«Uma lição
de coisas» é como Vasco Pulido Valente
intitula o seu artigo do Público de 28/03/2014 , a respeito da
confrontação entre a Rússia e o Ocidente sobre a questão ucraniana de que
resultou a anexação da Crimeia por aquela potência, que deseja continuar a ser
potência, com boas razões para isso. «Uma
lição de coisas» ironiza sobre
as hipocrisias habilidosas da América e da Europa, fingindo indignação e ameaça
por conta da violação de direitos democráticos da Ucrânia à sua independência,
mas nos bastidores mantendo os seus jogos de interesses e os salamaleques com
uma Rússia consciente da sua importância de séculos, e que por isso não se
importa de pôr em risco a paz do mundo. E ironiza uma vez mais também sobre os
que querem acreditar que o Ocidente democrático será barreira suficiente contra
as perversidades e ambições russas,
provando o contrário.
De facto, a
Rússia sabe que tal risco é inexistente, os Estados Unidos, porque já deram por
várias vezes o corpo ao manifesto, com eficácia ou sem ela, e acham que já
chega de sacrifício, a Europa porque está esfacelada e falida, pelo menos
nalguns sítios e também dependente da Rússia, noutros. Além de que as
democracias vieram demonstrar que as suas guerras são essencialmente pessoais,
guerras de prazer viradas para os jogos de diversão – de pés, sobretudo, embora
os de mãos também sejam muito aprazíveis, a começar pelo snooker - e os outros jogos dos bastidores pessoais,
que têm mais a ver com o singrar próprio, integrado numa qualquer malha
lucrativa. Os povos amantes da guerra
estão mais confinados às Áfricas e às Ásias endiabradas, onde, por vezes,
sobressaem líderes mediáticos, com naufrágios terríficos como consequência,
também mediáticos. O Ocidente presta um
auxílio solidário, de preferência, igualmente mediático, como expressão da sua força. Putin
não tem que temer.
Qual foi o resultado da suposta “confrontação” entre o
Ocidente e a Rússia? A Rússia anexou a Crimeia sem resistência militar ou
outra. O Ocidente manifestou com muito cuidado a sua desaprovação. A América
retirou o visto a meia dúzia de comparsas de Putin e prometeu à Europa que lhe
forneceria gás para a tornar menos “dependente” da Rússia. A Europa e a América
também expulsaram a Rússia dos G8, que voltam agora a ser os G7. O resto não
passou de uma retórica mansa, para consolo da “opinião” com impulsos
alegadamente “democráticos”.
Isto bastou para que “eurófilos” de vária pinta viessem
falar do fracasso de Putin, da “aproximação da Europa e da América” e do
“isolamento” da Rússia; e a farsa, apoiada pela viagem de Obama a Bruxelas, convenceu
quem se quis convencer.
Infelizmente, as coisas são, de maneira geral, ao contrário.
Em primeiro lugar, o Ocidente demonstrou ao mundo inteiro que recusa um novo
conflito, na Ucrânia ou no pólo Norte: a América porque, ao fim de uma guerra
perdida no Iraque e no Afeganistão, o eleitorado está maciçamente contra uma
nova aventura; a Europa porque não tem dinheiro, nem poder militar para ameaçar
ninguém (Obama até pediu que a França, a Inglaterra e a Alemanha investissem em
armamento um pouco mais do que investem hoje). E, em segundo lugar, porque,
longe de ficar “isolada”, a Rússia continua, imperturbável, a receber
investimento americano, alemão e até francês; e a absorver uma parte vital do
que a Alemanha e a Inglaterra exportam. Com ou sem declamações para consumo
popular, os negócios não vão ser perturbados.
A Rússia, disse Obama, é uma “potência regional”. Este
exemplo de arrogância, e de inconsciência, não muda a realidade. O que a crise
da Crimeia claramente deixou ver foi que a América já não é uma potência
global. Não admira que a China se aproximasse da Rússia; e que, na África e na
Ásia, se fale cada vez com maior insistência na “hipocrisia americana” (para
não falar na “hipocrisia europeia”). Como não admira que a sra. Merkel, depois
de se aliviar de umas frases pias, se preocupasse sobretudo em defender o
interesse económico da Alemanha na Federação Russa. A América e a Europa saíram
muito mal da suposta “confrontação” com Putin: sem unidade e sem iniciativa.
Pior ainda: tão “apaziguadores” como os velhos de 1930, anunciaram em Bruxelas
que reservam a sua verdadeira cólera para o caso de a Rússia persistir numa
política de expansão, que Putin, por enquanto, rejeita. Mas que, se a confusão
e a irresponsabilidade do Ocidente não acabarem depressa, não rejeitará sempre.
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