Os festejos
do 25 de Abril, tal como o Carnaval
carioca, começam cada vez mais cedo. Mas este ano passa o quadragésimo
aniversário do evento que a todos democratizou e cá estamos nós a agarrá-lo mais à Grândola, e a pedir pão e
paz e a repisar naqueles dados da liberdade, incluindo nesses os que se
orgulham de terem zarpado lá da guerra do Ultramar que o tonto do Salazar persistia
em proteger, antes de cair da tripeça, coisa que a todos sucede algum dia, mesmo
sem a tomada de consciência autocrítica do Clamence do Camus no romance “A Queda”.
Houve até alguém lá do Governo, creio que uma mulher, que quis fazer as festas
com os dinheiros dos ricos, atida ao slogan “os ricos que paguem a crise”,
prova de que a gradual tomada de consciência entre nós não tem cabimento, o que
queremos todos é borga, e todos os anos chupamos com as mesmas explosões
esganiçadas, sobretudo quando atiram cá para fora as vozes desencontradas dos
populares exibindo a sua Grândola.
Ninguém
melhor do que Vasco Pulido Valente para uma síntese de mestria do carnaval em
que temos vivido, há quarenta anos, muitos já esquecidos da Grândola, virados de
preferência para a “safra do apanhar”, depois de esborratarem as normas do
equilíbrio e da Justiça que, mal ou bem, se ia protegendo no anteriormente, sem
tanto desespero, e sobretudo sem a desesperança que é apanágio hoje de uma juventude
sem perspectivas de vida decente.
O desespero
escorre das nossas almas, no terror do mundo que destruímos para os nossos
filhos. E o mundo dos povos que trabalham e constroem também não é melhor, com
as consequências ruinosas do progresso sobre o espaço terreal em que nos
movemos. Cabem nestas lucubrações uns versinhos que me foram pedidos (pela
Chiado Editora) sobre o tema “Entre o sono e o
sonho”, a que respondi com o rigor da angústia de um
medo sem disfarces decorativos:
Buscando… nada
Visão
a ferro e fogo escandecida,
Visão
de inferno, de temor, de inquietação,
É
esta Terra a deslizar, perdida,
A
despenhar-se num espaço sem travão.
Dificilmente
o sonho é de magia,
O
que se constrói redunda em perdição,
Cada
invento comporta dor e alegria,
Num
progresso que atrai destruição.
Sonhar
não é mais felicidade
Neste
universo de irrealidade
Aquele
que vivemos cada dia.
O
amanhã não se nos afigura belo
A
esperança no futuro é bem sombria
O
sono diário, puro pesadelo.
Mas Vasco
Pulido Valente também não é de truques nem disfarces como comentarista idóneo
de um mundo que criámos, na futilidade de ideais de democracia e liberdade sem
o necessário espelho da autocrítica, por carência de dados de seriedade e de
ponderação:
«Os relatórios do INE sobre a
pobreza e o crescimento da economia serviram, como sempre, para uma pequena
balbúrdia política, sem lógica, nem consequência, e que desde o princípio os
partidos transformaram numa reles campanha eleitoral.
Mas
nenhuma das personagens que se envolveu nessa querela se esqueceu de manifestar
o seu amor à democracia ou a sua inquietação pela sobrevivência da democracia,
mesmo os que nasceram depois da Ditadura ou os que a viveram sem se incomodar.
Por mim, já era adulto no “25 de Abril” e a libertação de 74 chegou a tempo
para me salvar de uma inevitável mutilação pessoal e profissional. Infelizmente,
as coisas começaram mal. O PREC mostrou outro Portugal, que ninguém conhecia e
que não se limitou a ser uma simples desordem política, foi também o sintoma de
uma profunda corrupção intelectual e moral.
O
Portugal equilibrado e estável, com alguma liberdade e alguma justiça, que a
maioria dos portugueses nunca deixara de esperar, inaugurou o período
constitucional com governos de ocasião e com uma irresponsabilidade que não
merece comentário. Em parte a tutela militar e em parte a incompetência
impediram que se fizessem as reformas que o país pedia. Excepto pelo Serviço
Nacional de Saúde, ainda incipiente, continuámos no deserto com duas crises
financeiras pelo meio. A entrada para a CEE e duas revisões constitucionais
trouxeram uma nova esperança, que o dr. Cavaco durante um tempo encarnou: uma
falsa esperança. Cavaco conservou os velhos vícios da sociedade portuguesa,
contribuiu decisivamente para a emergência do Estado “monstruoso”, de que mais
tarde se viria a queixar, e desapareceu de cena deixando Portugal tão
desorganizado e frágil como o encontrara.
Não
vale a pena falar do longo consulado socialista, que no fundo só se aplicou a
levantar expectativas, que não podia – e sabia que não podia – satisfazer.
Entretanto, a corrupção aumentava, e os partidos pouco a pouco acabavam por se
tornar nas seitas facciosas que se ocupavam quase exclusivamente em espalhar a
intriga interna e a confusão externa. A tragédia em que estamos não é para eles
mais do que uma oportunidade para se atacarem e contra-atacarem com argumentos
primários, repetidos à saciedade, como se os sofrimentos do país não fossem
mais do que munições para uma guerra privada que ninguém percebe. As
personagens da República, que em público se angustiam com o futuro da
democracia, precisavam de olhar longamente para elas próprias, porque são elas
o maior agente da dissolução de uma vida política limpa, dura e séria. As
raposas não guardam o galinheiro.»
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