segunda-feira, 21 de abril de 2014

Como um véu de cinza



Um artigo de Paulo Baldaia, director da TSF – “Os dias em que tudo era possível” – publicado no domingo de Páscoa, 20 de Abril, texto optimista, aberto e dinâmico, de quem não chora o leite derramado e aceita com filosofia os males do passado, da responsabilidade do PREC – Processo revolucionário em curso – em reveses que uma instabilidade revanchista inicialmente perpetrou, a coberto do seu poder armado, já não de pacíficos cravos vermelhos mas de real ambição dominadora, possibilitada pela cópia de  armas alojadas nos seus quartéis, com que semearam o terror no seu agora reduzido país, as mesmas armas com que dantes  combatiam o terrorismo, num país naturalmente mais amplo, o que Baldaia ignorou.
Já passaram 40 anos, quase tantos como os infindáveis – segundo a maioria - com que Salazar se ocupara dos destinos da sua nação, fortalecendo-a e pagando a dívida anterior, muito à custa do regime de mediania não dourada que se lhe aponta sempre, com repressão e atraso, mas acumulando riqueza, ao que parece. E o resultado destes quarenta anos, apesar da grande satisfação de Baldaia, é, acima de tudo, o buraco negro de uma dívida – mais outra – intransponível esta, segundo os seus próprios artesãos, num pessimismo intencionalmente destruidor do Governo que procura cumprir, ressarcindo-a.
Mas Baldaia tenta ser justo, retirando desse período de grandes males – (descolonização precipitada, reforma agrária usurpadora e destruidora de riqueza, destruição de grupos económicos necessários à riqueza do país, ocupações, expulsões, injustiças ) – a sua súmula positiva: libertação do jugo ditatorial, liberdade, justiça social… - que o deixam eufórico na sensação de viver num país “mais rico, mais culto, mais alegre, mais solidário, mais aberto ao mundo do que há 40 anos”.
Terá razão, Baldaia. A liberdade é, efectivamente, um bem - desde que seja, contudo,  integrada num pensamento justo, e não vivida de forma pueril, na reivindicação apenas de direitos, sem consciência dos deveres – e, acima de tudo, o dever de pagar uma dívida que compromete indefectivelmente essa liberdade. Com efeito, como podemos considerar-nos livres, se vivemos num país mutilado, aparentemente sem presente para muitos, sem amanhã para os nossos vindouros, joguetes que somos de outras ditaduras – a empresarial sendo uma delas, no miserabilismo de vencimentos e exigências ameaçadoras de despedimento…
Como um véu de cinza que nos cobre o dia-a-dia…
O texto de Paulo Baldaia:
«Os dias em que tudo era possível»
«Entre o dia 25 de Abril de 1974, que trouxe a liberdade mas não de imediato a democracia, e o 25 de Novembro de 1975, viveu-se um tempo único em Portugal. Um tempo que atrasou Portugal na chegada à democracia e ao desenvolvimento económico. Um tempo que abriu feridas que não estão totalmente saradas. Talvez por isso, existe muita gente que gosta do 25 de Abril mas não o celebra.
Mas esse período não foi apenas o que dele dizem os vencedores. Pedi emprestado, a um trabalho da TSF, o título para esta crónica e foi ouvindo "histórias do PREC português na primeira pessoa, memórias dos dias da mudança", anotadas por Fernando Alves e João Félix Pereira, que recordei como há na história sobre o PREC um certo revisionismo. Não porque se conte uma mentira mas porque se valoriza o que de mau se passou, ignorando a paixão pela liberdade que se viveu nesse tempo e que espalhou a cultura, a ideia de justiça social, a utopia de que é possível comandar o nosso destino.
Esta crónica não é um elogio ao Processo Revolucionário em Curso (PREC), mas é um desagravo.
Sim, o PREC trouxe uma descolonização desordenada; a apropriação indevida de terras e fábricas; a destruição dos grupos económicos essenciais para desenvolver a economia; retirou liberdade a pessoas julgadas sumariamente... foi um tempo de muitas injustiças.
Mas o PREC também trouxe a ideia de que cooperando se podia fazer mais; de que um povo alfabetizado e com mais cultura defendia melhor os seus interesses; de que as mulheres valiam tanto como os homens... e, acima de tudo, foi uma rolha a saltar que nos livrou da pressão que nos impedia de pensar e agir. Para sermos livres tivemos de quebrar as grilhetas e fizemo-lo provocando muitos estragos.
Eu sei que prefiro ter tido o 25 de Abril e o PREC que se seguiu a não ter tido nada. Passados 40 anos, o País está muito melhor. Continua a existir muita injustiça mas esse é um mal do mundo. É evidente que Portugal é mais rico, mais culto, mais alegre, mais solidário, mais aberto ao mundo do que há 40 anos.
Vivemos hoje um novo PREC (Processo de Reestruturação Económica Contínua), deixando outra vez muitas vítimas pelo caminho. O que é preciso evitar é que o PREC seja novamente a favor de uns contra os outros. A nobreza da política é a defesa do bem comum.
No espírito de Abril é preciso utopia. Quem se livrou de uma ditadura política, não pode aceitar uma ditadura financeira. O PREC pode ser necessário, mas não vai durar para sempre. Portugal somos nós.»


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