodia, deixando
apenas a ideia do absurdo existencial. E deste modo o soneto de Gautier serve
de comentário ao seu “Romance da Múmia” – uma múmia descoberta, vinda de
um passado milenar, de um requinte sem mais finalidade que o de seduzir pela
beleza, na aridez desértica da passagem do homem por este mundo.
«A caravana»
«A caravana humana no
Saará do mundo
Neste caminho do tempo
que não tem retorno,
Vai arrastando os pés,
crestada ao calor do dia
E sorvendo dos braços o
suor que a inunda.
Ruge o leão, a tempestade
estrondeia,
No horizonte fugidio
nem torre nem minarete;
A única sombra
existente é a sombra do milhafre
Que atravessa o céu,
buscando a presa imunda.
E a caravana avança e eis que se avista
Qualquer coisa verde
que com o dedo se aponta:
É um bosque de
ciprestes semeado de brancas pedras.
Deus, para nosso
repouso, no deserto dos tempos
Como oásis colocou os
cemitérios:
Deitai-vos e dormi,
viajantes pressurosos.»
Nenhum comentário:
Postar um comentário