quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os males de Anto: “Oh meu amor, antes fosses ceguinha”



Os festejos do 25 de Abril, tal como o Carnaval  carioca, começam cada vez mais cedo. Mas este ano passa o quadragésimo aniversário do evento que a todos democratizou e cá estamos nós  a agarrá-lo mais à Grândola, e a pedir pão e paz e a repisar naqueles dados da liberdade, incluindo nesses os que se orgulham de terem zarpado lá da guerra do Ultramar que o tonto do Salazar persistia em proteger, antes de cair da tripeça, coisa que a todos sucede algum dia, mesmo sem a tomada de consciência autocrítica do Clamence do Camus no romance “A Queda”. Houve até alguém lá do Governo, creio que uma mulher, que quis fazer as festas com os dinheiros dos ricos, atida ao slogan “os ricos que paguem a crise”, prova de que a gradual tomada de consciência entre nós não tem cabimento, o que queremos todos é borga, e todos os anos chupamos com as mesmas explosões esganiçadas, sobretudo quando atiram cá para fora as vozes desencontradas dos populares exibindo a sua Grândola.
Ninguém melhor do que Vasco Pulido Valente para uma síntese de mestria do carnaval em que temos vivido, há quarenta anos, muitos já esquecidos da Grândola, virados de preferência para a “safra do apanhar”, depois de esborratarem as normas do equilíbrio e da Justiça que, mal ou bem, se ia protegendo no anteriormente, sem tanto desespero, e sobretudo sem a desesperança que é apanágio hoje de uma juventude sem perspectivas de vida decente.
O desespero escorre das nossas almas, no terror do mundo que destruímos para os nossos filhos. E o mundo dos povos que trabalham e constroem também não é melhor, com as consequências ruinosas do progresso sobre o espaço terreal em que nos movemos. Cabem nestas lucubrações uns versinhos que me foram pedidos (pela Chiado Editora) sobre o tema Entre o sono e o sonho”, a que respondi com o rigor da angústia de um medo sem disfarces decorativos:
Buscando… nada

Visão a ferro e fogo escandecida,
Visão de inferno, de temor, de inquietação,
É esta Terra a deslizar, perdida,
A despenhar-se num espaço sem travão.

Dificilmente o sonho é de magia,
O que se constrói redunda em perdição,
Cada invento comporta dor e alegria,
Num progresso que atrai destruição.

Sonhar não é mais felicidade
Neste universo de irrealidade
Aquele que vivemos cada dia.

O amanhã não se nos afigura belo
A esperança no futuro é bem sombria
O sono diário, puro pesadelo.

Mas Vasco Pulido Valente também não é de truques nem disfarces como comentarista idóneo de um mundo que criámos, na futilidade de ideais de democracia e liberdade sem o necessário espelho da autocrítica, por carência de dados de seriedade e de ponderação:
As raposas não guardam o galinheiro, por  Vasco Pulido Valente , Público de 29/03/2014
«Os relatórios do INE sobre a pobreza e o crescimento da economia serviram, como sempre, para uma pequena balbúrdia política, sem lógica, nem consequência, e que desde o princípio os partidos transformaram numa reles campanha eleitoral.
Mas nenhuma das personagens que se envolveu nessa querela se esqueceu de manifestar o seu amor à democracia ou a sua inquietação pela sobrevivência da democracia, mesmo os que nasceram depois da Ditadura ou os que a viveram sem se incomodar. Por mim, já era adulto no “25 de Abril” e a libertação de 74 chegou a tempo para me salvar de uma inevitável mutilação pessoal e profissional. Infelizmente, as coisas começaram mal. O PREC mostrou outro Portugal, que ninguém conhecia e que não se limitou a ser uma simples desordem política, foi também o sintoma de uma profunda corrupção intelectual e moral.
O Portugal equilibrado e estável, com alguma liberdade e alguma justiça, que a maioria dos portugueses nunca deixara de esperar, inaugurou o período constitucional com governos de ocasião e com uma irresponsabilidade que não merece comentário. Em parte a tutela militar e em parte a incompetência impediram que se fizessem as reformas que o país pedia. Excepto pelo Serviço Nacional de Saúde, ainda incipiente, continuámos no deserto com duas crises financeiras pelo meio. A entrada para a CEE e duas revisões constitucionais trouxeram uma nova esperança, que o dr. Cavaco durante um tempo encarnou: uma falsa esperança. Cavaco conservou os velhos vícios da sociedade portuguesa, contribuiu decisivamente para a emergência do Estado “monstruoso”, de que mais tarde se viria a queixar, e desapareceu de cena deixando Portugal tão desorganizado e frágil como o encontrara.
Não vale a pena falar do longo consulado socialista, que no fundo só se aplicou a levantar expectativas, que não podia – e sabia que não podia – satisfazer. Entretanto, a corrupção aumentava, e os partidos pouco a pouco acabavam por se tornar nas seitas facciosas que se ocupavam quase exclusivamente em espalhar a intriga interna e a confusão externa. A tragédia em que estamos não é para eles mais do que uma oportunidade para se atacarem e contra-atacarem com argumentos primários, repetidos à saciedade, como se os sofrimentos do país não fossem mais do que munições para uma guerra privada que ninguém percebe. As personagens da República, que em público se angustiam com o futuro da democracia, precisavam de olhar longamente para elas próprias, porque são elas o maior agente da dissolução de uma vida política limpa, dura e séria. As raposas não guardam o galinheiro.»

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